quinta-feira, 16 de abril de 2015

É O MEU KARMA!

Cresce o número de cidadãos com uma filosofia de vida próxima à da personagem fictícia que iremos narrar, um homem de quarenta anos, dado à contemplação e ao isolamento, avesso ao consumismo e às convenções sócio religiosas vigentes, tocado pelo esoterismo e apaixonado pelos “Vedas”, um místico que deseja ser sumo-sacerdote de si mesmo e viver aquilo que a vida não lhe permite, que se distancia dos demais com facilidade e que faz do seu quotidiano um retiro espiritual, dominado pelos seus pensamentos abstractos e consumido pelo âmago do ser, que se espraia pelo contacto com a natureza, deleitando-se no estender dos olhos pela linha do horizonte. Deus é para ele uma identidade criadora, abstracta e bondosa, sem nome ou com muitos, uma energia cósmica positiva que o toca e diferencia dos demais, induzindo-o a estados de exaltação e recolhimento. No meio disto tudo, como não poderia deixar de ser, adquiriu um cão.
Disposto a criá-lo a seu modo, numa relação algo transcendental, este eremita oriental do ocidente, começou por pôr o comedouro e bebedouro do cachorro no chão, o que para além de lhe ter rebentado os aprumos, acostumou-o a procurar “petiscos” no solo por todo o lado, tornando-o guloso e sujeitando-o a várias intoxicações, normalmente acompanhadas por diarreia (ainda não foi envenenado), mau hábito que não deu descanso ao desafortunado”homem-santo”, obrigado desde logo policiar as acções do cachorro, exactamente nos momentos que desejava destinados à meditação, à contemplação e ao desprendimento. Obrigado a aceitar a sua sorte, dizia para si mesmo: “É o meu karma!”.
Já cansado de correr atrás do bicho, decidiu ir passeá-lo para a floresta, local menos frequentado e onde raramente há comida jogada no chão. Avesso a andar com o animal à trela e apostado em tirar partido dos benefícios da mãe natureza, optou por soltá-lo, na incerteza de que ele voltaria quando o chamasse mas confiante na protecção dos bons deuses. Certa vez, num dia de muito calor, o cachorro atirou-se para dentro de uma lagoa e o homem ficou feliz por ele, gabou-lhe os instintos e ficou a admirá-lo, a vê-lo nadar e a abocanhar aquela água. Azar dos azares, a água estava contaminada com uma verminose de nome “giárdia”, porque os animais silvestres ali se banhavam também, estando alguns infectados por ela. Como resultado daquela aventura, o cão ficou doente, entrou em diarreia e não dispensou os bons ofícios do veterinário. No caminho de volta a casa e reflectindo sobre o sucedido, o homem dizia para si mesmo: “É o meu Karma!”. Nunca mais voltaram aquela lagoa.
Apostado em arranjar percursos alternativos, o nosso homem optou para passear o cachorro pelos pinhais, usufruindo da sombra daquela paisagem magnífica, sem dúvida agradável e mirabolante, esquecendo-se do mês em que se encontrava e de verificar se os pinheiros tinham evidências da “processionária”. E não é que tinham mesmo! O cachorro acabou por abocanhar uma das lagartas, o que deixou muito desagradado e aflito, correndo mais uma vez o dono para o veterinário. Afortunadamente chegou a tempo, o clínico lavou imediata e abundantemente a língua e a boca do animal e não lhe sobraram lesões, o que não livrou o dono de um tremendo susto. Meditando sobre o assunto, dizia para si mesmo: “é o meu karma!”. A partir daquele dia passou a olhar para a base e copa dos pinheiros, para se certificar da ausência de lagartas e casulos.
Pelo sim pelo não e para ficar mais descansado, até porque gato escaldado de água fria tem medo, virou-se para as serras, onde raros são os pinheiros e a vegetação é mais baixa, opção que muito agradou ao cachorro, que corria por ali que nem um desalmado, num galope estonteante que aquecia o coração do dono. Finalmente haviam encontrado o sítio certo para o seu deleite, pelo menos parecia! Mas como por vezes as aparências iludem, um dia após outro, o animal apareceu com as patas inchadas e com cortes nas almofadas das patas, porque ali havia tojos e outros arbustos rasteiros espinhosos. Como o cachorro não havia meio de recuperar dos golpes, lá foram os dois para o veterinário, que questionando ao dono, disse-lhe. “Então, o que é desta vez?”. “O que é que quer, é o meu Karma!” - rematou o já inconformado dono. Passada uma semana, o cão estava pronto para outra.
Farto das agruras do campo e disposto a encontrar espaços livres para o seu cachorro, onde pudesse correr à vontade, livre da trela e sem maiores percalços, passou a levá-lo para um jardim perto da sua residência, onde não haviam poças, pinheiros e espinhos, preferindo o horário nocturno por ser menos frequentado, haver menor possibilidade de “petiscos” e encontros com cães embirrantes (por vezes os donos ainda o são mais). Tudo parecia correr bem e durante dias não houve qualquer novidade, o astral ia alto quiçá pelas preces do homem. Sem ele saber, algumas senhoras caridosas e amigas dos animais desafortunados, iam à mesma hora deixar comida para uns gatos desprezados. O cachorro sentindo-lhe o cheiro, raspou-se pelo jardim afora e vendo um gato desprevenido e concorrente, zarpou atrás dele com quanta força tinha, acabando atropelado por um camião do lixo numa rua contínua. Felizmente o veículo só lhe pisou a cauda, acabando o sinistrado cão só com um coto. Desta vez o veterinário nem abriu a boca e o dono também não, ainda que suspirasse para si: “É o meu karma!”.
Daí para a frente, o cão ainda viria a sofrer muitas desventuras, tantas que o obrigaram a falar e a dirigir-se ao dono nestes termos: “Não é o teu, mas o meu karma! Porque não tenho um dono previdente e apostado na minha salvaguarda, que vive nas alturas enquanto circulo aqui na terra, absorto nas divindades e distante dos perigos que me cercam”. É possível que o cão não tenha falado mas a mensagem chegou aos ouvidos daquele guru.
Apesar da história ser fictícia e poder ser interminável, tudo já aconteceu, produto da incúria, ignorância e desleixo de muitos donos, que desinformados e alheados dos perigos ao redor dos seus cães, confiantes não se sabe em quê, têm contribuído para as suas enfermidades, sinistralidade e eliminação. E como todas as histórias devem ter uma moral, esta não escapa à regra, apontando três princípios a respeitar pelos proprietários caninos, são eles: Antes de comprar um cão informe-se detalhadamente sobre aquilo que lhe é devido, nunca o solte sem ter a certeza do seu retorno e jamais o solte sem bater primeiro o terreno, certificando-se da inexistência de riscos para o animal. Infelizmente, (só Deus sabe o quanto nos custa dizer isto), proprietários caninos e bom senso nem sempre andam de mãos dadas. Oxalá o nosso alerta seja ouvido, já que os cães não falam.

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