A pergunta que antecede
este artigo é ouvida vezes sem conta por todo o lado, quando alguém deseja
saber qual o sexo do cão que transportamos. Os termos utilizados são hoje
corriqueiros e politicamente correctos, apesar de imprecisos, antropomórficos e
desrespeitadores da espécie canina, geralmente proferidos por pessoas bem-intencionadas
e sensíveis, contudo pouco conhecedoras do que é devido aos cães, que ao invés
de quererem ser meninos ou meninas, preferem que os tratem de acordo com as
necessidades e expectativas da sua espécie. Tratá-los assim, tal qual crianças,
pode causar obstáculos à sua saúde, bem-estar, sociabilização e longevidade,
quando por detrás desse tratamento carinhoso são privados de direitos que não
dispensam.
Muitos dos cães tratados
como “meninos” e “meninas” raramente saem à rua, são obesos, comem rações de
qualidade duvidosa, sujeitam-se a petiscos nocivos, apresentam problemas gastrointestinais,
raramente são escovados, tomam banhos em demasia, têm o seu prato no chão e não
sabem circular em segurança na via pública, desconhecendo alguns dos seus
proprietários qual a sua temperatura normal e os cuidados a haver com eles nas
diferentes estações do ano, quando não se “esquecem” de os desparasitar e
vacinar. Diante destes casos perguntar “se é menino ou menina” é a mais pura
das hipocrisias, um verdadeiro faz de conta que os cães irão penosamente pagar.
Naturalmente todos os cães
precisam de sair e os que não querem têm os dias contados, porque a manipulação
humana na sua selecção para isso contribuiu. Deseja-se que qualquer cão, em
abono do seu bem-estar psicológico, físico e social, passe pelo menos uma hora
na rua ou que caminhe com o seu dono uma légua diária, obrigação que muitos descartam
pela “indisponibilidade” ou pelas dificuldades que encontram, ficando os seus “meninos”
pendurados às janelas e condenados ao chiqueiro. Este sair à rua não deverá ser
com os cães esganados e os donos aos tropeções, tal qual dois ébrios a puxar
para lados opostos. Importa que este passeio, que é ao mesmo tempo higiénico,
salutar e social, seja agradável para ambos, exigência e prazer que nos remetem
para a educação canina.
Sem educação qualquer cão
é um menino rabino, porque não tem quem o ensine e faz o que lhe dá na gana, transformando-se
num inadaptado sem préstimo e concorrente a vários perigos. Ainda que os cães
gozem em casa da tolerância dos donos, na via pública deverão saber comportar-se
e encontrar-se preparados para os desafios que ali encontrarão. Assim, deverão
ficar condicionados a parar e a sentar-se junto das passadeiras para peões,
avançando depois à ordem dos seus condutores, não reagir agressivamente contra qualquer
animal com quem se cruzem, exigindo-se o mesmo cuidado com ciclistas,
invisuais, deficientes, crianças, idosos e minorias raciais, comportar-se
silenciosa e ordeiramente nas esplanadas, não disputar os brinquedos das
crianças, não pedinchar comida a terceiros, não esburacar os canteiros dos
jardins ou urinar às portas doutros moradores.
Por mais educados que sejam
os cães jamais serão meninos, ainda que os seus donos os entendam assim. A
humanização dos cães, que não dá resposta às suas necessidades e que não vai ao
encontro das aspirações da sua espécie, é uma promoção para a qual não se
encontram naturalmente preparados e que comummente malbaratam, acabando por
escravizar os seus proprietários e ser alvo da embirração dos demais, pelos
incómodos que lhes causam. Infelizmente, não podemos dissociar a humanização
canina duma série de alterações de cariz social visíveis no homem
contemporâneo, designadamente o número de solteiros de todas as idades, o
aumento de casais sem filhos, a política do filho único, as famílias
monoparentais, as constituídas por homossexuais e o isolamento a que se
encontram votados os idosos, situações cuja novidade exige dos indivíduos
alguma compensação afectiva e que acabam por encontrá-la nos cães, que para
além de companheiros acabam também por ser terapeutas.
Mas se usarmos os cães
unicamente por aquilo que representam ou pelo que nos dão, malogrado o
tratamento de “meninos”, estamos perante uma manifestação encapotada do velho e
odiado especismo que todos dizemos abominar. Eles devem primeiro ser
respeitados pelo que são e só depois usados para o que nos dão (o
relacionamento entre homens e cães deve basear-se numa permuta). Terão todos
condições para ter um cão? É evidente que não, considerando a sua saúde,
bem-estar e longevidade, obrigações que não dispensam a disponibilidade
temporal, afectiva, pedagógica, física e financeira dos seus donos. De que
valerá tratá-los como meninos, se continuam cães? Não será melhor tratá-los
como cães e fazê-los felizes?
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