Por portas e travessas conheci um cidadão, que tendo outra actividade
profissional, se dedica na medida do possível à poesia e à fotografia, um
portuense descontraído, fraterno e despido de preconceitos, pronto a ouvir e
propenso a fazer amigos, que faz da humildade a primeira das suas virtudes. Em
certa ocasião, quando inquirido acerca da proliferação da sua poesia, ouvi-lhe:
“eu não faço poemas para gozo próprio mas procuro uma mensagem que ecoe no
maior número de pessoas, porque o meu culto pessoal pode ser um entrave para
alcançar os outros”, princípio simples que me deixou por algum tempo a matutar.
Neste País de poetas que é o nosso, a ideia dominante não é essa, porque a
maioria entende a arte como aquilo que lhe dá gozo, ao ponto da mais elementar
prática necessitar de inspiração, princípio medíocre que afecta a formação,
condiciona o trabalho, entrava o progresso, compromete a produção e obsta ao
bem-estar geral, levando alguns mais saudosos a reclamar pela “justiça de Fafe”
(a do cacete).
Na cinotecnia passa-se exactamente o mesmo, onde muitos são os artistas
e muito poucos são os esforçados, apesar da cognição canina ser
maioritariamente empírica e não dispensar o contributo humano para o seu
desenvolvimento, adaptação e aproveitamento. Superabundam no adestramento
indivíduos que apreciam os dons alheios e são dados ao “click”, que
entaramelados pelo seu gozo pessoal, relegam para a ausência de virtude os
desaires próprios do seu parco esforço, votando para depois o afinco que hoje
lhes é exigido, o que normalmente tem como reflexos a menor robustez física, a
parcimónia cognitiva, vários desequilíbrios psíquicos e o inevitável subaproveitamento
dos animais ao seu encargo. Os cães aprendem fazendo e só os donos esperam que
eles nasçam ensinados!
Como se depreende, o adestramento antes de ser arte é prática e só será
arte a partir do domínio da técnica, enquanto sublimidade que não dispensa o
trabalho oficinal e que aposta na adequação de homens e cães, tarefa depuradora
que objectiva o melhor entendimento entre ambos, limando nuns e noutros as
imperfeições que obstam a esse propósito. É no trabalho oficinal que os
condutores caninos lusos apresentam maiores dificuldades, quando comparados com
outros, porque se julgam iluminados e capazes de dispensar as metas que
garantem os objectivos, por presunção e ausência de humildade, achaques que os
induzem ao improviso e à confusão, mercê do desprezo pelas regras que garantem
o acerto nas soluções, lembrando um serralheiro, de quem já falámos na rubrica
“OS CÃES DOS SALOIOS”, que desprezando
o esquadro dizia: “porrada daqui, porrada dali e está uma esquadria feita”.
E nesta terra de fenómenos, que não se remetem só à cidade do
Entroncamento, muitos substituem a disponibilidade e a constância nas acções,
qualidades indispensáveis ao bom rendimento laboral, pela prestação sujeita a
estados anímicos e à inspiração, características voláteis que tornarão os seus
cães desconfiados, pela surpresa do imprevisto que atentará contra o elementar condicionamento.
Bons como poucos no improviso, cativos do seu próprio juízo e com dificuldade
em reconhecer os seus erros, na célebre máxima de “cada cabeça, cada sentença”,
acabam por fazer da excepção regra, dando a tudo um cunho pessoal que
inviabiliza o seu próprio desenvolvimento e desaproveita o manancial genético
dos cães ao seu encargo. Diante deste panorama, não é de estranhar que sejam
muitos os cães para competição e muito poucos os destinados para fim útil, o
que agiganta o carácter terapêutico canino, porque só os cães se prestam e são
válidos para tamanha insanidade (os cavalos jogá-los-iam pelas orelhas!).
É possível que este modo de vida esteja ligado a princípios pedagógicos
hoje aceites e que surja como corolário de indesejáveis políticas educacionais,
que possibilitaram o alcance dos prémios gratuitamente, desequilibrando o são
equilíbrio entre direitos e deveres. Que ninguém se iluda: primeiro somos
devedores dos cães e uma vez saldadas as nossas dívidas, recebê-los-emos como
prémio, porque uma coisa é o que esperamos deles e outra bem diversa é aquilo
que esperam de nós. Eles irão cobrar-nos observação e estudo, carinho, ânimo,
paciência e correcção, num acompanhamento a par e passo que obrigará a rara
disponibilidade, para que sejam compreendidos, respeitados e utilizados segundo
o têm para dar. Depois, seguir-nos-ão por toda a parte, vendo-nos como líderes
e seus melhores amigos. Talvez por édito divino ou por alguma menos valia nossa,
tanto na vida quanto no adestramento, nada alcançaremos sem esforço. Contudo,
ele sempre será premiado!
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