Quem vive no mundo da canicultura, mais cedo ou mais tarde, depois de fazer a sua própria introspecção e de se conhecer a si mesmo, acabará também por querer decifrar as razões alheias que levam à procura dos cães. Esta tarefa é obrigatória para os adestradores ou para aqueles que pretendem educar os seus fiéis amigos de quatro patas, porque esclarece as motivações individuais, revela sentimentos não aflorados e permite-nos um acompanhamento mais objectivo sobre aqueles que nos procuram, muitas vezes desnorteados, cheios de expectativas vagas, dominados pela confusão e submissos àquilo que são. Sinteticamente, os proprietários caninos dividem-se em dois grupos: os que se servem dos cães e aqueles que os servem. Ensinar liderança aos primeiros é fácil, difícil é incutir-lhes um sentimento de reciprocidade. Fomentar uma relação de paridade aos segundos é gratuito e transformá-los em líderes é quase uma façanha do outro mundo. Se outra coisa o adestramento não oferecer aos indivíduos presentes nas suas fileiras, salva-o o equilíbrio que lhes exige no doseamento e aplicação da emoção e da razão, prática nem sempre visível no seu quotidiano, falta que opera descontentamento, alguns entraves sociais e um desejo crescente de evasão. Se não houver mudança de comportamento nos condutores, o préstimo escolar será inválido e os cães nada ganharão com isso, ainda que os donos saiam satisfeitos e vejam cumpridos os seus objectivos, fazendo assim jus ao que uma vez disse Manuel de Brito Camacho (1862-1934, alentejano de Aljustrel, Coronel-cirurgião do Exército, político da 1ª República, Ministro do Fomento, Alto Comissário da República em Moçambique, fundador do jornal “A Luta” e membro do Partido Unionista): “ As moscas mudam, mas a merda é a mesma”!
Quando se fala em “especicismo” toda a gente o condena, mas quando é explicado a multidão sai silenciosa. Para que não restem dúvidas, convém explicar o que é essa doutrina e quais as manifestações que toma na canicultura actual, ainda que disfarçadas por falsos sentimentos de piedade, infundadas preocupações com o bem-estar dos animais e inflamados discursos hipócritas, politicamente correctos e alvo da aceitação geral. O “especicismo” é uma doutrina que tende a preservar a unidade de uma espécie e que assenta na sua suposta superioridade sobre as demais, legitimando dessa forma o seu domínio sobre elas. A relação original do homem com o cão obedeceu à procura de contra-partidas e assim chegou até aos nossos dias, livrando-o da extinção e dando-lhe uma sorte diferente da encontrada junto do seu parente silvestre. Contrariamente ao nosso desejo, a situação pouco se alterou, já que o adestramento canino visa o domínio do homem sobre o cão ou pressupõe o seu uso, sendo por si mesmo uma manifestação pura, histórica e inequívoca de especicismo. Alterou-se o modo e não a filosofia, porque o homem não muda por decreto, somente teme o castigo. Será lícito treinar um cão para qualquer fim? O que legitimará o nosso domínio? Poderá ser o adestramento uma manifestação de especicismo positivo?
Melhor seria não atribuir qualquer serviço aos cães, cessar o seu aproveitamento, devolver-lhes a liberdade de movimentos e apostar vivamente no seu bem-estar. Porém, é utópico pensar assim nos tempos que correm, porque o pouco atavismo que apresentam dificultaria a transição da dependência para a autonomia, levando à morte de muitos e induzindo toda a espécie à extinção (veja-se o caso dos Dingos). O lobo doméstico é uma criação humana, um animal produzido para além da evolução natural das espécies, um companheiro depurado ao longo de milénios para estar ao nosso lado. Quando pensamos em devolver a liberdade aos cães, lembramo-nos do acontecido com o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico no Picão (Mafra), onde, perante a impossibilidade de os devolver ao seu habitat natural, os lobos residentes acabaram, involuntariamente, sujeitos à vasectomia. E porque fizemos questão de carregar o cão às costas, só nos resta adequá-lo ao nosso quotidiano, educá-lo para viver entre as pessoas, mesmo que procuremos somente a sua companhia. A irracionalidade canina obriga-nos ao seu treino e legitima essa acção por força da nossa responsabilidade. Os fins a atribuir aos cães é que devem ser repensados (e têm sido), dando-se a prioridade à sua salvaguarda face à retribuição que deles esperamos. Já que o adestramento é um mal necessário ou uma necessidade perante uma opção muito antiga (certa ou errada, não vem ao caso), convém que ele seja desenvolvido a partir do “reforço positivo”, suavizando desse modo as respostas artificiais esperadas. A preocupação com a sobrevivência canina, com o seu equilíbrio biológico e com a prática do seu bem-estar, podem transformar o especicismo que induz ao treino numa acção positiva, colmatar vícios antigos e proceder à mudança, reviravolta que deverá acontecer de antemão na cabeça dos seus proprietários.
