Ao abraçarmos a deidade
atribuída aos cães actuais, que explicaremos e justificaremos em seguida,
lembramo-nos automaticamente do esforço feito por alguns letões, quiçá pela
necessidade de reforço da sua identidade, em redescobrir e restaurar os seus ritos
pagãos anteriores ao cristianismo (Séc.XIII), entendido por eles como religião
opressora. Já no Séc. XVIII e decididamente no XIX, século que ficou ali também
conhecido como o do regresso ao neopaganismo, com base em alguns documentos e
apoiados no folclore, alguns poetas e escritores decidiram ressuscitar os mitos
populares, gente de um nacionalismo incontestável e de alguma forma ligada ao
“Movimento Nova Letónia”, dos quais destacamos Andrejs Pumpurs, Juris Alunāns e
Mikelis Krogzemis, mitologistas que por ausência de cânone, decidiram eles
mesmos inventar as suas próprias divindades.
Por toda a parte e o no
Mundo Ocidental com maior incidência, o cão está em vias de alcançar um
estatuto quase divino, lugar que já ocupou na mitologia dos grandes impérios e civilizações
da Antiguidade que nos fascinam e influenciam, apesar do seu papel actual não
se confundir com o que lhe foi atribuído por egípcios, hindus, gregos, romanos,
germanos, celtas e escandinavos. Com o declínio das igrejas históricas e o
aumento do ateísmo, também com a perca de parâmetros e o incremento da
subjectividade, parece haver um recrudescimento do paganismo e cresce o culto à
volta do cão, um deus de quatro patas, doméstico e descartável, que muitos
juram antropomórfico, fácil de adoptar e bem ao gosto popular, sem unanimidade
de culto mas que é glorificado globalmente pelas suas múltiplas intervenções em
prole da Humanidade, cada vez mais descontente com os seus governos e
governantes.
Assim, cresce a dogmática ao
redor do deus-cão, dizem que é essencialmente bom, que a sua maldade provém dos
homens, que ninguém é tão leal como ele, que nunca abandona os seus, que se
contenta com pouco, que está sempre pronto a ajudar e que tem muito parar dar.
Há ainda quem diga que quanto mais conhece as pessoas, mais gosta dele, quem o
use como conselheiro matrimonial e celebre o seu casamento, quem o prefira aos
filhos, quem o vista ricamente e quem faça inúmeros sacrifícios por ele, quem
trabalhe gratuitamente no seu resgate, quem pague fortunas para adquirir um e
quem faça dele uma indústria. É rara a grande metrópole que não lhe dedica um
monumento, há quem diga que tem lugar no Céu, os seus mausoléus expandem-se por
toda a parte, é objecto da admiração e da veneração populares, tem leis que o
protegem, fazem-no guardião das famílias e guerreiro, elogiam os seus feitos,
imortalizam os seus actos no cinema e na televisão, está presente nos
noticiários, suporta uma imprensa própria, é cada vez mais terapeuta e o seu
número não cessa de aumentar. Será o Séc.XXI o século do cão, o do retorno a
uma divindade pagã que havíamos esquecido ou agradamo-nos dele simplesmente
porque o inventámos, é moldável e aumenta a nossa auto-estima? Ao amá-lo assim
não estaremos a prestar culto a nós mesmos?
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