quarta-feira, 9 de novembro de 2016

MERGULHAR NO PASSADO: O REGRESSO DO DEUS-CÃO

Ao abraçarmos a deidade atribuída aos cães actuais, que explicaremos e justificaremos em seguida, lembramo-nos automaticamente do esforço feito por alguns letões, quiçá pela necessidade de reforço da sua identidade, em redescobrir e restaurar os seus ritos pagãos anteriores ao cristianismo (Séc.XIII), entendido por eles como religião opressora. Já no Séc. XVIII e decididamente no XIX, século que ficou ali também conhecido como o do regresso ao neopaganismo, com base em alguns documentos e apoiados no folclore, alguns poetas e escritores decidiram ressuscitar os mitos populares, gente de um nacionalismo incontestável e de alguma forma ligada ao “Movimento Nova Letónia”, dos quais destacamos Andrejs Pumpurs, Juris Alunāns e Mikelis Krogzemis, mitologistas que por ausência de cânone, decidiram eles mesmos inventar as suas próprias divindades.
Por toda a parte e o no Mundo Ocidental com maior incidência, o cão está em vias de alcançar um estatuto quase divino, lugar que já ocupou na mitologia dos grandes impérios e civilizações da Antiguidade que nos fascinam e influenciam, apesar do seu papel actual não se confundir com o que lhe foi atribuído por egípcios, hindus, gregos, romanos, germanos, celtas e escandinavos. Com o declínio das igrejas históricas e o aumento do ateísmo, também com a perca de parâmetros e o incremento da subjectividade, parece haver um recrudescimento do paganismo e cresce o culto à volta do cão, um deus de quatro patas, doméstico e descartável, que muitos juram antropomórfico, fácil de adoptar e bem ao gosto popular, sem unanimidade de culto mas que é glorificado globalmente pelas suas múltiplas intervenções em prole da Humanidade, cada vez mais descontente com os seus governos e governantes.
Assim, cresce a dogmática ao redor do deus-cão, dizem que é essencialmente bom, que a sua maldade provém dos homens, que ninguém é tão leal como ele, que nunca abandona os seus, que se contenta com pouco, que está sempre pronto a ajudar e que tem muito parar dar. Há ainda quem diga que quanto mais conhece as pessoas, mais gosta dele, quem o use como conselheiro matrimonial e celebre o seu casamento, quem o prefira aos filhos, quem o vista ricamente e quem faça inúmeros sacrifícios por ele, quem trabalhe gratuitamente no seu resgate, quem pague fortunas para adquirir um e quem faça dele uma indústria. É rara a grande metrópole que não lhe dedica um monumento, há quem diga que tem lugar no Céu, os seus mausoléus expandem-se por toda a parte, é objecto da admiração e da veneração populares, tem leis que o protegem, fazem-no guardião das famílias e guerreiro, elogiam os seus feitos, imortalizam os seus actos no cinema e na televisão, está presente nos noticiários, suporta uma imprensa própria, é cada vez mais terapeuta e o seu número não cessa de aumentar. Será o Séc.XXI o século do cão, o do retorno a uma divindade pagã que havíamos esquecido ou agradamo-nos dele simplesmente porque o inventámos, é moldável e aumenta a nossa auto-estima? Ao amá-lo assim não estaremos a prestar culto a nós mesmos?

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