São muitas as manifestações de especicismo presentes na canicultura actual, velhos vícios sobre novas gentes que proliferam encapotados debaixo de uma suposta preocupação com os cães. Será difícil enumerá-las todas, mas elas englobam práticas que vão desde a selecção, passam pela instalação doméstica e vão até ao uso corrente destes animais. Manifestaremos algumas das mais gritantes e outras menos visíveis a título de exemplo. No mundo dos galgos o doping continua a marcar presença e a causar vítimas, porque importa ganhar libras de ouro e justificar o investimento feito, mesmo que os animais só corram a sua derradeira carreira. Alguns cães de guarda e outros tantos de beleza vivem a maior parte dos seus dias enjaulados em pequenas boxes, privados da liberdade de movimentos e sujeitos aos desígnios dos seus donos, a uns porque importa aumentar a territorialidade e a outros para que não se “estraguem” morfologicamente. Para comodidade dos donos, a castração das cadelas continua a aumentar, a prática do abandono não cessa e os cães continuam a ser abatidos como bode expiatório das acções dos seus proprietários e instigadores. A selecção de muitas raças tem ignorado a saúde, o bem-estar e a longevidade desses indivíduos, agravando e condenando dessa forma toda a sua prole. O especicismo presente nos homens acaba por reflectir a sua pequenez e vaidade, pode resultar da necessidade, mas não é capaz de esconder o abuso. Cada um deve, independentemente do lugar ou importância que ocupa dentro da canicultura, trabalhar para o bem-estar dos cães, dos seus e dos outros, pelo exemplo, conselho e esclarecimento.
A cada passo e sem qualquer contribuição objectiva da nossa parte, continuam a chegar às escolas caninas pessoas diametralmente opostos, com posturas cativas à sua individualidade e não ao peso das suas gerações, muito embora advindas das cargas culturais e sociais de cada um, segundo o peso da tradição e filosofia de vida, reforçadas ainda pelo seu particular genético. Sem pré-aviso, cedo se levantam, entre os condutores de uma classe, os especicistas puros e os antropomorfistas, gente a necessitar de equilíbrio prà saudável constituição binomial, considerando que não marcham sozinhos e que trazem alguém pela trela. A cegueira nos primeiros torna-os violentos e gera violência, são muito competitivos e evoluem rapidamente a expensas dos animais que conduzem, criando ao seu redor um ambiente de tensão que ultrapassa em muito o stress a que votam os seus cães, porque causam mal-estar e são frequentemente rastilho para os mais variados atritos e quezílias. Estes líderes incontestáveis, visando o aproveitamento das suas mais valias e os direitos que assistem aos seus cães, que tratam como escravos, necessitam de temperar o seu impulso ao poder com o reconhecimento dos seus erros, para que transitem do despotismo para a parceria, da tirania para a cumplicidade e venham a ser úteis aos demais agentes de ensino. Independentemente da nossa vontade e mais cedo do que o esperado, até porque ninguém gosta de ser incomodado, teremos que confontá-los e proceder à sua mudança de atitude, antes que percam irremediavelmente os cães que conduzem e gerem problemas de outro tipo. O modo da confrontação dependerá de indivíduo para indivíduo, da gravidade dos seus actos e do seu grau de humildade, nunca desconsiderando a sua recuperação e os benefícios dela resultantes, para o binómio, para o cão e para todos. Se o adestramento é prós binómios, então a sua pedagogia ultrapassa o mero acto de ensinar cães.
Os antropomorfistas, gente que atribui qualidades humanas aos seus cães e desconsidera o particular desta espécie, aparecem em maior número que os especicistas e são os que mais encravam o processo pedagógico adiantado pelo adestramento. Tratam geralmente os seus cães como reizinhos, sujeitam-se aos seus humores, inventam-lhes estados de espírito e acabam por fundamentar toda a casta de manhas que um cão pode abraçar. Na ânsia de lhes satisfazerem as vontades, confundem os seus disparates com virtudes e não raramente acabam conduzidos pelos cães, rumo a parte incerta e de acordo com o parecer dos animais, sujeitando-se de sobremaneira e encontrando nisso felicidade. Se aos maioritariamente especicistas somos obrigados a meter travão, aos antropomorfistas temos que injectar-lhes doses massivas de ânimo, o que é igualmente difícil porque não nascerem líderes e pouca ou nenhuma propensão têm para tal. É curioso reparar que os cães dos especicistas são servos que apenas aguardam a trombeta para iniciarem as hostilidades e os cães dos antropomorfistas, uma vez coroados, cedo se habituam a morder no seu séquito, isto se tiverem perfil para isso. Sempre será mais fácil travar do que animar, adequar do que suscitar, mas é para isso que cá estamos! A recuperação dum condutor especicista jamais atentará contra a sua liderança, mas a transição de servo para líder pode ser desastrada, graças à impotência que causa o desconserto e gera a o disparate, na triste evidência de que os extremos se tocam. A recuperação dos antropomorfistas, reclamada pelos vizinhos e pela sociedade face aos disparates perpetrados pelos seus cães, é um processo moroso que não dispensa o acompanhamento activo e que irá acontecer com o desenrolar do treino pelos exercícios propostos que induzem a uma nova experiência directa. Há que dar tempo ao tempo!
