Para começo de conversa,
deixem que vos diga um facto: eu nunca temi os fortes e sempre fui vítima da
malícia dos fracos, que ao serem velhacos, várias vezes me derribaram mas que
nunca me venceram ou convenceram. Foi assim com os homens, assim aconteceu com
os cães (outros queixar-se-ão do mesmo). Toda a vida adorei Pastores Alemães e
ainda adoro, o que nunca me impediu de admirar o Rottweiler, que considero o
cão mais leal e seguro que alguma vez conheci, hoje praticamente arredado do
nosso panorama canino, mercê de políticas cinófobas, do sensacionalismo dos
media e do pânico incontido de muitos, gente que nunca teve a oportunidade de o
criar, conhecer e experimentar as suas múltiplas mais-valias, que apenas teme
os seus dentes e que continua a desconhecer o muito que ele tem para dar,
enquanto cão familiar e de utilidade, porquanto é humilde, meigo, calmo, cúmplice
e dedicado, fácil de sociabilizar entre iguais, dum altruísmo a toda a prova,
esforçado, pouco exigente e de fácil controlo, um serviçal na verdadeira
acepção da palavra, ainda que destemido e valente como poucos. Por tudo isto
talvez não seja um cão para todos mas jamais será esquecido por quem teve o
privilégio de o ter como companheiro.
O que tinha e tem o
Rottweiler de perigoso ou de ameaçador? Somente a sua envergadura e potência de
mordedura, muito embora existam cães com menor envergadura e com maior potência
de mordedura, mais dados à provocação, de controlo circunstancial, voláteis e
por isso mesmo mais propensos ao disparate. Verdade seja dita: nem antes nem
depois de ter sido considerado como raça perigosa foi o cão que causou maior
número de vítimas, tanto aqui como lá fora, havendo outros ainda não indexados
que nisso o suplantaram e muito, mantendo até à presente data a mesma saga!
Analisando detalhadamente os seus ataques, que nunca foram recorrentes,
chegamos à conclusão que ficaram-se a dever a três causas principais: a más
condições de alojamento, a uma coabitação precária e a acidentes escusados,
directamente relacionadas com o despreparo dos seus proprietários. Nunca houve
em Portugal uma linha de criação totalmente independente de Rottweilers de
trabalho relativa aos criados para exposição, apesar de terem sido importados
alguns exemplares ditos de índole laboral nos alvores deste Século, que
invariavelmente acabaram por beneficiar ou ser beneficiados pelos criados para
os shows de conformação, pormenor que aqui não agravou a fama nem os danos
atribuídos à raça. Ao contrário de outros, não há um Rottweiler de beleza e
outro de trabalho, todos são um só cão, de igual potencial e idêntica
prestação.
Se na estranja a
discriminação da raça não pode ser desligada de uma política de ajuste de
contas colmatada pelo politicamente correcto (alguém perdeu a guerra e ainda
não tem assento como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações
Unidas), aqui, onde tudo se copia e nada se contesta, apesar de intermináveis
discussões, somos obrigados a reconhecer que o Rottweiler foi vítima de
inimigos internos e externos. Externamente foi arrolado muito por culpa de
outros molossos, nomeadamente dos anglo-americanos e de alguns latinos, desde
há muito responsáveis por ataques a humanos de diferentes escalões etários e
normalmente pertença de indivíduos tangentes à base da pirâmide social, de
ocupação duvidosa e propósitos pouco dignos, o que levou as sociedades
ocidentais a reprimir e a penalizar estes cães, a quem justificadamente
identificou e catalogou como perigosos, exigindo em simultâneo alguns
requisitos aos seus donos. Mais pelos critérios adoptados do que pelo seu
histórico criminal, o Rottweiler acabou por se ver indexado à lista dos cães
perigosos.
Os inimigos internos que o
Rottweiler encontrou aqui foram vários e de acção devastadora, estamos a falar
da inusitada proliferação de criadores da raça baseada na exagerada procura,
nomeadamente por ocasião do boom do dinheiro fácil, acontecido logo após a
entrada de Portugal na CEE e que levou muitos à aquisição da segunda habitação,
gente que de um dia para outro entendeu necessitar também de um guardião,
prestando-se o Rottweiler de sobremaneira para esse trabalho. A estes
beneficiamentos desajustados, produto de uma selecção arbitrária, vieram
juntar-se mercenários que se diziam treinadores e outros com pouca ou nenhuma
experiência na raça, que entendiam que o robustecimento do carácter de um cão
se remetia exclusivamente em “pô-lo a morder nas estrelas”, a despeito da
obediência que impede os ataques instintivos, trava os acidentais e possibilita
o controlo de qualquer cão (o Rottweiler é um cão extraordinariamente
obediente). Como o aumento do poder de compra não foi secundado por um maior
conhecimento da raça, a maioria dos proprietários deste molosso alemão acabou por
pôr os seus cães nas mãos de terceiros, recebendo-os e largando-os depois ao
redor das suas habitações sem saber como cuidá-los, liderá-los e o que fazer
com eles, como sempre fizeram com os rafeiros a que estavam acostumados.
Todo o cão de qualquer
raça, quando devidamente equilibrado, tem tanto de anjo como de demónio, porque
é simultaneamente dependente e predador, apto para agradar ao dono, ávido de
investiduras e louco para apresentar trabalho, muito embora os mais instintivos
não sejam tanto assim. E se o comum dos cães é dependente, o seu comportamento
sempre espelhará a maior ou menor qualidade da sua liderança, que deverá ajustar-se
o mais possível ao seu perfil psicológico. O Rottweiler não é cão meramente
instintivo e é rico em personalidade, um cão às ordens do dono que não busca autonomia
para além daquela que lhe é estipulada. Por tudo o que dissemos, este excelente
cão foi vítima da sua dependência ao ir parar a más mãos e ter sido traído por
quem acompanhava, por lhe terem pago com infidelidade a fidelidade que nunca
abandonou e por isso continua a ser discriminado e perseguido. O Rottweiler é
um cão para todos? Não, não é, e quando o foi, o disparate instalou-se! Mais do
que penalizar cães ou raças, importa responsabilizar e capacitar os seus
proprietários, exigir-lhes garantias para que não atropelem ou massacrem os
restantes cidadãos e o nosso viver democrático.
Hoje,
quando raramente vejo um Rottweiler, lembro-me imediatamente dos muitos que me
passaram pelas mãos, companheiros dedicados, meigos, pacientes, solícitos,
irrepreensivelmente obedientes e aptos para um sem número de tarefas, animais
únicos que primaram pela supremacia em relação aos demais. E, quando recordo os
cães que mais me surpreenderam pela positiva e com os quais cresci
profissionalmente, nesse pequeno grupo de eleitos encontro vários Rottweilers,
cujos nomes o tempo não apagou e que dão vida à minha ténue existência. Eu não
posso esquecê-los, eles vivem em mim!
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