Esta semana chegou-nos uma
Malinois, recém-parida, mal nutrida, com marcas de fractura na cauda e varrida
de molares e pré-molares no seu maxilar inferior. Espantados com o infortúnio
daquele animal, perguntámos ao seu proprietário, um jovem pouco fundamentado e
dado ao entusiasmo, porque razões a cadela tinha fracturado a cauda e ficado
desdentada. O rapaz, com a maior naturalidade do mundo e esboçando um sorriso
nos lábios, respondeu-nos: “Sabe como é a malta do trabalho!” A cauda quebrou-a pela excitação e a ênfase
na mordida levou-lhe os dentes de leite, violência que obrigou também à
extracção dos definitivos por terem ficado irremediavelmente inclusos!? Tudo
isto aconteceu numa insuspeita escola canina, debaixo da confiança cega que
leva os alunos a obedecer aos seus “mestres”.
Como este não é um episódio
isolado, porque situações idênticas repetem-se com os mesmos intervenientes,
importa diferenciar o que é a guarda real e a desportiva, os currículos de uma
e de outra para melhor se entender as suas diferentes filosofias, práticas,
metas e objectivos. Ainda que os seus mentores o neguem, a maioria dos cães
destinados à guarda desportiva será imprópria para a guarda efectiva (real), vindo
a executar exclusivamente as suas performances condicionadas em provas e
exibições, descansando da sua azáfama em casa, quando deveriam estar a
guardá-la. E quando indevidamente se vêem obrigados a fazê-lo, são alvos fáceis
de abater ou de ludibriar, porque avisam em demasia, denunciam a sua presença e
jogam-se aos portões, porque são mais ofensivos que defensivos e não conseguem
dissimular-se, vícios que poderão comprometer a sua vida e serviço.
A guarda real é por
natureza mais defensiva que ofensiva e por causa disso, para além da surpresa,
preocupa-se mais com a defesa dos cães, sabendo que eles se encontram em
desvantagem no confronto directo com o homem. Aos ataques deliberados e
estridentes, tirados a partir da ânsia, dos instintos e por vezes da fome, a
guarda real contrapõe a atribuição de um lugar de vigia para os cães (treina-os
para não serem vistos nem ouvidos), condiciona-os a só avançar debaixo de
vantagem e a carregar sobre os invasores só depois da intrusão. E se há que ter
um cão de aviso, esse não será o guardião, mas outro próprio para isso, um cão
mais pequeno, sensível, activo, barulhento e nada atemorizador.
Para além dos ataques e do
desarme, a recusa de engodos torna-se imperativa, o ataque a alvos imóveis
imprescindível (um invasor imobilizado ou com uma pistola não se mexe), também a
progressão desenfiada em direcção a um homem munido de arma de fogo, a retirada
estratégica é enfatizada, o afastamento dos portões é condicionamento
obrigatório, pois há que arredar os cães do raio de acção dos laços e dos
sprays, ensiná-los a diminuir a sua silhueta e a procurarem áreas de ocultação,
porque todo o cão que é visto é de fácil eliminação, o que torna a ocultação palavra
de ordem na guarda real (o cão não reage à provocação, aguarda silencioso o seu
tempo de acção e não perturba o sono dos vizinhos). Se na guarda desportiva a
autonomia do cão visa a captura, na real ela procura a sua salvaguarda. Alcançar
tamanha autonomia não dispensa a riqueza de personalidade presente nos cães
curiosos, que evoluem pela vontade do dono e não pela cegueira dos seus instintos.
E depois, os cães da guarda desportiva estão acostumados a vencer, os destinados
à guarda real não podem perder, uns atacam por rotina e os outros lutam pela
própria vida.
De que nos servirá um cão
amputado ou fragilizado que marche em direcção à morte? Treinar cães para
guarda não é um espectáculo, é tudo fazer para que permaneçam ao nosso lado por
mais tempo, evitar que se exponham desnecessariamente e torná-los vencedores -
fazer um guardião é apostar na sua sobrevivência!
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