Exactamente
como acontece na história da humanidade, também a cinotecnia se encontra
sujeita a avanços e recuos, na alternância entre a criação dos métodos e a sua ruptura,
mercê da novidade que busca o progresso, interrupção tantas vezes radical que
considera totalmente inválida a contribuição anterior, como se para trás tudo
fosse mau e o corte abrupto com o passado fosse a melhor das opções. Ao
abordarmos este assunto, estamos a lembrar-nos do fervor idealista por detrás
de todas as revoluções e do suporte económico que garante todos os ideais,
primeiro “deita-se abaixo” e depois, inevitavelmente, há que reconstruir,
subvertendo-se invariavelmente algumas aspirações por falta de sustentação, já
que nem tudo o que se deseja é fazível. Para contextualizarmos o que acabámos
de dizer, adiantamos um exemplo concreto a que assistimos. Numa determinada
parada militar, onde se encontravam quatro binómios, divididos por duas forças,
com os restantes militares em “apresentar armas”, por ocasião do toque do Hino
Nacional, três dos militares caninos não paravam quietos, calados e alinhados
pelos seus tratadores, havendo um deles que, na primeira fileira da sua força,
amarinhou pelas calças acima do seu condutor, empoleirando-se nele como se
andasse à procura de algo em falta, o que levou à hilaridade do público naquele
momento solene, na circunstância constituído por nacionais e estrangeiros.
Como se
depreende este não é um exemplo único. Não temos como objectivo depreciar ou
vituperar aqueles que, através de juramento solene, arriscam a sua vida pelo
nosso bem-estar e soberania. O que muito estranhamos é a falta de obediência
daqueles cães, também eles militares e adestrados para o efeito, cujo
cumprimento da ordem de “quieto” não acontece ou tarda em acontecer, envergonhando
e comprometendo de sobremaneira o desempenho e o brio das forças onde são
inseridos, que devem operar a uma só voz, enquanto membros do mesmo corpo. Ao
dizermos isto, não somos movidos por nenhum tipo de saudosismo, porque somos
conhecedores dos abusos perpetrados sobre os cães militares do passado que, em
idêntica situação, se viam obrigados a carregar uma incómoda, pesada e mal-amanhada
capa, com as cores e insígnias daquela força, tanto de Inverno como de Verão.
Bendito seja quem cortou com essa tradição!
E antes
que se acuse o reforço positivo por tal despropósito e ausência de brio, que
quando bem operado torna as respostas caninas mais céleres e duradouras,
enquanto método que melhor serve à sua autonomia condicionada e que desenvolve
como nenhum a cumplicidade entre homens e cães, importa descortinar as causas
do despreparo, que apontam para a ausência de treino específico ou para uma
pedagogia de treino imprópria ou insuficiente, possivelmente também para a
escolha de binómios ou cães errados, porque doutro modo o desacerto não
aconteceria, já que o treino aturado garante o bom desempenho e vence a
surpresa, dotando os binómios da comodidade inerente à função, porque sabem ao
que vão e aquilo que os espera. É importante não esquecer que estes cães fazem
parte de uma Unidade dedicada à segurança e ao protocolo do Estado, e que em
função disso, tais veleidades só podem ser consideradas estranhas, indesejáveis
e reprováveis. Será coisa do outro mundo conservar os cães quietos enquanto o
Hino Nacional é tocado? A história diz que não e as gravações que temos em mão,
que se reportam à década de 80, afirmam dessa possibilidade.
A Portuguesa,
da autoria de Alfredo Keil e Henrique Lopes Mendonça, que é tocada nas paradas
militares e nos actos oficiais, tem uma duração de sensivelmente um minuto (com
a introdução incluída), já que não se opta por cantar a totalidade dos seus
versos (para nós tão importantes quanto aqueles que convencionámos guardar).
Sabendo-se que a música até tem um efeito relaxante nos cães, pergunta-se: será
assim tão difícil permanecerem quietos enquanto se houve o Hino da Pátria?
Quanto tempo deverá um cão permanecer quieto debaixo de ordem? Teoricamente,
até que o dono o chame; na prática, de acordo com a sua preparação. Não será o
treino por definição também rigor? E se uma cerimónia tem uma hora de duração,
custará assim tanto treinar gradualmente os cães para isso? Em qualquer esquina
e até à porta dos canis conseguimos alcançar esse objectivo, particularmente
quando temos no mínimo 20 dias para o fazer! E se o problema é a música, ou
levam-se os cães para o meio duma orquestra ou traz-se-lha até eles mediante
gravação! É também possível que o incómodo dos animais tenha a ver com a
novidade do ecossistema, que estejam mais adaptados às sombras dos cedros e pinheiros
do que familiarizados com a urbe e a sua azáfama.
