Diz-se que a necessidade
aguça o engenho e, se assim é, compreendemos por que razão há agora tanta gente
que nada faz. Apesar do desemprego, da vida não estar fácil e o dinheiro estar
muito caro, já passámos por momentos mais difíceis que não queremos ter de volta,
tempos dominados pela economia de sobrevivência, aparentemente parados na
História, onde cada um, por falta doutras opções, era obrigado a desenrascar-se
conforme podia para valer-se a si e aos seus, quando caçar era uma necessidade
e não um desporto, numa sociedade sustentada pela agricultura que apenas supria
alguns e que condenava à penúria quase todos, fado antigo que antes nos obrigou
à descoberta de novos mundos e séculos mais tarde à emigração, à sempiterna
diáspora portuguesa.
No Alentejo, graças aos caprichos da natureza, a caça vinha ao encontro das famílias carenciadas e
cada um procurava apossar-se da que tinha à mão pelos meios ao seu dispor. Uma
das espécies mais cobiçadas era o coelho bravo e os populares desenvolveram um
conjunto de técnicas eficazes para a sua captura, numa época em que as armas de
fogo não estavam ao alcance de qualquer um e importava não fazer alarido. Acerca
deste assunto, registámos os relatos experientes do Sr. Bento Moedas, um
octogenário alentejano, homem franco, de origem humilde, hábil caçador e
profundo conhecedor da flora e da fauna das planícies do Sul, que a seu tempo
viria a ser agente da autoridade, actividade que ainda hoje lhe garante a
reforma.
Como as técnicas
utilizadas pelos alentejanos eram muitas, apenas adiantaremos algumas que hoje
parecem estranhas ao nosso viver urbano, que envolviam paus, laços, cães,
furões e motorizadas, meios que usavam de acordo com as circunstâncias e longe
dos olhares alheios, porque não faltavam proibições, a fiscalização era muita e
as multas incomportáveis. Caçava-se coelhos a pau com o auxílio dos cães, que
ao entrar nas moitas e nos silvados, expulsavam os coelhos das suas tocas,
cabendo aos caçadores abatê-los a cajado ou varapau, alcançando alguns nessa
arte rara mestria. Havia também quem caçasse a laço coelhos e javalis, método
infalível quando usado nos trilhos de passagem ou em direcção à água destes
animais, para além do uso de engenhosas armadilhas artesanais.
Foram os cães que melhor
serviram os intentos destes caçadores por subsistência, companheiros que se
tornaram exímios no auxílio aos homens, também eles votados a magras dietas,
infortúnio que mais lhes desenvolveu o instinto caçador e que nunca impediu a
fidelidade aos seus donos. Porém, a sagacidade dos cães era de pouco préstimo
sem o ensino dos seus mestres, a quem cabia ensinar-lhes os buracos ou tocas
onde deveriam internar-se. Todos os buracos nos silvados que tinham teias de
aranha eram desprezados e os cães afastados deles, porque não tinham coelhos.
Com o tempo e a experiência, os cães aprendiam a evitá-los avançando de
imediato para outros.
Apesar de repetidas vezes
proibida, a caça ao coelho com furões (Mustela
putorius furo) é milenar no Alentejo, muito embora estes animais possam ser
hoje aceites como pets, desde que registados no Instituto da Conservação da
Natureza e da Biodiversidade como tal. O uso dos furões não podia ser arbitrário,
particularmente nos buracos ou tocas onde as moscas-varejeiras se fizessem
presentes, sinal da existência de uma coelha parida ali (com coelhinhos
pequenos), o que interditava imediatamente o uso dos furões, porque uma vez
dentro da lura, comiam os coelhinhos e adormeciam por lá. Havia
criadores/caçadores com furões que os usavam como se fossem cães, mantendo com
estes animais inaudita e proveitosa cumplicidade.
E quando ao passar de
motorizada, velocípede a motor que poucos tinham, se avistava um número razoável
de coelhos e a ocasião era favorável, não havendo como recorrer a cães ou furões
para os fazer sair, era a motorizada que fazia o seu papel, ao prender-se uma
mangueira com uma braçadeira de arame ao seu tubo de escape, que ao ser introduzida
nos buracos, obrigava os coelhos atordoados a abandonar os seus abrigos, sendo
depois caçados à mão. Até há poucas décadas atrás, nascer e viver no Alentejo,
mercê da rudeza de vida, do clima e da paisagem, era tirar vários cursos de
sobrevivência e aguçar o engenho, não sendo por isso de estranhar que muitos
alentejanos viessem a ser incorporados nas tropas de elite dos três ramos das
Forças Armadas Portuguesas.
Ao invés de querermos
incentivar a actividade cinegética, dividimos este artigo com os nossos
leitores para relembrar tempos idos, em que cada alentejano, independentemente
do seu sexo, era um verdadeiro “Macgyver”, quer caçasse quer cozinhasse. E se
os homens foram grandes, os cães não lhes ficaram atrás! Hoje a maior parte do
Alentejo está a campo, os seus montes desertos ou quase desertos e os coelhos
mal se vêem, vítimas de várias pragas, de agressões químicas, da agricultura
ausente que também os sustentava e da crescente desertificação. Assim se caçou para
comer nos Algarves mais próximos e não foi assim há tanto tempo!
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