Quando se fala em “especicismo” toda a gente o condena, mas quando é explicado a multidão sai silenciosa. Para que não restem dúvidas, convém explicar o que é essa doutrina e quais as manifestações que toma na canicultura actual, ainda que disfarçadas por falsos sentimentos de piedade, infundadas preocupações com o bem-estar dos animais e inflamados discursos hipócritas, politicamente correctos e alvo da aceitação geral. O “especicismo” é uma doutrina que tende a preservar a unidade de uma espécie e que assenta na sua suposta superioridade sobre as demais, legitimando dessa forma o seu domínio sobre elas. A relação original do homem com o cão obedeceu à procura de contra-partidas e assim chegou até aos nossos dias, livrando-o da extinção e dando-lhe uma sorte diferente da encontrada junto do seu parente silvestre. Contrariamente ao nosso desejo, a situação pouco se alterou, já que o adestramento canino visa o domínio do homem sobre o cão ou pressupõe o seu uso, sendo por si mesmo uma manifestação pura, histórica e inequívoca de especicismo. Alterou-se o modo e não a filosofia, porque o homem não muda por decreto, somente teme o castigo. Será lícito treinar um cão para qualquer fim? O que legitimará o nosso domínio? Poderá ser o adestramento uma manifestação de especicismo positivo?
Melhor seria não atribuir qualquer serviço aos cães, cessar o seu aproveitamento, devolver-lhes a liberdade de movimentos e apostar vivamente no seu bem-estar. Porém, é utópico pensar assim nos tempos que correm, porque o pouco atavismo que apresentam dificultaria a transição da dependência para a autonomia, levando à morte de muitos e induzindo toda a espécie à extinção (veja-se o caso dos Dingos). O lobo doméstico é uma criação humana, um animal produzido para além da evolução natural das espécies, um companheiro depurado ao longo de milénios para estar ao nosso lado. Quando pensamos em devolver a liberdade aos cães, lembramo-nos do acontecido com o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico no Picão (Mafra), onde, perante a impossibilidade de os devolver ao seu habitat natural, os lobos residentes acabaram, involuntariamente, sujeitos à vasectomia. E porque fizemos questão de carregar o cão às costas, só nos resta adequá-lo ao nosso quotidiano, educá-lo para viver entre as pessoas, mesmo que procuremos somente a sua companhia. A irracionalidade canina obriga-nos ao seu treino e legitima essa acção por força da nossa responsabilidade. Os fins a atribuir aos cães é que devem ser repensados (e têm sido), dando-se a prioridade à sua salvaguarda face à retribuição que deles esperamos. Já que o adestramento é um mal necessário ou uma necessidade perante uma opção muito antiga (certa ou errada, não vem ao caso), convém que ele seja desenvolvido a partir do “reforço positivo”, suavizando desse modo as respostas artificiais esperadas. A preocupação com a sobrevivência canina, com o seu equilíbrio biológico e com a prática do seu bem-estar, podem transformar o especicismo que induz ao treino numa acção positiva, colmatar vícios antigos e proceder à mudança, reviravolta que deverá acontecer de antemão na cabeça dos seus proprietários.