Não
deverá haver um são equilíbrio entre o “não se rir para os cães” do passado e o
constante abanar da sua cauda, que hoje se procura? Quando em parada, onde
deverá estar a fixação dos cães: na pessoa dos seus tratadores ou nos objectos
dos seus intentos? Certamente ainda deverão restar algumas diferenças entre um
cão militar e um de uso civil! Graciosamente o respeito pela autoridade ainda
impera e a consideração pela farda não desapareceu, porque se assim não fosse,
seria um pandemónio, se eventualmente alguém se lembrasse de lançar-lhes uma
bola, soltasse outros cães, lhes jogasse comida, um churro na sua direcção ou
desatasse a correr na sua frente. Duma coisa estamos certos: a ansiedade nos
cães obsta à sua capacidade de aprendizagem, pela dependência que leva à
redução da sua autonomia funcional. O reforço positivo é um instrumento de
trabalho, uma meta que serve e bem um objectivo: o ensino dos cães, que deverá
ser gradualmente abandonado quando tornado desnecessário e importar dotá-los
dum carácter impoluto e incorruptível. Como é óbvio, não nos estamos a referir
aos cães destinados à detecção de substâncias químicas ou ao salvamento, mas
aos destinados à segurança, para que não substituam os alvos pelos
potenciadores de mordedura, acabem manietados ou envenenados e não reajam por
modo próprio a qualquer tipo de provocação, mordendo em camaradas de armas ou
nas entidades que pretensamente deveriam guardar.
É
evidente que tudo isto irá passar pela escolha acertada dos seus tratadores. Na
semana passada falámos no texto “ PARA QUE A MEMÓRIA NÃO SE
EXTINGA: A SECÇÃO DE CÃES DA CCAÇ 763”, dos critérios que então presidiram à escolha dos
seus tratadores. Vamos relembrá-los: exigiam-se militares que gostassem de
cães, que fossem pacientes, perseverantes, inteligentes, expeditos,
desembaraçados e imaginativos, com boa resistência física e capazes de se
coordenarem física e mentalmente, ao que nós acrescentaríamos o espírito de
sacrifício, a valentia e o destemor para a função, porque sabemos que os cães
valentes testam os seus tratadores e é-nos difícil imaginar um tratador que,
por causa do cão lhe rosnar (o que é uma ameaça), o despreze e deixe a enraizar
no canil. E se realçamos o papel dos tratadores, visando o prémio do seu
empenho, somos obrigados a falar dos critérios relativos à selecção dos cães,
que ontem como hoje, carecem de gente verdadeiramente capacitada para esse
efeito, indigitada pelo saber e não por nomeação, capaz de neles identificar os
impulsos herdados inerentes ao equilíbrio prà função.
Falta
travamento aos actuais cães militares e policiais? Pensamos que sobre isso
ninguém tem dúvida, assim como ninguém duvida que estão a morder mais, novidade
também alicerçada no maior recrutamento de Malinois, que carregam
desalmadamente e que sofrem demasiado com as regras indutoras à disciplina, o
que nalguns casos coloca os seus tratadores num beco sem saída, porque se
apertam ficam sem cão e se não apertam são apertados! E quem duvidar disto,
basta ver a cessação dos seus ataques nos vídeos das diferentes polícias
internacionais, onde não raramente, no meio da excitação das capturas, não
tendo mais ninguém a quem morder, acabam por carregar nos seus próprios
tratadores. A actual crise económica, que é global, também se encontra ligada à
menor qualidade dos cães, já que pelo preço de um bom Pastor Alemão podem
comprar-se 4 Malinois, senão mais, porque se vierem do Leste Europeu, o lote
poderá ainda ser recheado com mais um ou dois (o que continua a acontecer).
Em abono
à verdade, não podemos analisar isoladamente a prestação dos cães, porque ela
apenas reflecte um conjunto de causas que a compromete, intrinsecamente ligadas
à história e desenvolvimento do País, que continuam a obstar à instituição duma
verdadeira escola cinotécnica em Portugal, independentemente dela vir a ser de
cariz militar ou civil. Quando estalou a Primeira Guerra Mundial, ocasião que
despoletou o grande “boom” da
cinotecnia militar, onde os cães foram usados para diferentes fins, 80% do
Corpo Expedicionário Português mandado para França era analfabeto, o que
nalguns casos obrigava os oficiais a escreverem as cartas para as famílias dos
soldados, testemunho presente no filme “João Ratão” e que serviu de base ao seu
enredo, da autoria de Jorge Brum do Canto e estreado em 1940 (vale a pena
revê-lo!). Compreensivelmente, só no final dos anos 50, quarenta anos depois do
uso inicial dos cães militares, é que
nos chegaram os primeiros cães para esse fim, facto revelador do nosso atraso
relativo à cinotecnia militar europeia e internacional, demorando ainda mais
algumas décadas para termos a primeira e única escola de cães-guias de cegos em
Portugal.
