Para operar o
desenvolvimento da autonomia funcional canina somos obrigados a considerar um conjunto
de factores internos e externos que são cumulados pela experiência dividida
entre homens e cães, já que a dependência canina, resultante dos milénios do
processo de domesticação, impede agora que os estes companheiros consigam
solucionar por si próprios os problemas e desafios que lhes são colocados,
nomeadamente os relativos à sua sobrevivência, reflexo dos mecanismos de
inibição cerebral que obstam à sua autonomia mas que simultaneamente tornam
possível a sua adaptação e ensino satisfatórios. O cão é um invento humano e a sua maior ou menor autonomia funcional
irão depender dos seus criadores e agentes de ensino (donos e treinadores),
segundo a sua carga genética e riqueza de experiência. Autonomia por autonomia
têm os lobos, mas de pouco ou nenhum proveito directo para nós porque a usam
para proveito próprio. E perante isto que ninguém se iluda: um cão-lobo será
tanto melhor quanto menos lobo for, o que torna os actuais numa reinvenção mais
mítica do que necessária, num retorno aos problemas do passado que há muito
solucionámos. E se tivermos de recorrer aos lobos ou a outros canídeos
selvagens para valer os cães, é porque os saturámos ou estoirámos. E quando
assim acontece, iremos suportar os mesmos reveses que outros experimentaram
logo na Pré-História.
Importa primeiro
desambiguar o que entendemos por “autonomia
funcional”, que outra coisa não é que a autonomia doada aos cães para seu e
nosso proveito, considerando a sua salvaguarda, os diferentes serviços
complementares que lhes atribuímos e que podem dispensar a presença dos seus
treinadores/proprietários, o que de imediato nos lança para a primeira
questão: o que se espera dos criadores? Deseja-se que saibam do seu ofício; que
procedam à escolha acertada dos progenitores para cada ninhada; que enriqueçam as
dietas das cadelas gestantes e que disponibilizem cachorros fortes, saudáveis e
equilibrados de acordo com o estalão da raça que aperfilharam, libertos dos
flagelos que vulgarmente a afectam e que são transmitidos por via genética,
imperfeições que geram incapacidades dolorosas e inibitórias, que comprometem o
seu desempenho laboral e diminuem-lhes tanto a qualidade quanto a esperança de
vida (cada raça tem as suas).
Para melhor contextualizar
e explicar o que acabámos de dizer, servir-nos-emos do exemplo do Cão de Pastor
Alemão. Criador que sabe do seu ofício é aquele que procura, ninhada após
ninhada, alcançar melhores cachorros, que despreza a endogamia e abomina a
consanguinidade, que não procura o lucro pela subnutrição, magreza ou
raquitismo dos cachorros, já que é vergonhoso entregá-los às 8 semanas de vida
com menos de 5 kg. A escolha acertada
dos progenitores, que transforma as cópulas em beneficiamentos de facto, mais que
um conserto possível, deve casa-los perfeitamente para produzirem uma prole
superior em virtude às presentes em cada um deles, considerando as necessárias
mais-valias físicas, mecânicas, psicológicas, cognitivas e funcionais, acerto impossível
ou virtual se esses progenitores nunca forem testados e aprovados no trabalho. A qualidade de um cão nas suas
múltiplas atribuições, nas quais podemos também e incluir sem margem para
dúvidas a sua autonomia funcional, deve
mais à genética que ao treino e jamais o último conseguirá reverter
cabalmente os entraves da primeira, até porque o treino não tem o poder de
fazer renascer os cães, antes se aproveita do seu potencial inato, podendo eventual
disfarçar-lhes algumas das mazelas, o que nem sempre está ao alcance de todos.