São muitas as manifestações de especicismo presentes na canicultura actual, velhos vícios sobre novas gentes que proliferam encapotados debaixo de uma suposta preocupação com os cães. Será difícil enumerá-las todas, mas elas englobam práticas que vão desde a selecção, passam pela instalação doméstica e vão até ao uso corrente destes animais. Manifestaremos algumas das mais gritantes e outras menos visíveis a título de exemplo. No mundo dos galgos o doping continua a marcar presença e a causar vítimas, porque importa ganhar libras de ouro e justificar o investimento feito, mesmo que os animais só corram a sua derradeira carreira. Alguns cães de guarda e outros tantos de beleza vivem a maior parte dos seus dias enjaulados em pequenas boxes, privados da liberdade de movimentos e sujeitos aos desígnios dos seus donos, a uns porque importa aumentar a territorialidade e a outros para que não se “estraguem” morfologicamente. Para comodidade dos donos, a castração das cadelas continua a aumentar, a prática do abandono não cessa e os cães continuam a ser abatidos como bode expiatório das acções dos seus proprietários e instigadores. A selecção de muitas raças tem ignorado a saúde, o bem-estar e a longevidade desses indivíduos, agravando e condenando dessa forma toda a sua prole. O especicismo presente nos homens acaba por reflectir a sua pequenez e vaidade, pode resultar da necessidade, mas não é capaz de esconder o abuso. Cada um deve, independentemente do lugar ou importância que ocupa dentro da canicultura, trabalhar para o bem-estar dos cães, dos seus e dos outros, pelo exemplo, conselho e esclarecimento.
A cada passo e sem qualquer contribuição objectiva da nossa parte, continuam a chegar às escolas caninas pessoas diametralmente opostos, com posturas cativas à sua individualidade e não ao peso das suas gerações, muito embora advindas das cargas culturais e sociais de cada um, segundo o peso da tradição e filosofia de vida, reforçadas ainda pelo seu particular genético. Sem pré-aviso, cedo se levantam, entre os condutores de uma classe, os especicistas puros e os antropomorfistas, gente a necessitar de equilíbrio prà saudável constituição binomial, considerando que não marcham sozinhos e que trazem alguém pela trela. A cegueira nos primeiros torna-os violentos e gera violência, são muito competitivos e evoluem rapidamente a expensas dos animais que conduzem, criando ao seu redor um ambiente de tensão que ultrapassa em muito o stress a que votam os seus cães, porque causam mal-estar e são frequentemente rastilho para os mais variados atritos e quezílias. Estes líderes incontestáveis, visando o aproveitamento das suas mais valias e os direitos que assistem aos seus cães, que tratam como escravos, necessitam de temperar o seu impulso ao poder com o reconhecimento dos seus erros, para que transitem do despotismo para a parceria, da tirania para a cumplicidade e venham a ser úteis aos demais agentes de ensino. Independentemente da nossa vontade e mais cedo do que o esperado, até porque ninguém gosta de ser incomodado, teremos que confontá-los e proceder à sua mudança de atitude, antes que percam irremediavelmente os cães que conduzem e gerem problemas de outro tipo. O modo da confrontação dependerá de indivíduo para indivíduo, da gravidade dos seus actos e do seu grau de humildade, nunca desconsiderando a sua recuperação e os benefícios dela resultantes, para o binómio, para o cão e para todos. Se o adestramento é prós binómios, então a sua pedagogia ultrapassa o mero acto de ensinar cães.
Os antropomorfistas, gente que atribui qualidades humanas aos seus cães e desconsidera o particular desta espécie, aparecem em maior número que os especicistas e são os que mais encravam o processo pedagógico adiantado pelo adestramento. Tratam geralmente os seus cães como reizinhos, sujeitam-se aos seus humores, inventam-lhes estados de espírito e acabam por fundamentar toda a casta de manhas que um cão pode abraçar. Na ânsia de lhes satisfazerem as vontades, confundem os seus disparates com virtudes e não raramente acabam conduzidos pelos cães, rumo a parte incerta e de acordo com o parecer dos animais, sujeitando-se de sobremaneira e encontrando nisso felicidade. Se aos maioritariamente especicistas somos obrigados a meter travão, aos antropomorfistas temos que injectar-lhes doses massivas de ânimo, o que é igualmente difícil porque não nascerem líderes e pouca ou nenhuma propensão têm para tal. É curioso reparar que os cães dos especicistas são servos que apenas aguardam a trombeta para iniciarem as hostilidades e os cães dos antropomorfistas, uma vez coroados, cedo se habituam a morder no seu séquito, isto se tiverem perfil para isso. Sempre será mais fácil travar do que animar, adequar do que suscitar, mas é para isso que cá estamos! A recuperação dum condutor especicista jamais atentará contra a sua liderança, mas a transição de servo para líder pode ser desastrada, graças à impotência que causa o desconserto e gera a o disparate, na triste evidência de que os extremos se tocam. A recuperação dos antropomorfistas, reclamada pelos vizinhos e pela sociedade face aos disparates perpetrados pelos seus cães, é um processo moroso que não dispensa o acompanhamento activo e que irá acontecer com o desenrolar do treino pelos exercícios propostos que induzem a uma nova experiência directa. Há que dar tempo ao tempo!
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