terça-feira, 23 de junho de 2020

O CAPACHO DOS OUTROS

Interessa explicar primeiro o que é um capacho e o que significa em sentido figurado. Um capacho é um artefacto rectangular ou redondo, de esparto, borracha, arame, etc., que serve para limpar as solas do calçado antes de entrarmos em casa. Quando usado em sentido figurado, aplica-se a uma pessoa servil ou aduladora, podendo também aplicar-se ao cão ou aos cães que, ao submeterem-se aos outros, sempre acabam agredidos por eles. Como esta indesejável e intolerável submissão impede o agredido de se defender e ripostar, convém dizer que a maioria das suas causas assenta sobre razões ambientais, particularmente quando o cão ofendido já defende o dono e escorraça e intrusos. Não obstante, um cão nobre enfrenta pessoas e um cão sem préstimo morde nos seus iguais – nos outros cães.
Antes de tudo mais importa dizer que o cão, enquanto ser social, tende a submeter-se a quem o seu dono se submete, particular que pode livrar o dono de alguns amargos de boca, mas que poderá ser fatal para o cão em termos de autodefesa, caso a pessoa ou pessoas dominantes tenham cães, que num ápice passarão a exercer o seu domínio. Como são múltiplas as acções que levem um cão a ser capacho dos outros, fenómeno que decorre dos 4 para os 6 meses de vida nos cachorros, antecedendo a sua maturidade sexual, adiantaremos apenas 7, acções mais do que suficientes para rebentar com qualquer cão saudável, todas elas da responsabilidade ou da irresponsabilidade dos seu donos.  
Travar a defesa do cachorro quando atacado. Ao fazer isto o dono está a sujeitar o animal ao castigo e a obrigá-lo à sua aceitação, o que perante repetição levará o cachorro aceitar o domínio do outro e a deixar-se morder – à sua inteira submissão. Se isto acontecer com o cachorro atrelado ao dono a situação é mais grave, porque o líder está literalmente a desautorizá-lo e a violar o dever sagrado de protegê-lo se nada fizer.
Permitir que seja atacado sem o socorrer. Coisa muito fácil de acontecer quando o dono de braços cruzados, impávido e sereno, ache natural e/ou consinta que outros cães fixem, corram para cima e ataquem o seu cachorro, particularmente em terrenos neutros, estranhos ou que não lhe pertencem. Numa situação destas é obrigação dos donos correrem em auxílio dos seus cachorros para anular a desvantagem e valer aos animais.
Soltá-lo nos terrenos de outros já constituídos em matilha e hierarquizados. Soltar arbitrariamente um cachorro no terreno de outros já constituídos em matilha e hierarquizados, é atribuir-lhe o papel de presa ou de intruso e pô-lo a jeito para ser violentamente atacado, experiência negativa de que dificilmente se esquecerá e que poderá levá-lo a sucessivas submissões para evitar o pior. No território de outros cães nunca se deverá soltar o nosso cachorro, ao invés, devemos mantê-lo à trela e debaixo da nossa protecção, cumprindo literalmente a expressão: “só por cima do meu cadáver”. Como cães não se integram automaticamente e tendem a proteger o seu grupo, liberte o seu cão da ira de uma matilha agressiva e não-sociabilizada, que é o que mais há por aí.
Permitir que outros cães comam e bebam das suas tigelas. Esta atitude canina parece inofensiva e até há quem lhe ache muita graça. Porém, ela é na maioria dos casos um acto de dominância, deliberado ou dissimilado, do tipo “a comida é minha” e “primeiro como eu e depois tu”. Quando pactuámos com esta situação, porque o patrão da comida é o dono do cão, estamos a pactuar com a ingerência, a promover o cão alheio e a despromover indevidamente o nosso cachorro, que obviamente sairá desta situação lamentavelmente mais submisso.