Cachorros
bem aprumados, robustos, seguros, bem apetrechados de máquina sensorial,
curiosos e com bom impulso ao conhecimento são fáceis de
ensinar e alcançarão naturalmente maior autonomia funcional, vindo a ser
próprios para pistar, guardar e rondar, assumindo sem maiores dificuldades
outros trabalhos complementares e/ou acessórios. Como não restam dúvidas a
ninguém e como ainda não estamos a falar do treino propriamente dito, o alcance destas características imprescindíveis
ao trabalho é da obrigação dos criadores. Pode um excelente cão vir a ter
um desempenho precário e uma autonomia deficitária? Sem dúvida! Qualquer
cachorro entregue a más-mãos e/ou sujeito a um treino inadequado, porque é um
ser social e dependente, razões que possibilitam a reeducação de todo e
qualquer cão, pode transformar-se num imprestável por via de experiências
atentatórias à sua natureza por desuso, desaproveitamento e oposição. E como os
primeiros agentes de ensino dos cães são os donos, de imediato se levanta outra
questão: Como deverão proceder os donos com os seus cachorros para não
comprometerem a autonomia com que nasceram e que deles é esperada?
Ainda que o não sejam de
facto, os criadores são por intromissão
(selecção e imprinting) os pais biológicos dos cachorros, e se os considerarmos
assim, com mais propriedade diremos que os seus donos serão os seus pais
pedagógicos, não sobrando disto qualquer abordagem, consideração ou incontido
desejo antropomórfico. Para que amanhã os cachorros se desenvencilhem sozinhos,
depois de convenientemente treinados para o efeito, é necessário que os seus
proprietários saibam aproveitar a sua carga genética e a desenvolvem em
conformidade com as actividades ou serviços que futuramente lhes atribuirão.
Tendo em vista a autonomia funcional pretendida, a constituição dum cão
autónomo, confiante e prestável, a
primeira coisa a considerar é a sua instalação, que deverá acontecer o mais
próximo possível do dono e não isoladamente, para que o infante se sinta e
cresça seguro no grupo familiar que o adoptou e mais tarde venha a mostrar-se
zeloso pela sua integridade e bens, a revelar-se um cúmplice, um auxiliar ou um
protector.
Uma
vez o cachorro instalado importa desenvolver com ele
actividades propiciatórias ao treino, pequenos
jogos de interacção que antevêem o condicionamento futuro. Estamos a falar
da procura do dono, do uso, arremesso e transporte de brinquedos específicos
para a função, de passeios diurnos e nocturnos, da familiarização com outros
animais domésticos, da tolerância necessária para as pequenas diabruras e do
estabelecimento gradual de regras que o seu crescimento vai permitindo, sabendo-se
que a relação tratamento acertado-treino nunca volta de mãos vazias.
Como não podia deixar de
ser, se os criadores são os “pais biológicos” dos cachorros e os donos os pedagógicos,
os treinadores irão ser os seus mestres.
Poderá um treinador contrariar a boa carga genética e a profícua experiência
anterior ao treino dum cachorro, comprometendo assim o seu desenvolvimento e
autonomia funcional? Infelizmente sim, mercê de um currículo repetitivo, pobre,
isento de metas, objectivos e índice de progresso, somado a exercícios abruptos
e sem prévio preparo, quando não goza de empatia com o animal, não o
recompensa, vai contra o seu potencial ou o obriga a uma investidura que despreza.
É importante não esquecer que os cães aprendem com a experiência e que o seu
ensino é dinâmico, que o seu desenvolvimento cognitivo e desempenho exigem o
bom preparo físico, sem o qual a sua autonomia funcional será por demais
diminuta e carente de condições particulares. O cão deverá trabalhar sempre confiado nos seus mestres e estes
obrigam-se a tirar dele o máximo rendimento, respeitando as suas dificuldades e
encontrando-lhes solução, amparando-o
sempre que necessário para ir mais adiante. E como é difícil encontrar bons
criadores, bons proprietários e bons treinadores, muitos cães, à revelia do que
são, acabam condenados à inibição e à mediocridade, presos a uma corrente ou
enjaulados para toda a vida.
Sem comentários:
Enviar um comentário