sábado, 10 de julho de 2010

Ser mestre no reino dos sentimentos

Abraçar a carreira do adestramento, profissional ou amadora, é aceitar um dos maiores desafios: o de ser mestre no reino dos sentimentos. A canicultura no seu todo e no particular de cada uma das suas actividades encontra-se superpovoada de sentimentos, paixões exacerbadas e emoções de difícil controlo. E o adestramento não escapa à regra, porque acolhe indivíduos debaixo dessas mesmas condições, que nos chegam através da paixão que os leva a gostar de cães. Será partir desse sentimento que iremos trabalhar, o que não irá ser fácil diante da carga emotiva de cada um, na procura da auto-satisfação e na realização dos seus anseios. Quer queiramos ou não, cabe ao adestrador a concretização dos seus sonhos, independentemente da nossa percepção ou dos nossos sentimentos. A situação exige-nos tacto e um profundo conhecimento dos donos, para conseguirmos “encaixar” os seus desejos dentro de uma estrutura lógica e dar a cada binómio um final feliz, sem contudo ignorar ou prejudicar os cães.

A dependência canina relativa aos donos obrigar-nos-á à sua responsabilização, ainda que a façamos gradualmente e debaixo da sua aceitação, pela evidência, pela advertência e pelo anúncio dos perigos. Cada binómio é único e o mesmo sentimento apresenta-se diferente em cada indivíduo, o que obriga a variedade dos métodos e a um acompanhamento personalizado, transformando o adestrador num “personal trainer”. Como o adestramento assenta sobre a inibição e o estímulo, é travamento e aceleração, opera pelo aproveitamento e alcança a transformação, todos os condutores carecem de aprendizado, ainda que alguns se sintam geniais e vejam qualidades nos seus cães que mais ninguém vê. O carácter impessoal da actual sociedade, farto em fenómenos de desagregação, tem contribuído para o sectarismo e para o aumento da procura de cães, que funcionando como verdadeiros terapeutas, têm vindo a reequilibrar muita gente. Tendo isto em conta e considerando o particular social humano, cabe ao adestrador tirar partido do grupo escolar para a integração de todo e qualquer binómio, constituindo-o em membro familiar, fracção imprescindível e unidade importante para a felicidade comum – ele tem um lugar na escola! A chegada de novos alunos pode ser também uma camioneta carregada de sentimentos inconfessos e prestes a eclodir, conduzida por gente à procura do seu lugar e que traz consigo as marcas do seu percurso, vendo em cada centro de treino uma “dreamland”. Há que conservar a imagem.

A visão paradisíaca do adestramento que é íntima e raramente ultrapassa o lúdico, deve ser mantida por mais sério que ele se torne, evitando-se o desconserto provocado pela descarga emocional de cada um. Gerir e redireccionar emoções não é fácil, porque nalguns indivíduos assiste-se a transição radical dos seus sentimentos e lidamos com pessoas de grande sensibilidade, o que nos obriga à atenção redobrada, ao entendimento das suas dificuldades e ao apoio que não reclamam quando estão prestes a afundar-se. Se os cães necessitam de estímulo, o que dizer dos condutores? Perante as contrariedades sempre somos obrigados ao conserto, ainda que saibamos qual o desfecho de determinado binómio, para que o fim anunciado acabe também por nos surpreender. Para ser adestrador não basta gostar de cães, há que cativar as pessoas, mesmo daquelas por quem não nutrimos grande simpatia, que espelham o que desprezamos e que sempre atentam contra a nossa paciência, porque não somos nós que as escolhemos, são elas que nos escolhem e estamos cá para servir. O verdadeiro mestre cinotécnico é aquele que se vence a si próprio e que se transfigura em cada um que o procura, descobrindo sentimentos idênticos que a todos levarão à vitória. Quem não ama os seus iguais, acabará num monólogo com os cães, até que eles lhe virem as costas também!

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