segunda-feira, 24 de outubro de 2016

DEIXEM-ME FALAR DE ALGUÉM PERSEGUIDO QUE NÃO DEVERÍAMOS TER ESQUECIDO!

Para começo de conversa, deixem que vos diga um facto: eu nunca temi os fortes e sempre fui vítima da malícia dos fracos, que ao serem velhacos, várias vezes me derribaram mas que nunca me venceram ou convenceram. Foi assim com os homens, assim aconteceu com os cães (outros queixar-se-ão do mesmo). Toda a vida adorei Pastores Alemães e ainda adoro, o que nunca me impediu de admirar o Rottweiler, que considero o cão mais leal e seguro que alguma vez conheci, hoje praticamente arredado do nosso panorama canino, mercê de políticas cinófobas, do sensacionalismo dos media e do pânico incontido de muitos, gente que nunca teve a oportunidade de o criar, conhecer e experimentar as suas múltiplas mais-valias, que apenas teme os seus dentes e que continua a desconhecer o muito que ele tem para dar, enquanto cão familiar e de utilidade, porquanto é humilde, meigo, calmo, cúmplice e dedicado, fácil de sociabilizar entre iguais, dum altruísmo a toda a prova, esforçado, pouco exigente e de fácil controlo, um serviçal na verdadeira acepção da palavra, ainda que destemido e valente como poucos. Por tudo isto talvez não seja um cão para todos mas jamais será esquecido por quem teve o privilégio de o ter como companheiro.
O que tinha e tem o Rottweiler de perigoso ou de ameaçador? Somente a sua envergadura e potência de mordedura, muito embora existam cães com menor envergadura e com maior potência de mordedura, mais dados à provocação, de controlo circunstancial, voláteis e por isso mesmo mais propensos ao disparate. Verdade seja dita: nem antes nem depois de ter sido considerado como raça perigosa foi o cão que causou maior número de vítimas, tanto aqui como lá fora, havendo outros ainda não indexados que nisso o suplantaram e muito, mantendo até à presente data a mesma saga! Analisando detalhadamente os seus ataques, que nunca foram recorrentes, chegamos à conclusão que ficaram-se a dever a três causas principais: a más condições de alojamento, a uma coabitação precária e a acidentes escusados, directamente relacionadas com o despreparo dos seus proprietários. Nunca houve em Portugal uma linha de criação totalmente independente de Rottweilers de trabalho relativa aos criados para exposição, apesar de terem sido importados alguns exemplares ditos de índole laboral nos alvores deste Século, que invariavelmente acabaram por beneficiar ou ser beneficiados pelos criados para os shows de conformação, pormenor que aqui não agravou a fama nem os danos atribuídos à raça. Ao contrário de outros, não há um Rottweiler de beleza e outro de trabalho, todos são um só cão, de igual potencial e idêntica prestação.
Se na estranja a discriminação da raça não pode ser desligada de uma política de ajuste de contas colmatada pelo politicamente correcto (alguém perdeu a guerra e ainda não tem assento como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas), aqui, onde tudo se copia e nada se contesta, apesar de intermináveis discussões, somos obrigados a reconhecer que o Rottweiler foi vítima de inimigos internos e externos. Externamente foi arrolado muito por culpa de outros molossos, nomeadamente dos anglo-americanos e de alguns latinos, desde há muito responsáveis por ataques a humanos de diferentes escalões etários e normalmente pertença de indivíduos tangentes à base da pirâmide social, de ocupação duvidosa e propósitos pouco dignos, o que levou as sociedades ocidentais a reprimir e a penalizar estes cães, a quem justificadamente identificou e catalogou como perigosos, exigindo em simultâneo alguns requisitos aos seus donos. Mais pelos critérios adoptados do que pelo seu histórico criminal, o Rottweiler acabou por se ver indexado à lista dos cães perigosos.
Os inimigos internos que o Rottweiler encontrou aqui foram vários e de acção devastadora, estamos a falar da inusitada proliferação de criadores da raça baseada na exagerada procura, nomeadamente por ocasião do boom do dinheiro fácil, acontecido logo após a entrada de Portugal na CEE e que levou muitos à aquisição da segunda habitação, gente que de um dia para outro entendeu necessitar também de um guardião, prestando-se o Rottweiler de sobremaneira para esse trabalho. A estes beneficiamentos desajustados, produto de uma selecção arbitrária, vieram juntar-se mercenários que se diziam treinadores e outros com pouca ou nenhuma experiência na raça, que entendiam que o robustecimento do carácter de um cão se remetia exclusivamente em “pô-lo a morder nas estrelas”, a despeito da obediência que impede os ataques instintivos, trava os acidentais e possibilita o controlo de qualquer cão (o Rottweiler é um cão extraordinariamente obediente). Como o aumento do poder de compra não foi secundado por um maior conhecimento da raça, a maioria dos proprietários deste molosso alemão acabou por pôr os seus cães nas mãos de terceiros, recebendo-os e largando-os depois ao redor das suas habitações sem saber como cuidá-los, liderá-los e o que fazer com eles, como sempre fizeram com os rafeiros a que estavam acostumados.
Todo o cão de qualquer raça, quando devidamente equilibrado, tem tanto de anjo como de demónio, porque é simultaneamente dependente e predador, apto para agradar ao dono, ávido de investiduras e louco para apresentar trabalho, muito embora os mais instintivos não sejam tanto assim. E se o comum dos cães é dependente, o seu comportamento sempre espelhará a maior ou menor qualidade da sua liderança, que deverá ajustar-se o mais possível ao seu perfil psicológico. O Rottweiler não é cão meramente instintivo e é rico em personalidade, um cão às ordens do dono que não busca autonomia para além daquela que lhe é estipulada. Por tudo o que dissemos, este excelente cão foi vítima da sua dependência ao ir parar a más mãos e ter sido traído por quem acompanhava, por lhe terem pago com infidelidade a fidelidade que nunca abandonou e por isso continua a ser discriminado e perseguido. O Rottweiler é um cão para todos? Não, não é, e quando o foi, o disparate instalou-se! Mais do que penalizar cães ou raças, importa responsabilizar e capacitar os seus proprietários, exigir-lhes garantias para que não atropelem ou massacrem os restantes cidadãos e o nosso viver democrático.
Hoje, quando raramente vejo um Rottweiler, lembro-me imediatamente dos muitos que me passaram pelas mãos, companheiros dedicados, meigos, pacientes, solícitos, irrepreensivelmente obedientes e aptos para um sem número de tarefas, animais únicos que primaram pela supremacia em relação aos demais. E, quando recordo os cães que mais me surpreenderam pela positiva e com os quais cresci profissionalmente, nesse pequeno grupo de eleitos encontro vários Rottweilers, cujos nomes o tempo não apagou e que dão vida à minha ténue existência. Eu não posso esquecê-los, eles vivem em mim!   

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