segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

“UM LOBO A CAMINHO DE SE TORNAR UM CÃO QUE NUNCA CHEGOU LÁ”

 

Os cães são geralmente considerados o primeiro animal domesticado e o lobo o seu ancestral, contudo, ainda se discute onde se encaixa o Dingo nesta estrutura, diz a antropóloga aposentada Pat Shipman da Pennsylvania State University (PSU). “Os indígenas australianos entenderam que havia algo diferente entre os dingos e os cães coloniais. Eles são realmente, acho eu, animais diferentes. Eles reagem de maneira diferente aos humanos. Muito trabalho genético e comportamental tem sido feito com lobos, cães e dingos. Os dingos aparecem em algum lugar no meio", diz Shipman. Lobos, cães e dingos são todos membros da família dos canídeos. Na maioria dos animais, a hibridização entre espécies intimamente relacionadas não ocorre como entre burros e cavalos, que produzem machos e éguas geralmente estéreis. No entanto, muitas espécies de canídeos, incluindo lobos, dingos e cães, podem cruzar-se entre si e produzir descendentes férteis, o que dificulta a definição dos limites das espécies nos canídeos.  

Os cães domésticos chegaram ao continente australiano em 1788 com os primeiros 11 navios de condenados, mas os dingos já estavam lá, assim como os aborígenes australianos que chegaram ao continente há cerca de 65.000 anos. Uma grande parte dos dingos na Austrália de hoje tem cães domésticos nos seus ancestrais, mas os dingos vieram para a Austrália há pelo menos 4.000 anos atrás, de acordo com evidências fósseis. Shipman acredita que a data pode ser ainda anterior, mas nenhum fóssil foi ainda encontrado. “Parte da razão de eu estar tão fascinado com os dingos é que se você vê um dingo através dos olhos americanos, você diz, 'isso é um cão'”, disse Shipman. "Em termos evolutivos, os dingos dão-nos um vislumbre do que deu início ao processo de domesticação." Shipman relata a sua análise de lobos, cães e dingos numa edição especial de janeiro de 2021 do Anatomical Record. Dingos e os cães cantores da Nova Guiné que são intimamente relacionados e parecem englobar-se na definição padrão de cães, mas eles não são cães. A antropóloga Shipman (na foto seguinte) esclarece: "Os dingos têm uma aparência canina básica.”

Dos pontos de vista genético e comportamental, os dingos diferem dos cães e são mais parecidos com os lobos na sua incapacidade de digerir amidos e nas suas relações com os humanos. A maioria dos cães domésticos evoluiu junto com os humanos e à medida que estes se tornaram agricultores, passaram a adoptar uma dieta contendo grandes quantidades de amido, seja de milho, arroz, batata ou trigo, o que levou à mudança do seu genoma para permitir a digestão desses amidos. Os dingos, como os lobos, têm muito poucos genes para a digestão do amido. Enquanto os australianos indígenas roubavam filhotes dingo das suas tocas e os criavam, esses filhotes geralmente deixavam os lares humanos na maturidade e partiam para procriar e criar descendentes. A habilidade de se relacionar intimamente com humanos é limitada em dingos, embora esteja presente nos cães. Os australianos nativos também não manipulavam a criação de dingos, que é uma marca registada da domesticação.

Os dingos também estão bem adaptados ao outback australiano e dão-se bem nesse ambiente. Os cães domésticos que se tornarem selvagens dificilmente sobreviverão em ecossistemas tão hostis. "Os aborígenes australianos aborígenes não foram (será que alguma vez serão?) bem vistos como detentores de conhecimento ou de uma habilidade especial quando os europeus chegaram ao continente", disse Shipman. "Então, ninguém pensou em perguntar-lhes algo sobre dingos. Mesmo recentemente, pedir aos aborígenes os seus conhecimentos científicos ou comportamentais não é realmente comum. "No entanto, os aborígenes australianos têm uma longa história de convivência com dingos. Muitas pessoas argumentam que dingos são apenas cães - cães estranhos, mas apenas cães, disse Shipman. Mas, de acordo com os aborígenes, os dingos não são cães. Com os dingos a evidenciar comportamentos entre lobos e cães e exibindo somente uma pequena capacidade genética para consumir alimentos ricos em amido ou tolerar o cativeiro, Shipman conclui que "o dingo é um lobo a caminho de se tornar um cão que nunca chegou lá."

Ainda há muito para descobrir sobre o cão, a sua origem e domesticação, conhecimentos que provavelmente não demorarão graças à evolução da ciência no seu todo e à interacção das suas diversas disciplinas. Particularmente gostaria de saber em quantas raças caninas poderão estar presentes os vários chacais, as raposas e até mesmo o coiote. Pelo que Pat Shipman adiantou, fica clara a relação entre as dietas e o grau de ancestralidade dos cães, o que levará a uma profunda reflexão sobre o que dar a um indivíduo ou a uma raça de ancestralidade já conhecida e com um propósito definido, factores que em conjunto irão categorizar a sua operacionalidade na já conhecida relação entre a alimentação, o bem-estar, o comportamento e o desempenho. Que dieta dar a um cão-lobo, a mesma que dou a um cão? A maior ou menor ingestão de amidos não originará comportamentos diversos nos cães? Lutará a maioria deles de igual modo tanto por um punhado de ração como por um pedaço de carne? Dependendo da sua tolerância aos diversos alimentos (natureza), os cães deverão comer sempre para a função, porque nem sempre “reluzente” é sinónimo de aptidão.

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