Nas minhas andanças por
terras brasileiras, lá para as bandas do Estado do Mato Grosso do Sul, graças a
um episódio rocambolesco que meteu pangarés e um pingente irrascível, conheci um
fazendeiro e pecuarista tão rico que seria impossível haver outro igual aqui,
sendo inclusive primeiro produtor mundial de uma gramínea em particular. Meão
de altura, de tez escura, olhos pequenos e sorriso aberto, mais largo de
barriga do que de ombros, a reluzir em ouro, com chapéu à cowboy e com a
mocidade a fugir-lhe, o homem era temido pelos seus jagunços, que apresentava oficialmente
como funcionários ou capatazes, indivíduos na sua maioria esgalgados, andrajosos,
pouco limpos, nada parecidos uns com os outros, de rosto inexpressivo e
desdentados, tropa sempre pronta para o que desse e viesse, que os empregados
das fazendas não queriam ver nem por perto e os caciques muito menos,
especialmente quando o cupim invadia as terras do homem e precisava de outras.
Certo dia, por deferência,
convidou-me para almoçar em sua casa. Como a sua esposa tinha ido à cidade
fazer compras, exceptuando os empregados que nos serviam, éramos os únicos
naquela grande, bem recheada e majestosa sala, que suspeitei não ter sido
decorada ao gosto dos seus proprietários. Depois de comermos um conjunto de
iguarias que ainda hoje guardo na memória e após acender um charuto, o homem
mandou um empregado abrir uma porta, dizendo-me “Agora vou apresentar-lhe as
minhas meninas!” Para grande espanto meu, as “meninas” eram vacas, muitas vacas
de raça europeia própria para o abate e que em adultas chegam a ultrapassar a
tonelada, todas impecavelmente limpas naquele prado e adornadas com coleiras e
chocalhos ao gosto suíço. Surpreendido, perguntei-lhe para que as queria. Com
um sorriso nos lábios e sem hesitar, respondeu-me que não as queria para outra
coisa a não ser para as ver, porque ao vê-las sentia uma enorme felicidade e
que eram o seu melhor cartão-de-visita, o que para mim não fez qualquer
sentido.
Volvidos 30 anos, voltei a
lembrar-me deste episódio ao associá-lo aos inúmeros cães jogados nos quintais
que vejo por aqui, animais arredados da interacção com o donos, abusivamente
confinados, dispensados de qualquer tipo de ensino, rodeados de brinquedos
danificados, cercados de ossos e dejectos, de mantos descuidados e unhas por
gastar, entregues ao modo de vida silvestre, afastados dos bons ofícios dos
veterinários, normalmente atribulados pelo stresse ou condicionados pela
letargia, parcos de curiosidade e isentos de qualquer préstimo, a não ser o de
estarem por perto e serem vistos, apesar de correrem o risco de virem a ser
envenenados, cães gordos e reluzentes tal qual vacas, que também são tratados
por “meninos” e “meninas”, pese embora a sua má sorte, genuínos cartões-de-visita
de quem pouco se importa com eles e que apenas lhe dá gozo tê-los, amigos esquecidos
e encarcerados dentro de quintais, que serão tanto ou mais valiosos quanto
menos aborrecerem os seus donos, gente que se diz sensível e gostar de animais.
Diante desta arbitrária
política de encarceramento, que é um verdadeiro atentado aos direitos dos
animais, quando inadvertidamente uma porta se abre, sempre surge um disparate:
ou o cão sai magoado ou acaba por magoar alguém, porque ignora o que espera na
rua e desconfia das intenções ou presença de qualquer desconhecido. Estes cães
de quintal são de sobremaneira afectados dos pontos de vista físico,
psicológico, cognitivo e social. Fisicamente não se desenvolvem como seria
expectável por ausência de novidade e desafios, porquanto estão sujeitos a uma
experiência repetitiva e pobre, a mesma que irá atentar contra o seu
desenvolvimento cognitivo. Do ponto de vista psicológico sempre espelharão
medos ou aversões resultantes do reforço da sua carga instintiva, porque foram
entregues a si próprios e obrigados a desenrascar-se. E se o panorama até aqui
não é famoso, do ponto de vista social ainda é pior, porque o isolamento
dificultará de sobremaneira a sua sociabilização graças à desconfiança, seja ela
entre iguais ou com outros animais, dificultando de igual modo a parceria e
cumplicidade com os humanos.
Animais alojados nestas
condições são cães que gostariam de ser lobos ou lobos que desejariam ser cães.
Mas como nem uma coisa nem outra sucedem automaticamente, estamos perante um
gigantesco retrocesso na domesticação que iniciámos há milhares de anos e
diante de um acto deveras cruel sobre quem veio para nos ajudar e acompanhar –
o cão! Que bom seria para os cães, que todos pudessem passear uma hora
diariamente. Estaremos a pedir demasiado? Eu acho que não!
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