Alojá-lo com outros no espaço deles. Sempre que eu alojo o meu cachorro numa boxe ou canil com os seus residentes lá dentro é mais do que certo que acabará mordido e relegado para o espaço mais desprezível aos olhos dos outros, podendo ficar também proibido de sair de cair de lá. A esmagadora maioria dos cães é territorial e sem a intervenção humana dificilmente repartirá algo com um cachorro desconhecido. Quer fazer do seu cachorro um “saco de pancada”? Mande-o para dentro do alojamento de outros, principalmente de machos não-castrados. Depois de sair de uma situação destas e de “ter comido pela medida grossa”, como acha que o cachorro retornará? Na mesma? Mais seguro e valente do que dantes? Como diria Jô Soares – Tem pai que é cego!
Permitir que lhe roubem os pertences e brinquedos, especialmente os eventuais. Os brinquedos e demais pertences de um cão são “pessoais” e intransmissíveis, incluindo o seu “trem de limpeza” (utensílios da sua higiene diária). Estes acessórios servem para aproximar os donos dos cães e constituí-los em “família”, sendo ao mesmo tempo um registo da sua história e um corolário das suas vitórias. Por tudo isto não devem ser extensíveis a outros cães, para não quebrarem os vínculos afectivos entre o dono e o seu cachorro e pô-lo em pé de igualdade com outros, o que não deixa de ser uma maldade e uma traição para o animal. Os brinquedos do cachorro são pertencentes íntimos sobre os quais se lavrou um contrato de fidelidade e não meras coisas lúdicas que podemos lançar para os outros cães. Se eu lanço o brinquedo do meu cachorro para outro cão, estou a obrigá-lo a abdicar dele e a entregar ao outro aquilo que por direito lhe pertence, a despromovê-lo socialmente pela aceitação da hegemonia do cão alheio. Entregar a um cão estranho o brinquedo do nosso cachorro é empobrecê-lo do ponto de vista emocional. Assim, antes de lançar algo para o seu cão ir buscar, certifique-se que não há nenhum cão por perto, capaz de guerrear com ele pela sua posse e fazê-lo desistir violentamente da captura.
Forçá-lo ao convívio com cães não-sociabilizados. Convívios forçados e maus resultados rimam e acontecem com frequência. Nunca por nunca force o seu cachorro a conviver com cães não-sociabilizados, porque é mais do que certo que sairá de lá bastante magoado e amedrontado, quiçá demasiado submisso, o que dificultará a sua futura sociabilização, autonomia e desempenho. Nenhum cachorro deve ser humilhado, forçado a render-se ou experimentar a derrota diante de outro cão ou pessoa, ao invés, todos devem partir confiantes na certeza da vitória e é para isso que os adestradores cá estão!
Tudo o que aqui apontámos como razões suficientes para transformar um cachorro no capacho dos outros, sendo péssimo do ponto de vista pedagógico para um cão saudável, poderá ser usado em casos especiais na reeducação canina, visando a recuperação de certos indivíduos notoriamente dominantes. Entre nós, a enfâse na sociabilização canina acontece entre os 6 e os 10 meses de idade, entre a maturidade sexual dos cães e a altura em que os cães adultos já reconhecem os cachorros como iguais. Até lá queremos que todos os cachorros tenham uma infância feliz, que convivam sua descontraidamente sem escaramuças, que não se submetam uns aos outros, que usufruam de experiências variadas e ricas, que sejam audazes e não temam. Anteciparemos os trabalhos da sociabilização perante cachorros extraordinariamente agressivos e diante cães cujas raças são reconhecidamente anti-sociais. Se o seu cão nasceu valente, não lhe reserve o lugar dos fracos – seja um dono activo, atento, interessado e capaz!
Mesmo que involuntariamente tenha sujeito o seu cachorro a este conjunto de más experiências, desde que a excessiva submissão do animal não encontre razão em alguma menos valia genética, a sua total recuperação é possível, graças à potenciação de um dos seus principais impulsos herdados que será capaz de reabilitar os que lhe estão associados.

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