Há uma expressão muito em
uso na Acendura Brava que certamente sobreviverá ao seu desaparecimento: “cão a mais!”. Ela é vulgarmente usada
nas seguintes circunstâncias: quando a qualidade do cão é superior à do seu
condutor, quando o cão acerta perante o erro do dono; quando o dono não tem
condições para acompanhar o progresso do animal; quando o cão leva ao acerto do
dono (ensina-o); quando a capacidade atlética do animal não é acompanhada pela
disponibilidade física do seu condutor; quando o líder não consegue operar a
cessação pronta das acções do seu companheiro e quando o cão tudo faz para ser
compreendido e o dono não o entende, precariedade que poderá ser fatal para
ambos ou para terceiros, dependendo do serviço a executar pelo binómio.
Perante jovens mais duros
e obstinados, que tudo contestam e pouco fazem, dados ao desafio e carenciados
de disciplina, visando a melhoria do seu rendimento e progresso, nunca para os
desprestigiar, caso conduzam um cão de raça, a frase “cão a mais” é completada nalguns casos por outra: não admira, você é filho de uma emoção e o
cão de selecção”, sacudidela que geralmente produz o efeito esperado,
levando tais condutores à reflexão que abrevia o alcance da humildade e o gosto
por aprender, que normalmente andam interligados e geram a curiosidade que leva
ao entendimento. É evidente que tais sentenças não deverão ser aplicadas à
generalidade dos alunos humanos e muito menos àqueles que apesar do seu esforço
pouco têm para dar (evoluir).
Passemos a um exemplo prático do acerto cão perante o
erro do dono. Na década de 90 tivemos um aluno alemão chamado Egon Binger,
um ex-bancário sexagenário, divertido a seu modo, que veio para Portugal com
uma companheira e vários cães Pastores Alemães. Procurou-nos para ensinar os
cães e alcançou a nossa “Classe A”. Num fim-de-semana estival foi seleccionado,
junto com outros binómios, para uma prova de Agility como representante da
nossa escola. Ao entrar na pista decidiu apagar e guardar calmamente o seu
cachimbo, momento que o cão aproveitou para fazer o percurso sozinho
(infelizmente executou um salto no sentido errado e foi eliminado). Sem saber
porquê, o bom do alemão é confrontado com uma chuva de aplausos vinda da
bancada, ovação que muito agradeceu e que era dirigida ao cão (Ike).
Por maior que seja a
qualidade dos cães e o manifesto o seu desaproveitamento, convém relembrar que
o adestramento está cá para adequar os cães aos seus donos, pormenor que momentaneamente
podemos olvidar por sermos primeiro cinófilos e só depois cinotécnicos. Há de
facto muitos cães a mais por aí e
como tal, mesmo que ingloriamente, sempre instaremos com os donos para que
melhor os saibam compreender e aproveitar. Ao fazê-lo, livramo-nos de
responsabilidades mas não da tristeza que resulta de não nos fazermos ouvir.
Adestrador sofre e não é pouco!
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