Cresce o número de cidadãos com uma filosofia de vida próxima à da
personagem fictícia que iremos narrar, um homem de quarenta anos, dado à
contemplação e ao isolamento, avesso ao consumismo e às convenções sócio
religiosas vigentes, tocado pelo esoterismo e apaixonado pelos “Vedas”, um
místico que deseja ser sumo-sacerdote de si mesmo e viver aquilo que a vida não
lhe permite, que se distancia dos demais com facilidade e que faz do seu
quotidiano um retiro espiritual, dominado pelos seus pensamentos abstractos e
consumido pelo âmago do ser, que se espraia pelo contacto com a natureza,
deleitando-se no estender dos olhos pela linha do horizonte. Deus é para ele
uma identidade criadora, abstracta e bondosa, sem nome ou com muitos, uma
energia cósmica positiva que o toca e diferencia dos demais, induzindo-o a
estados de exaltação e recolhimento. No meio disto tudo, como não poderia
deixar de ser, adquiriu um cão.
Disposto a criá-lo a seu
modo, numa relação algo transcendental, este eremita oriental do ocidente,
começou por pôr o comedouro e bebedouro do cachorro no chão, o que para além de
lhe ter rebentado os aprumos, acostumou-o a procurar “petiscos” no solo por
todo o lado, tornando-o guloso e sujeitando-o a várias intoxicações,
normalmente acompanhadas por diarreia (ainda não foi envenenado), mau hábito
que não deu descanso ao desafortunado”homem-santo”, obrigado desde logo policiar as acções
do cachorro, exactamente nos momentos que desejava destinados à meditação, à
contemplação e ao desprendimento. Obrigado a aceitar a sua sorte, dizia para si
mesmo: “É o meu karma!”.
Já cansado de correr atrás do bicho, decidiu ir passeá-lo para a
floresta, local menos frequentado e onde raramente há comida jogada no chão.
Avesso a andar com o animal à trela e apostado em tirar partido dos benefícios
da mãe natureza, optou por soltá-lo, na incerteza de que ele voltaria quando o
chamasse mas confiante na protecção dos bons deuses. Certa vez, num dia de
muito calor, o cachorro atirou-se para dentro de uma lagoa e o homem ficou
feliz por ele, gabou-lhe os instintos e ficou a admirá-lo, a vê-lo nadar e a
abocanhar aquela água. Azar dos azares, a água estava contaminada com uma
verminose de nome “giárdia”, porque os animais silvestres ali se banhavam
também, estando alguns infectados por ela. Como resultado daquela aventura, o
cão ficou doente, entrou em diarreia e não dispensou os bons ofícios do
veterinário. No caminho de volta a casa e reflectindo sobre o sucedido, o homem
dizia para si mesmo: “É o meu Karma!”. Nunca mais voltaram aquela lagoa.
Apostado em arranjar percursos alternativos, o nosso homem optou para
passear o cachorro pelos pinhais, usufruindo da sombra daquela paisagem
magnífica, sem dúvida agradável e mirabolante, esquecendo-se do mês em que se
encontrava e de verificar se os pinheiros tinham evidências da
“processionária”. E não é que tinham mesmo! O cachorro acabou por abocanhar uma
das lagartas, o que deixou muito desagradado e aflito, correndo mais uma vez o
dono para o veterinário. Afortunadamente chegou a tempo, o clínico lavou
imediata e abundantemente a língua e a boca do animal e não lhe sobraram
lesões, o que não livrou o dono de um tremendo susto. Meditando sobre o
assunto, dizia para si mesmo: “é o meu karma!”. A partir daquele dia passou a
olhar para a base e copa dos pinheiros, para se certificar da ausência de
lagartas e casulos.
Pelo sim pelo não e para
ficar mais descansado, até porque gato escaldado de água fria tem medo, virou-se
para as serras, onde raros são os pinheiros e a vegetação é mais baixa, opção
que muito agradou ao cachorro, que corria por ali que nem um desalmado, num
galope estonteante que aquecia o coração do dono. Finalmente haviam encontrado
o sítio certo para o seu deleite, pelo menos parecia! Mas como por vezes as
aparências iludem, um dia após outro, o animal apareceu com as patas inchadas e
com cortes nas almofadas das patas, porque ali havia tojos e outros arbustos
rasteiros espinhosos. Como o cachorro não havia meio de recuperar dos golpes, lá foram os
dois para o veterinário, que questionando ao dono, disse-lhe. “Então, o que é
desta vez?”. “O que é que quer, é o meu Karma!” - rematou o já inconformado
dono. Passada uma semana, o cão estava pronto para outra.
Farto das agruras do campo e disposto a encontrar espaços livres para o
seu cachorro, onde pudesse correr à vontade, livre da trela e sem maiores
percalços, passou a levá-lo para um jardim perto da sua residência, onde não
haviam poças, pinheiros e espinhos, preferindo o horário nocturno por ser menos
frequentado, haver menor possibilidade de “petiscos” e encontros com cães
embirrantes (por vezes os donos ainda o são mais). Tudo parecia correr bem e
durante dias não houve qualquer novidade, o astral ia alto quiçá pelas preces
do homem. Sem ele saber, algumas senhoras caridosas e amigas dos animais
desafortunados, iam à mesma hora deixar comida para uns gatos desprezados. O
cachorro sentindo-lhe o cheiro, raspou-se pelo jardim afora e vendo um gato
desprevenido e concorrente, zarpou atrás dele com quanta força tinha, acabando
atropelado por um camião do lixo numa rua contínua. Felizmente o veículo só lhe
pisou a cauda, acabando o sinistrado cão só com um coto. Desta vez o
veterinário nem abriu a boca e o dono também não, ainda que suspirasse para si:
“É o meu karma!”.
Daí para a frente, o cão ainda viria a sofrer muitas desventuras, tantas
que o obrigaram a falar e a dirigir-se ao dono nestes termos: “Não é o teu, mas
o meu karma! Porque não tenho um dono previdente e apostado na minha
salvaguarda, que vive nas alturas enquanto circulo aqui na terra, absorto nas
divindades e distante dos perigos que me cercam”. É possível que o cão não
tenha falado mas a mensagem chegou aos ouvidos daquele guru.
Apesar da história ser fictícia e poder ser interminável, tudo já
aconteceu, produto da incúria, ignorância e desleixo de muitos donos, que
desinformados e alheados dos perigos ao redor dos seus cães, confiantes não se
sabe em quê, têm contribuído para as suas enfermidades, sinistralidade e
eliminação. E como todas as histórias devem ter uma moral, esta não escapa à
regra, apontando três princípios a respeitar pelos proprietários caninos, são
eles: Antes de comprar um cão informe-se detalhadamente sobre aquilo que lhe é
devido, nunca o solte sem ter a certeza do seu retorno e jamais o solte sem
bater primeiro o terreno, certificando-se da inexistência de riscos para o
animal. Infelizmente, (só Deus sabe o quanto nos custa dizer isto), proprietários
caninos e bom senso nem sempre andam de mãos dadas. Oxalá o nosso alerta seja
ouvido, já que os cães não falam.
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