Os cães actuais não são
mais perigosos que os do passado recente, os anteriores à entrada em vigor das
leis relativas aos cães perigosos no mundo ocidental, porque doutro modo os
canicultores de hoje não teriam a quem vender os seus cachorros. Todavia o
número de ataques caninos a pessoas não pára de aumentar e tal não se deve
unicamente à subida do número de animais adoptados, que são por norma castrados
e que raramente fazem mal a alguém. Assim, por toda a parte se lê ou ouve o
termo “out-of-control” quanto algum ataque canino acontece, designação que a
nosso ver corresponde totalmente à verdade e que é válida tanto para cães civis
como para policiais ou militares, porque em matéria de disparate concorrem uns
contra os outros. Quem é que ainda não viu um cão polícia morder
“acidentalmente” outro polícia ao lado do seu tratador vestido com igual farda?
Quem é que ainda não teve conhecimento de algum ataque perpetrado por um cão
polícia sobre um cidadão inocente? Os disparates sucedem-se e são mais
frequentes entre os cães urbanos.
Que razões estarão a
contribuir para a eclosão sistemática do fenómeno? Como são múltiplas e
variadas, sendo algumas tão antigas quanto o mundo, adiantaremos apenas três que
nos parecem ser as principais no contexto actual: o aumento vertiginoso da presença canina nos lares
citadinos, o despreparo pedagógico de muitos donos e a ineficácia ou
insuficiência dos métodos de ensino em voga.
Dum momento para o outro,
facto a que não são alheias a quebra dos índices de natalidade e as fortíssimas
campanhas pela adopção canina, o número de cães nos lares ocidentais cresceu
vertiginosamente nas últimas décadas, fenómeno que começou a despontar nos anos
70 do século passado. É possível que esse aumento se deva também ao facto da
Europa experimentar já 72 anos de paz, ter alcançado maior justiça social e uma
maior equidade na distribuição da riqueza, factores que somados tornaram
possível o sustento dos cães por maior número de cidadãos. Também o aumento
médio da esperança de vida, associado a reformas mais justas e ao acesso à
saúde, tem levado muitos casais de idosos a uma maior procura destes animais
que não raramente são também procurados por pensionistas que vivem sós. Com
homens e mulheres forçados a trabalhar mas não libertos das suas carências
afectivas, as famílias têm proporcionalmente menos crianças e mais cães, porque
os últimos são menos dispendiosos, exigem menos e dificilmente criam entraves às
carreiras de cada um. Por outro lado, considerando as dificuldades de
integração social de uns tantos, fenómeno que lamentavelmente não é de hoje, os
cães têm vindo a substituir os seus familiares e amigos, o que tem contribuído
decisivamente para uma maior procura do lobo familiar, funcionando a sua posse
como uma autêntica panaceia, dependência que tem gerado e continuará a gerar
grandes negócios, cuja maior fatia cabe e caberá à indústria alimentar para
animais.
As necessidades afectivas
e sociais da maioria dos proprietários caninos sempre fragilizaram e continuam
a fragilizar o processo pedagógico dos seus companheiros de quatro patas,
porque quando não os endeusam, breve lhes dão um tratamento antropomórfico, despropósitos
que os levarão à usurpação do poder e a um conjunto de estratégias para não
serem desalojados dele, tornando-se inúmeras vezes “out-of-control” por causa
disso, uma vez que esse comportamento advém-lhes quase em exclusivo dum cuidado
desregrado ou impróprio. Não podemos dissociar tudo isto da “Declaração
Universal dos Direitos do Animal”, pois o espectro do mal causado aos cães no
passado tem levado a uma exagerada tolerância com os seus erros, contrição que
os vem isentando das mais basilares regras de convivência e princípio por si
mesmo suficiente para despoletar a desobediência que induz ao desastre. Não foi
o aumento dos animais resgatados que veio contribuir para o grosso dos cães descontrolados,
já que estes são por norma agradecidos e castrados a nível planetário. Todavia,
o seu exemplo não é válido para todos os cães, como erroneamente se pensa
agora, nomeadamente para os cães inteiros de luta, para os de idêntica condição
e com excessiva territorialidade e também para uns quantos de selecção
assassina e fratricida. Por mais que o oiçamos na TV ou o leiamos na Internet,
os cães não são todos iguais e aqueles que são extraordinariamente agressivos devem-no
mais à genética que aos maus-tratos infligidos.
Por detrás de tudo isto e
de modo cada vez mais descarado, procura dar-se o “golpe de misericórdia” nas
distintas raças caninas, que mesmo moribundas não deixam de ser procuradas,
particularmente as mais lesivas e de sofrível interesse, geralmente pouco dadas
ao suborno, indiferentes às migalhas oferecidas e propensas a encontrar a sua própria
recompensa. Diante deste desarranjo, os métodos hoje tornados universais na cinotecnia
não conseguem dar resposta à totalidade dos cães do presente graças à sua
ineficácia, contribuindo assim e involuntariamente para o aumento do número de
cães descontrolados. O facilitismo dos actuais métodos de ensino, de cariz mais
doméstico que académico, do tipo “Do
yourself ”
ou “Yes,
you can ”, não é o mais indicado para cães que sofreram um
certo “aprimoramento” racial, inclusive para não serem amistosos. Assim como
não se deve sentar um cavaleiro inexperiente sobre um cavalo nervoso, também não
se deve entregar um cão valente a um amador. Igual sandice é tratar um cão
bélico como se fosse traquinas ou entender-se um assassino como mal-humorado. E
se os cães precisam de ser seleccionados, muito mais necessitarão os homens que
irão lidar com eles, pormenor que escapa a muita gente civil e militar.
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