sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

AS VACAS DO PANTANAL E OS CÃES NO QUINTAL

Nas minhas andanças por terras brasileiras, lá para as bandas do Estado do Mato Grosso do Sul, graças a um episódio rocambolesco que meteu pangarés e um pingente irrascível, conheci um fazendeiro e pecuarista tão rico que seria impossível haver outro igual aqui, sendo inclusive primeiro produtor mundial de uma gramínea em particular. Meão de altura, de tez escura, olhos pequenos e sorriso aberto, mais largo de barriga do que de ombros, a reluzir em ouro, com chapéu à cowboy e com a mocidade a fugir-lhe, o homem era temido pelos seus jagunços, que apresentava oficialmente como funcionários ou capatazes, indivíduos na sua maioria esgalgados, andrajosos, pouco limpos, nada parecidos uns com os outros, de rosto inexpressivo e desdentados, tropa sempre pronta para o que desse e viesse, que os empregados das fazendas não queriam ver nem por perto e os caciques muito menos, especialmente quando o cupim invadia as terras do homem e precisava de outras.
Certo dia, por deferência, convidou-me para almoçar em sua casa. Como a sua esposa tinha ido à cidade fazer compras, exceptuando os empregados que nos serviam, éramos os únicos naquela grande, bem recheada e majestosa sala, que suspeitei não ter sido decorada ao gosto dos seus proprietários. Depois de comermos um conjunto de iguarias que ainda hoje guardo na memória e após acender um charuto, o homem mandou um empregado abrir uma porta, dizendo-me “Agora vou apresentar-lhe as minhas meninas!” Para grande espanto meu, as “meninas” eram vacas, muitas vacas de raça europeia própria para o abate e que em adultas chegam a ultrapassar a tonelada, todas impecavelmente limpas naquele prado e adornadas com coleiras e chocalhos ao gosto suíço. Surpreendido, perguntei-lhe para que as queria. Com um sorriso nos lábios e sem hesitar, respondeu-me que não as queria para outra coisa a não ser para as ver, porque ao vê-las sentia uma enorme felicidade e que eram o seu melhor cartão-de-visita, o que para mim não fez qualquer sentido.
Volvidos 30 anos, voltei a lembrar-me deste episódio ao associá-lo aos inúmeros cães jogados nos quintais que vejo por aqui, animais arredados da interacção com o donos, abusivamente confinados, dispensados de qualquer tipo de ensino, rodeados de brinquedos danificados, cercados de ossos e dejectos, de mantos descuidados e unhas por gastar, entregues ao modo de vida silvestre, afastados dos bons ofícios dos veterinários, normalmente atribulados pelo stresse ou condicionados pela letargia, parcos de curiosidade e isentos de qualquer préstimo, a não ser o de estarem por perto e serem vistos, apesar de correrem o risco de virem a ser envenenados, cães gordos e reluzentes tal qual vacas, que também são tratados por “meninos” e “meninas”, pese embora a sua má sorte, genuínos cartões-de-visita de quem pouco se importa com eles e que apenas lhe dá gozo tê-los, amigos esquecidos e encarcerados dentro de quintais, que serão tanto ou mais valiosos quanto menos aborrecerem os seus donos, gente que se diz sensível e gostar de animais.
Diante desta arbitrária política de encarceramento, que é um verdadeiro atentado aos direitos dos animais, quando inadvertidamente uma porta se abre, sempre surge um disparate: ou o cão sai magoado ou acaba por magoar alguém, porque ignora o que espera na rua e desconfia das intenções ou presença de qualquer desconhecido. Estes cães de quintal são de sobremaneira afectados dos pontos de vista físico, psicológico, cognitivo e social. Fisicamente não se desenvolvem como seria expectável por ausência de novidade e desafios, porquanto estão sujeitos a uma experiência repetitiva e pobre, a mesma que irá atentar contra o seu desenvolvimento cognitivo. Do ponto de vista psicológico sempre espelharão medos ou aversões resultantes do reforço da sua carga instintiva, porque foram entregues a si próprios e obrigados a desenrascar-se. E se o panorama até aqui não é famoso, do ponto de vista social ainda é pior, porque o isolamento dificultará de sobremaneira a sua sociabilização graças à desconfiança, seja ela entre iguais ou com outros animais, dificultando de igual modo a parceria e cumplicidade com os humanos.
Animais alojados nestas condições são cães que gostariam de ser lobos ou lobos que desejariam ser cães. Mas como nem uma coisa nem outra sucedem automaticamente, estamos perante um gigantesco retrocesso na domesticação que iniciámos há milhares de anos e diante de um acto deveras cruel sobre quem veio para nos ajudar e acompanhar – o cão! Que bom seria para os cães, que todos pudessem passear uma hora diariamente. Estaremos a pedir demasiado? Eu acho que não!

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