quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

NO PAÍS DOS POETAS ATÉ A MAIS ELEMENTAR PRÁTICA NECESSITA DE INSPIRAÇÃO

Por portas e travessas conheci um cidadão, que tendo outra actividade profissional, se dedica na medida do possível à poesia e à fotografia, um portuense descontraído, fraterno e despido de preconceitos, pronto a ouvir e propenso a fazer amigos, que faz da humildade a primeira das suas virtudes. Em certa ocasião, quando inquirido acerca da proliferação da sua poesia, ouvi-lhe: “eu não faço poemas para gozo próprio mas procuro uma mensagem que ecoe no maior número de pessoas, porque o meu culto pessoal pode ser um entrave para alcançar os outros”, princípio simples que me deixou por algum tempo a matutar. Neste País de poetas que é o nosso, a ideia dominante não é essa, porque a maioria entende a arte como aquilo que lhe dá gozo, ao ponto da mais elementar prática necessitar de inspiração, princípio medíocre que afecta a formação, condiciona o trabalho, entrava o progresso, compromete a produção e obsta ao bem-estar geral, levando alguns mais saudosos a reclamar pela “justiça de Fafe” (a do cacete).
Na cinotecnia passa-se exactamente o mesmo, onde muitos são os artistas e muito poucos são os esforçados, apesar da cognição canina ser maioritariamente empírica e não dispensar o contributo humano para o seu desenvolvimento, adaptação e aproveitamento. Superabundam no adestramento indivíduos que apreciam os dons alheios e são dados ao “click”, que entaramelados pelo seu gozo pessoal, relegam para a ausência de virtude os desaires próprios do seu parco esforço, votando para depois o afinco que hoje lhes é exigido, o que normalmente tem como reflexos a menor robustez física, a parcimónia cognitiva, vários desequilíbrios psíquicos e o inevitável subaproveitamento dos animais ao seu encargo. Os cães aprendem fazendo e só os donos esperam que eles nasçam ensinados!
Como se depreende, o adestramento antes de ser arte é prática e só será arte a partir do domínio da técnica, enquanto sublimidade que não dispensa o trabalho oficinal e que aposta na adequação de homens e cães, tarefa depuradora que objectiva o melhor entendimento entre ambos, limando nuns e noutros as imperfeições que obstam a esse propósito. É no trabalho oficinal que os condutores caninos lusos apresentam maiores dificuldades, quando comparados com outros, porque se julgam iluminados e capazes de dispensar as metas que garantem os objectivos, por presunção e ausência de humildade, achaques que os induzem ao improviso e à confusão, mercê do desprezo pelas regras que garantem o acerto nas soluções, lembrando um serralheiro, de quem já falámos na rubrica “OS CÃES DOS SALOIOS”, que desprezando o esquadro dizia: “porrada daqui, porrada dali e está uma esquadria feita”.
E nesta terra de fenómenos, que não se remetem só à cidade do Entroncamento, muitos substituem a disponibilidade e a constância nas acções, qualidades indispensáveis ao bom rendimento laboral, pela prestação sujeita a estados anímicos e à inspiração, características voláteis que tornarão os seus cães desconfiados, pela surpresa do imprevisto que atentará contra o elementar condicionamento. Bons como poucos no improviso, cativos do seu próprio juízo e com dificuldade em reconhecer os seus erros, na célebre máxima de “cada cabeça, cada sentença”, acabam por fazer da excepção regra, dando a tudo um cunho pessoal que inviabiliza o seu próprio desenvolvimento e desaproveita o manancial genético dos cães ao seu encargo. Diante deste panorama, não é de estranhar que sejam muitos os cães para competição e muito poucos os destinados para fim útil, o que agiganta o carácter terapêutico canino, porque só os cães se prestam e são válidos para tamanha insanidade (os cavalos jogá-los-iam pelas orelhas!).
É possível que este modo de vida esteja ligado a princípios pedagógicos hoje aceites e que surja como corolário de indesejáveis políticas educacionais, que possibilitaram o alcance dos prémios gratuitamente, desequilibrando o são equilíbrio entre direitos e deveres. Que ninguém se iluda: primeiro somos devedores dos cães e uma vez saldadas as nossas dívidas, recebê-los-emos como prémio, porque uma coisa é o que esperamos deles e outra bem diversa é aquilo que esperam de nós. Eles irão cobrar-nos observação e estudo, carinho, ânimo, paciência e correcção, num acompanhamento a par e passo que obrigará a rara disponibilidade, para que sejam compreendidos, respeitados e utilizados segundo o têm para dar. Depois, seguir-nos-ão por toda a parte, vendo-nos como líderes e seus melhores amigos. Talvez por édito divino ou por alguma menos valia nossa, tanto na vida quanto no adestramento, nada alcançaremos sem esforço. Contudo, ele sempre será premiado!

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