sexta-feira, 5 de junho de 2020

UMA MENTIRA BEM-INTENCIONADA MAS DE PÉSSIMO RESULTADO

Quando vamos a um abrigo de animais ou entabulamos conversa com alguém que lá foi buscar um cão, logo transparece uma história a lembrar “o fado da desgraçadinha”, que de tão triste que é, até é capaz de pôr as pedras das calçadas a chorar (os mais idosos de certeza, porque se emocionam mais facilmente). Raro é o cãozinho resgatado (eu nunca conheci nenhum) que não tenha tido “um passado trágico, marcado por insanas crueldades e por toda a sorte de abusos”, pretenso “calvário” que o leva a ter medo de tudo de todos, pretendendo-se com a lengalenga apelar à piedade e bom-coração de quem se dispõe a adoptar um cão, como se o medo canino apenas obedecesse a uma razão ambiental.
Há cães que já nascem medrosos e não foi por terem transformado as suas mães em sacos de pancada que ficaram assim. Cachorros muito-dominantes, dominantes, submissos, muito submissos e inibidos ocorrem nas ninhadas e nelas o número dos medrosos tende a ultrapassar o dos valentes. Um cão medroso é um problema sério, porque prefere esconder-se a interagir, obriga a um relacionamento de mil cuidados, qualquer coisa o assusta, resiste a qualquer mudança, mostra-se antissocial, dificilmente se adapta e obriga a adaptações, persiste na desconfiança e será sempre um animal ultra dependente, carenciado de protecção para alcançar breves momentos de bem-estar – um doente crónico.
Cães assim têm automaticamente a porta aberta para o desprezo e para o consequente abandono, já que não encontrarão muita gente capaz de suportá-los diante do seu pouco préstimo e natureza dos seus problemas. A maioria deles ao ser adoptada acabará por andar “tu cá, tu lá”, conhecendo várias lares adoptivos e regressando aos abrigos, tal qual uma bola de Pingpong. Só os mais dedicados e endinheirados conseguirão ficar com eles, tolerar os seus desvios, pagar os ansiolíticos e apostar na sua reeducação. Como se depreende, na tentativa tantas vezes vã de realojá-los, os responsáveis pelos abrigos chegam a omitir a verdade sobre a sua natureza, justificando o comportamento anómalo pela exposição a maus-tratos, uma mentira bem-intencionada mas de péssimo resultado, que só servirá para adiar o inevitável.
Se desejar adquirir um cão num abrigo, opção que desde já louvamos, e não souber nada sobre cães, o melhor que tem a fazer é assessorar-se de alguém que saiba (o que também não é fácil de encontrar), para ajudá-lo a escolher o cão certo e aquele que melhor se coaduna com a sua personalidade. Dispensará estes cuidados caso seja um incondicional amante de cães e esteja disposto a tudo, o que é ainda mais extraordinário e digno de exaltação. Contudo, é bom ficar a saber que existem cães medrosos que nunca foram maltratados.

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