segunda-feira, 14 de novembro de 2016

UMA COISA É SER SOCIÁVEL, OUTRA COMUNITÁRIO E OUTRA AINDA TERAPEUTA

Há imagens que ficam e que nunca se esquecem, que sempre voltam à tona quando algo as relembra. Ao falar do abuso sobre os cães alheios por terceiros, lembro-me imediatamente da minha transição para a puberdade e das práticas católicas a que me sujeitaram. Nascido no seio duma família beata, era obrigado a beijar o anel do Sr. Prior e o Menino Jesus pelo Natal (na Páscoa também havia algo para beijar), actos feitos por todos em correnteza e dos quais sempre tentava escapar (por vezes conseguia). Do que eu não me escapava com facilidade era das velhas à saída da catequese, que zumbindo como varejeiras, de dentes podres ou com as placas a bater, sempre se atiravam aos miúdos para os beijar, dizendo-lhes “benza ó Deus”. Talvez por aversão a tal irmandade, sem nunca ter sido federado, tornei-me precocemente num bom atleta de velocidade. Chego a ter pena dos cães, que perante a perplexidade, inoperância e desprotecção dos seus donos, se vêem rodeados duma turba que os sacode, beija, acaricia, intenta dar-lhes de comer, pede-lhes a pata, senta-os no seu regaço e  chega até a dar-lhes ordens, apesar dos pobres bichos, entregues àqueles diabos, não terem pedido tal aparato, serem dominados pelo stress e intentarem esgueirar-se. E dono que com isto não pactue é de imediato acusado de querer ou ter um cão anti-social. É de estranhar que um País com tão poucos etólogos tenha um povo tão versado em etologia! Será por isso que não encontram trabalho?
Como não podia deixar de ser, o parecer popular está errado e confunde a necessidade de um cão ser sociável com o seu uso comunitário, que é isso exactamente aquilo que reclama. Todos os proprietários caninos, diante da actual lei sobre os cães perigosos, são obrigados à sociabilização dos seus cães, o que não implica que tenham a obrigação de transformá-los em mascotes para os beijoqueiros e restante populacho, urbe com alguma dificuldade em controlar as suas emoções, que muitas vezes não sai à rua com os seus cães mas que se diverte a aborrecer os alheios, contra a vontade dos donos numa descarada pantominice. Tornar um cão sociável é prepará-lo para viver em sociedade e condicioná-lo a obedecer às suas regras, respeitando tudo e todos sem manifestar agressividade contra ninguém, tornar-se um entre muitos sem incomodar os demais, danificar os seus bens ou perseguir outros animais. Uma coisa é certa: os donos esforçam-se por educá-los e os outros por estragá-los, tornando-os inquietos, desobedientes, abusadores, barulhentos e pedinchões, obstando assim à sua saúde e salvaguarda, atitude generalizada e abusiva que pode não esconder uma certa inveja.
Todos sabemos que as sociedades actuais estão enfermas, que as relações entre os homens são cada vez mais frias e impessoais, ora votadas à indiferença ora norteadas pelo interesse, que o homem contemporâneo perde gradualmente a família, sofre de isolamento, carece de identificação e afecto, de alguém que esteja ao seu lado nos momentos difíceis, que o faça sonhar e ir para diante, independentemente dos erros ou culpas que houvesse cometido. Sim, vivemos num mundo deprimido e quase não damos por isso ao fechar a porta da nossa casa. Na esplanada dum amigo que frequento, pelo menos 30% dos seus clientes (deverão ser mais porque nem todos se confessam) sofre de variadas doenças psíquicas que vão atenuando pelo recurso sistemático a ansiolíticos e antidepressivos associados a soníferos. Quase todos assaltam desesperadamente os cães alheios por necessidade terapêutica, na esperança que os cães possam valer-lhes, particularmente quando já desistiram dos seus conjugues e se afastaram ou foram afastados pelos filhos, também quando privados ou arredados da restante família. Os cães poderão valer-lhes, servir-lhes de terapeutas? Sem dúvida, mas não aqueles com que se cruzam, que são particulares e não se encontram preparados para esse fim, acabando eles também vítimas de vários traumas e depressões. Poderemos pedir bom senso a quem não o tem? Não. É melhor afastar os cães!

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