Por vezes aceitamos
mentiras como verdades e resistimos em largá-las, pelo que tudo merece ser contestado
até ao alcance da verdade. Nunca deixaremos de ter dúvidas, o que é um abençoado
desassossego, porque doutro modo jamais o mundo evoluiria e encontraríamos
solução para os problemas/desafios actuais e vindouros. Assim como nenhuma
ciência pode sustentar-se em dogmas, a canicultura, enquanto prática
científica, também não. Nos cães com pedigree julgamos o todo pela parte e temos
feito dela padrão, numa apreciação à vista que se conforma com a uniformidade
exterior e que menos atenta para as qualidades laborais das diferentes raças, hoje
alheadas dessas mais-valias e por isso mesmo demeritórias, graças a um
rudimentar e ultrapassado processo eugénico negativo que constituído em “verdade
absoluta” teima em nos deixar. Poderá uma raça ter diferentes apresentações e
mesmo assim ser identificada como tal? Serão só as marcas exteriores que
determinarão as diferenças raciais? Não será o comportamento (desempenho) um
dos melhores marcadores duma raça? Estará o actual conceito de raça
ultrapassado?
Talvez um estudo recente,
levado a cabo pelo NHGRI (National Human Genome Research Institute/USA) e pelas
Universidades italianas de Milão e de Gabriele d’Annunzio (Pescara), possa
responder a estas questões através das conclusões adiantadas e já publicadas (1)
acerca do Cão de Fonni (Cane Fonnese em italiano), um cão de pastoreio grande, endémico
da Sardenha, territorial, guardião e leal, não reconhecido pela FCI, relacionado
com o Saluki (Lebrel árabe) e com o Komondor, um molosso húngaro de pelo de
arame. Surpreendentemente, os cientistas das Universidades atrás adiantadas,
comprovaram que o mapa das origens deste cão é o mesmo que foi seguido pela
migração humana para a Sardenha, cujos habitantes apresentam similaridades
genéticas com os povos da Hungria, Egipto, Israel e Jordânia. Ainda segundo os
mesmos cientistas, apesar do Cão de Fonni apresentar uma grande variação de
cores e tipos de manto, ele tornou-se numa verdadeira raça através da selecção operada
pelo seu comportamento distinto, uma vez que foi e continua a ser criado para o
trabalho do pastoreio, tarefa que executa de forma irrepreensível. Esta
conclusão veio ratificar o que Max Stephanitz há muito havia dito: “se o cão é
bom, a sua cor não pode ser ruim”.
Todos sabemos que o Cão de
Pastor Alemão está de rastos, literalmente de rastos, dos pontos de vista
morfológico, atlético, psicológico e cognitivo, que a sua saúde é precária e o
seu desempenho laboral sofrível, transtornos resultantes duma selecção
maioritariamente estética que tem vindo a desprezar a aprovação no trabalho
para a continuidade da raça, desleixo que trouxe consigo alterações biomecânicas
e comportamentais, menor saúde e aptidão, tudo reflexo da saturação operada
sobre uma das suas variedades cromáticas (preto-afogueado), como se a
excelência da raça só nela habitasse. Até à presidência de Caspar Katzmair
(1945-1956) a raça manteve os índices laborais que a caracterizaram desde
sempre e não se afundou em fantochadas cromáticas. Depois dela e em particular
durante a presidência dos Srs. Hermann Martin e Peter Meßler, a raça entrou
em agonia (esperamos que o Sr. Wolfgang Henke consiga lapidar a pesada herança
que os seus antecessores lhe deixaram, tarefa que não se afigura fácil, apesar
do homem ser só sorrisos).
Para retornar ao carácter
distintivo do Pastor Alemão, é importante requalificar as variedades recessivas
ainda presentes na raça, portadoras das mais-valias físicas e cognitivas em
falta na variedade cromática tornada dominante, reintegrar a variedade branca
que foi varrida por uma decisão política e que traz à raça maior equilíbrio,
legitimar a variedade Red Sable e outras, tornadas indesejáveis pela
subjectividade e pela ignorância, porque todas elas contribuíram para o
excelente cão que tivemos e que hoje não temos. A certeza do que dizemos
vêm-nos da experiência e da correria apressada aos exemplares negros e
lobeiros, que isoladamente e em desigualdade perante outros teimam em manter
viva a qualidade original dos Pastores Alemães nas suas múltiplas funções
laborais. E assim não acontecer, como tem vindo a suceder até aqui,
assistiremos à supremacia dos mestiços sobre “os puros” oriundos shows de conformação
ou ao destaque dos Pastores Belgas. Há que corrigir os erros do passado!
Convém não esquecer que o
Cão de Pastor Alemão impôs-se pela sua cumplicidade, disponibilidade, prontidão,
equilíbrio, capacidade de aprendizagem, versatilidade e valentia, qualidades
hoje em falta naqueles que hoje usam o seu nome e que evoluem de cócoras e sem
préstimo. Uma raça de trabalho não se define somente pelas suas marcas
exteriores, distingue-se também e ainda mais pelo seu comportamento, comportamento
que garante a aprovação nas tarefas para as quais foi criada.
(1)In The Journal “Genetics Society of America”
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