Depois do recente desaparecimento do poeta Herberto
Hélder (nunca tão falado em vida), faleceram no dia 2 do corrente mês, dois
incomensuráveis vultos da nossa cultura: o economista e ribatejano José da Silva Lopes e o cineasta portuense Manoel Cândido Pinto de Oliveira.
O primeiro passou a vida a alertar-nos para os pesadelos e o segundo a realizar
sonhos, lembrando, quando comparados, as duas personagens centrais da obra mais
conhecida de Cervantes, Sancho Pança e Dom Quixote, até porque Silva Lopes era
de origem plebeia e Manoel de Oliveira da baixa fidalguia. O economista foi
interventivo e como bom ribatejano sempre “pegou o toiro pelos cornos”, o
cineasta sempre emanou uma aura de bondade e mistério, uma profunda paixão pela
vida e seus prazeres. E talvez por causa disso, o portuense tenha vivido mais 24
anos do que o ribatejano, falecendo com a bonita idade de 106 primaveras. Um e
outro foram objecto das mais altas distinções nacionais, outras se seguirão, já
que os portugueses, por norma, valem mais depois de mortos. Vá-se lá saber
porquê!
De Silva Lopes fica para a história a sua carreira
no Ministério das Finanças, sendo depois do 25 de Abril de 1974 Secretário de
Estado das Finanças do I Governo Provisório e três vezes Ministro desse pelouro
nos II e III Governos provisórios e no III Constitucional, ocupando ainda o
cargo de Ministro do Comércio Externo no IV Governo Provisório. Foi Deputado à
Assembleia da República, Administrador e Representante de Portugal no Banco
Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, Consultor do FMI e do Banco Mundial,
Presidente do Conselho Económico e Social, Técnico consultor do Banco Lisboa
& Açores, Membro do Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos,
Presidente do Conselho de Administração do Montepio Geral e 10º Governador do
Banco de Portugal (a lista de cargos, trabalhos e intervenções dedicadas ao
serviço público é quase infindável). Mais do que por via dos cargos que ocupou,
Silva Lopes fica para os seus contemporâneos como um tecnocrata interventivo,
pragmático, fácil de entender e por vezes desabrido, aqui e ali pautado por uma
pontinha de humor. Exemplo do que acabámos de dizer é a opinião que manifestou
ao “Jornal de Negócios”, em Junho de 2013: “Em Portugal, querem que o
Governo gaste mais, não querem que o Governo aumente os impostos e querem que o
Governo tenha um défice mais pequeno. Ora, isto é uma impossibilidade
aritmética. E, no entanto, as mesmas pessoas, o mesmo grupo, o mesmo partido,
querem estas coisas ao mesmo tempo. Este tipo de situações ilógicas é que nos
levou a isto”. E sobre a relação entre o serviço público, ao qual dedicou a sua
vida, e as novas gerações, é magistral o que disse: “Muitos não querem assumir
a ideia de ir para o Estado porque não vale a pena. Ainda por cima, vão para lá
e só levam pontapés nas canelas, mesmo que sejam bons ministros e estejam a
fazer o melhor que podem… Um dos grandes dramas do país é que hoje ir para o
Estado não tem prestígio. As boas capacidades do país estão a planear a
campanha de um detergente. Ou num banco qualquer. O país está a aproveitar
muito mal as suas capacidades”. Palavras proféticas?
Se é difícil enumerar o trabalho realizado por Silva Lopes, o mesmo
acontece com o de Manoel Oliveira, azáfamas completamente díspares e encetadas
por personalidades totalmente diferentes, ainda que igualmente notórias quanto
ao número e qualidade. Manoel de Oliveira realizou 32 longas-metragens, 17
curtas e médias metragens e 9 filmes, participou como actor noutros 5 e
supervisionou mais 2, ficando ainda com trabalho por concluir, porque
aproveitou a vida ao máximo e era seu desejo fazer filmes até morrer, vontade e
engenho que viu premiados ao longo de décadas nos mais prestigiados festivais
dedicados à 7ª Arte. Como a sua obra é muito extensa, destacamos aqui três dos
seus filmes que nos cativaram e que aconteceram em momentos diferentes da sua
carreira: “Aniki-Bobó”, realizado em 1942, “Benilde ou a Virgem Mãe” de 1975 e
“Non, ou a Vã Glória de Mandar” de 1990. Há um facto na vida de Manoel de
Oliveira que é pouco conhecido pela maioria dos portugueses: na sua juventude, ele
foi Vice-Campeão Nacional do Salto à Vara pelo Sport Club do Porto durante três
anos consecutivos, com a marca de 3.35m. Com 25 anos de idade, em 1933,
participou como actor secundário no Filme “ A Canção de Lisboa”, da autoria de
Cottinelli Telmo, ao fazer o papel de Carlos, o amigo do Vasco Leitão (Vasco Santana)
que chega num belo carro e que o leva até ao “Retiro do Alexandrino” (Casa de
Fados). Morreu o mais velho realizador cinematográfico do mundo e sobre ele
ainda muito se escreverá. Num ápice e no mesmo dia, Portugal perde dois dos
seus filhos mais ilustres: o economista pessimista (realista) e o seu ícone
maior do cinema, o primeiro livrou-se das “personagens” e o segundo ficou sem fita,
atingindo como havia dito “o fim da macacada” (a morte).
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