Há
imagens que ficam e que nunca se esquecem, que sempre voltam à tona quando algo
as relembra. Ao falar do abuso sobre os cães alheios por terceiros, lembro-me
imediatamente da minha transição para a puberdade e das práticas católicas a
que me sujeitaram. Nascido no seio duma família beata, era obrigado a beijar o
anel do Sr. Prior e o Menino Jesus pelo Natal (na Páscoa também havia algo para
beijar), actos feitos por todos em correnteza e dos quais sempre tentava escapar
(por vezes conseguia). Do que eu não me escapava com facilidade era das velhas
à saída da catequese, que zumbindo como varejeiras, de dentes podres ou com as
placas a bater, sempre se atiravam aos miúdos para os beijar, dizendo-lhes “benza
ó Deus”. Talvez por aversão a tal irmandade, sem nunca ter sido federado,
tornei-me precocemente num bom atleta de velocidade. Chego a ter pena dos cães,
que perante a perplexidade, inoperância e desprotecção dos seus donos, se vêem
rodeados duma turba que os sacode, beija, acaricia, intenta dar-lhes de comer,
pede-lhes a pata, senta-os no seu regaço e chega até a dar-lhes ordens, apesar
dos pobres bichos, entregues àqueles diabos, não terem pedido tal aparato,
serem dominados pelo stress e intentarem esgueirar-se. E dono que com isto não
pactue é de imediato acusado de querer ou ter um cão anti-social. É de
estranhar que um País com tão poucos etólogos tenha um povo tão versado em
etologia! Será por isso que não encontram trabalho?
Como
não podia deixar de ser, o parecer popular está errado e confunde a necessidade
de um cão ser sociável com o seu uso comunitário, que é isso exactamente aquilo
que reclama. Todos os proprietários caninos, diante da actual lei sobre os cães
perigosos, são obrigados à sociabilização dos seus cães, o que não implica que tenham
a obrigação de transformá-los em mascotes para os beijoqueiros e restante
populacho, urbe com alguma dificuldade em controlar as suas emoções, que muitas
vezes não sai à rua com os seus cães mas que se diverte a aborrecer os alheios,
contra a vontade dos donos numa descarada pantominice. Tornar um cão sociável é
prepará-lo para viver em sociedade e condicioná-lo a obedecer às suas regras,
respeitando tudo e todos sem manifestar agressividade contra ninguém, tornar-se
um entre muitos sem incomodar os demais, danificar os seus bens ou perseguir
outros animais. Uma coisa é certa: os donos esforçam-se por educá-los e os outros
por estragá-los, tornando-os inquietos, desobedientes, abusadores, barulhentos
e pedinchões, obstando assim à sua saúde e salvaguarda, atitude generalizada e
abusiva que pode não esconder uma certa inveja.
Todos
sabemos que as sociedades actuais estão enfermas, que as relações entre os
homens são cada vez mais frias e impessoais, ora votadas à indiferença ora
norteadas pelo interesse, que o homem contemporâneo perde gradualmente a
família, sofre de isolamento, carece de identificação e afecto, de alguém que
esteja ao seu lado nos momentos difíceis, que o faça sonhar e ir para diante,
independentemente dos erros ou culpas que houvesse cometido. Sim, vivemos num
mundo deprimido e quase não damos por isso ao fechar a porta da nossa casa.
Na esplanada dum amigo que frequento, pelo menos 30% dos seus clientes
(deverão ser mais porque nem todos se confessam) sofre de variadas doenças
psíquicas que vão atenuando pelo recurso sistemático a ansiolíticos e antidepressivos
associados a soníferos. Quase todos assaltam desesperadamente os cães alheios
por necessidade terapêutica, na esperança que os cães possam valer-lhes,
particularmente quando já desistiram dos seus conjugues e se afastaram ou foram
afastados pelos filhos, também quando privados ou arredados da restante
família. Os cães poderão valer-lhes, servir-lhes de terapeutas? Sem dúvida, mas
não aqueles com que se cruzam, que são particulares e não se encontram preparados para
esse fim, acabando eles também vítimas de vários traumas e depressões.
Poderemos pedir bom senso a quem não o tem? Não. É melhor afastar os cães!
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