segunda-feira, 27 de março de 2023

ELE NUNCA TINHA OUVIDO UM ROUXINOL

 

O meu cão, sem qualquer contributo da minha parte, é extremamente curioso e por isso mesmo inteligente, por vezes tão inteligente que me considero indigno dele, porque chego a dar mais atenção aos cães dos alunos, que também considero meus, do que a ele que vive na minha estrita dependência, o que lança mais uma vez a discussão sobre se um adestrador deve ou não ter cães próprios e se consegue arranjar tempo para eles. Ontem ao cair da noite, ao efectuar a última caminhada do dia, fomos surpreendidos por um canto alto e gorgolejante, rico em assobios e trinados, vindo de um quintal há muito desprezado, quiçá desde a morte do último dos seus proprietários que aconteceu há mais de 50 anos. O canto da ave surpreendeu tudo e todos, houve gente a parar para o escutar e o meu cão quis saltar um muro para irromper naquele quintal. Canaricultor durante décadas e apaixonado por aves de canto, depressa me apercebi que se tratava de um rouxinol (Luscinia megarhynchos), ave migratória de plumagem pouco apelativa, que se confunde com a cor da terra, mas extraordinariamente exuberante de canto.

O canto desta ave, que carece de protecção durante o período de nidificação, tem sido descrito como um dos sons mais bonitos presentes na natureza, servindo de inspiração para canções, livros, contos de fadas, óperas e para grande quantidade de poemas. Assim aconteceu com o compositor musical russo Igor Stravinsky, que baseado no conto “O Rouxinol” (Nattergalen) de Hans Christian Andersen, escreveu uma ópera em 3 actos. Como o canto do rouxinol se propagada e é mais audível à noite, o seu nome inclui a palavra “noite” em muitos idiomas (ex: “Nachtigall” em alemão e “Nightingale” em inglês).

Todos os anos, logo ao romper da primavera, retornava para o mesmo quintal um cuco, que já cá deveria estar e não veio, por razões que desconheço. A ausência desse companheiro trouxe-me tristeza e causou estranheza no meu cão, que não sei por que razão, sempre respeitou as aves, chegando ao ponto de deixar os pombos beberem na sua tigela (há quem diga que isto revela nobreza de carácter e interesse pelos alvos certos). Doravante, o Pastor Alemão vai prestar atenção ao seu companheiro nocturno actual, porque quando o rouxinol deixar de cantar, alguém andará a rondar o quintal que lhe foi confiado para guardar, coisa que também fazia durante o dia quando o cuco andava por cá. Para quem tem andado distraído e ainda não deu por isso, os cães estabelecem com facilidade interacções com animais de outras espécies, ficando isso a dever-se ao querer compreender o mundo ao seu redor. E, se assim não fosse, pouco préstimo teriam para nós! Por seu lado, a interacção entre um papagaio falante e um cão pode levar o último a encetar grande número de acções, inclusive de segurança.

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