quinta-feira, 6 de outubro de 2016

COMO AUMENTAR A AUTONOMIA FUNCIONAL CANINA

Para operar o desenvolvimento da autonomia funcional canina somos obrigados a considerar um conjunto de factores internos e externos que são cumulados pela experiência dividida entre homens e cães, já que a dependência canina, resultante dos milénios do processo de domesticação, impede agora que os estes companheiros consigam solucionar por si próprios os problemas e desafios que lhes são colocados, nomeadamente os relativos à sua sobrevivência, reflexo dos mecanismos de inibição cerebral que obstam à sua autonomia mas que simultaneamente tornam possível a sua adaptação e ensino satisfatórios. O cão é um invento humano e a sua maior ou menor autonomia funcional irão depender dos seus criadores e agentes de ensino (donos e treinadores), segundo a sua carga genética e riqueza de experiência. Autonomia por autonomia têm os lobos, mas de pouco ou nenhum proveito directo para nós porque a usam para proveito próprio. E perante isto que ninguém se iluda: um cão-lobo será tanto melhor quanto menos lobo for, o que torna os actuais numa reinvenção mais mítica do que necessária, num retorno aos problemas do passado que há muito solucionámos. E se tivermos de recorrer aos lobos ou a outros canídeos selvagens para valer os cães, é porque os saturámos ou estoirámos. E quando assim acontece, iremos suportar os mesmos reveses que outros experimentaram logo na Pré-História.
Importa primeiro desambiguar o que entendemos por “autonomia funcional”, que outra coisa não é que a autonomia doada aos cães para seu e nosso proveito, considerando a sua salvaguarda, os diferentes serviços complementares que lhes atribuímos e que podem dispensar a presença dos seus treinadores/proprietários, o que de imediato nos lança para a primeira questão: o que se espera dos criadores? Deseja-se que saibam do seu ofício; que procedam à escolha acertada dos progenitores para cada ninhada; que enriqueçam as dietas das cadelas gestantes e que disponibilizem cachorros fortes, saudáveis e equilibrados de acordo com o estalão da raça que aperfilharam, libertos dos flagelos que vulgarmente a afectam e que são transmitidos por via genética, imperfeições que geram incapacidades dolorosas e inibitórias, que comprometem o seu desempenho laboral e diminuem-lhes tanto a qualidade quanto a esperança de vida (cada raça tem as suas).
Para melhor contextualizar e explicar o que acabámos de dizer, servir-nos-emos do exemplo do Cão de Pastor Alemão. Criador que sabe do seu ofício é aquele que procura, ninhada após ninhada, alcançar melhores cachorros, que despreza a endogamia e abomina a consanguinidade, que não procura o lucro pela subnutrição, magreza ou raquitismo dos cachorros, já que é vergonhoso entregá-los às 8 semanas de vida com menos de 5 kg. A escolha acertada dos progenitores, que transforma as cópulas em beneficiamentos de facto, mais que um conserto possível, deve casa-los perfeitamente para produzirem uma prole superior em virtude às presentes em cada um deles, considerando as necessárias mais-valias físicas, mecânicas, psicológicas, cognitivas e funcionais, acerto impossível ou virtual se esses progenitores nunca forem testados e aprovados no trabalho. A qualidade de um cão nas suas múltiplas atribuições, nas quais podemos também e incluir sem margem para dúvidas a sua autonomia funcional, deve mais à genética que ao treino e jamais o último conseguirá reverter cabalmente os entraves da primeira, até porque o treino não tem o poder de fazer renascer os cães, antes se aproveita do seu potencial inato, podendo eventual disfarçar-lhes algumas das mazelas, o que nem sempre está ao alcance de todos.
Cachorros bem aprumados, robustos, seguros, bem apetrechados de máquina sensorial, curiosos e com bom impulso ao conhecimento são fáceis de ensinar e alcançarão naturalmente maior autonomia funcional, vindo a ser próprios para pistar, guardar e rondar, assumindo sem maiores dificuldades outros trabalhos complementares e/ou acessórios. Como não restam dúvidas a ninguém e como ainda não estamos a falar do treino propriamente dito, o alcance destas características imprescindíveis ao trabalho é da obrigação dos criadores. Pode um excelente cão vir a ter um desempenho precário e uma autonomia deficitária? Sem dúvida! Qualquer cachorro entregue a más-mãos e/ou sujeito a um treino inadequado, porque é um ser social e dependente, razões que possibilitam a reeducação de todo e qualquer cão, pode transformar-se num imprestável por via de experiências atentatórias à sua natureza por desuso, desaproveitamento e oposição. E como os primeiros agentes de ensino dos cães são os donos, de imediato se levanta outra questão: Como deverão proceder os donos com os seus cachorros para não comprometerem a autonomia com que nasceram e que deles é esperada?
Ainda que o não sejam de facto, os criadores são por intromissão (selecção e imprinting) os pais biológicos dos cachorros, e se os considerarmos assim, com mais propriedade diremos que os seus donos serão os seus pais pedagógicos, não sobrando disto qualquer abordagem, consideração ou incontido desejo antropomórfico. Para que amanhã os cachorros se desenvencilhem sozinhos, depois de convenientemente treinados para o efeito, é necessário que os seus proprietários saibam aproveitar a sua carga genética e a desenvolvem em conformidade com as actividades ou serviços que futuramente lhes atribuirão. Tendo em vista a autonomia funcional pretendida, a constituição dum cão autónomo, confiante e prestável, a primeira coisa a considerar é a sua instalação, que deverá acontecer o mais próximo possível do dono e não isoladamente, para que o infante se sinta e cresça seguro no grupo familiar que o adoptou e mais tarde venha a mostrar-se zeloso pela sua integridade e bens, a revelar-se um cúmplice, um auxiliar ou um protector.
Uma vez o cachorro instalado importa desenvolver com ele actividades propiciatórias ao treino, pequenos jogos de interacção que antevêem o condicionamento futuro. Estamos a falar da procura do dono, do uso, arremesso e transporte de brinquedos específicos para a função, de passeios diurnos e nocturnos, da familiarização com outros animais domésticos, da tolerância necessária para as pequenas diabruras e do estabelecimento gradual de regras que o seu crescimento vai permitindo, sabendo-se que a relação tratamento acertado-treino nunca volta de mãos vazias.
Como não podia deixar de ser, se os criadores são os “pais biológicos” dos cachorros e os donos os pedagógicos, os treinadores irão ser os seus mestres. Poderá um treinador contrariar a boa carga genética e a profícua experiência anterior ao treino dum cachorro, comprometendo assim o seu desenvolvimento e autonomia funcional? Infelizmente sim, mercê de um currículo repetitivo, pobre, isento de metas, objectivos e índice de progresso, somado a exercícios abruptos e sem prévio preparo, quando não goza de empatia com o animal, não o recompensa, vai contra o seu potencial ou o obriga a uma investidura que despreza. É importante não esquecer que os cães aprendem com a experiência e que o seu ensino é dinâmico, que o seu desenvolvimento cognitivo e desempenho exigem o bom preparo físico, sem o qual a sua autonomia funcional será por demais diminuta e carente de condições particulares. O cão deverá trabalhar sempre confiado nos seus mestres e estes obrigam-se a tirar dele o máximo rendimento, respeitando as suas dificuldades e encontrando-lhes solução, amparando-o sempre que necessário para ir mais adiante. E como é difícil encontrar bons criadores, bons proprietários e bons treinadores, muitos cães, à revelia do que são, acabam condenados à inibição e à mediocridade, presos a uma corrente ou enjaulados para toda a vida.

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