O avanço além-fronteiras
da cinotecnia ficou a dever-se ao evolucionismo e ao eugenismo, que serviram de
base à canicultura, ao incremento cinológico e ao estudo do comportamento
animal, caminho primeiro encetado pelos entomologistas e depois continuado pelos
etólogos, a todo um conjunto de ciências desprezadas e abominadas pela
ignorância e pelo chauvinismo beato que aqui grassavam e que teimam em se ir
embora. Nos primórdios do Séc. XX e em particular nas décadas de 20 e 30, já
abundavam na Inglaterra, na Áustria e na Alemanha investigadores e peritos em
comportamento animal, remontando a essa época o desenvolvimento embrionário da
cinotecnia e o surgimento das primeiras escolas de cães-guias. Nesta matéria
(há quem diga que também noutras), atrasámo-nos 40 anos e quem o quiser
comprovar, basta comparar quando foram elaborados os primeiros estalões das
raças caninas alemãs, belgas e portuguesas, o que também explica o carácter
primitivo e de menor préstimo das nossas raças, cuja selecção se remeteu ao
viver pouco evoluído e às parcas expectativas das nossa gentes de então.
Ainda que
desenvolvam o que recebem para os seus próprios fins, levando por vezes à
descoberta de outros, os cinotécnicos militares sempre se aproveitam da
canicultura e da cinologia adjacentes, o que no nosso caso e desde há muito,
tem obrigado à importação de cães, uma vez que é reconhecido o menor préstimo
das raças autóctones e ao envio de quadros para países onde a cinotecnia está
mais evoluída ou em constante progresso, numa sequência de estrutura-ruptura
segundo as preocupações do momento, modo desenrascado que continua a obstar à
formação de uma verdadeira escola cinotécnica militar portuguesa, que
desconsiderando o que tem, ciclicamente tenta pegar por estaca, muito embora
nisso sejam os militares os menos culpados, porque não tendo onde buscar
formação, não lhes sobra outro remédio. É provável que venhamos a precisar
doutro Conde de Lippe, desta vez para ao cães, porque jamais se levantará uma
escola com meia dúzia de manuais ou fichas e com a experiência granjeada na
estranja em apenas dois, três ou seis meses.
Torna-se
evidente que o problema é de natureza cultural, o que nos remete para o ensino nas
universidades, que atendendo também à preferência dos portugueses por cães e ao
seu número, há muito que deveriam fornecer cursos de etologia válidos,
rigorosamente científicos, devidamente reconhecidos e não do tipo
“cash-knowledge”, normalmente ministrados por oportunistas que recebendo umas
lufadas sobre comportamento animal e vindos da veterinária ou da zootecnia,
respondem indevidamente pelas cátedras, sendo nisso assessorados por práticos
de cariz desportivo, rudimentarmente habilitados, mais apaixonados do que
objectivos e confinados a um só método. Não estará na hora de estabelecer uma
parceria com as faculdades estrangeiras que ministram este tipo de ensino?
Bem vistas as
coisas, o pobre do tratador que dá a cara é o menos culpado, porque carrega às
costas o fardo do País, uma saca de retalhos cozida pela ignorância, um
conjunto de procedimentos que não entende e outros tantos que lhe omitiram. E
se a situação não se alterar, mais vale que saia da formatura com o cão, opção
do seu agrado pelo aumento dos momentos lúdicos que reforçam a cumplicidade
mútua, porque se não forem vistos também não atentarão contra a “ordem unida”.
Provavelmente
ninguém lhe disse que a obediência solicitada a um cão tem uma condição
exclusiva: o seu cumprimento pronto e imediato, e que a prontidão dos ataques
caninos deve ser igual à sua cessação, que um cão não tem mais ou menos
obediência, ou tem ou não tem, pressupostos e conteúdos de ensino que outrora
foram respeitados e alcançados por outros que rendeu sem os conhecer. O corte
com passado tem como reflexos a confusão no presente e a incerteza no futuro, pela
ausência de lições e repetição dos mesmos erros. Sem que este tratador saiba,
provavelmente os seus instrutores também não, algures numa recôndita e
esquecida arrecadação dum Comando-Geral ou duma Companhia, entre tantos livros
esquecidos, empoeirados e amarelados pelo tempo, repousam velhos manuais com a
solução para o problema, obras de gente que hoje assiste desolada à sua fraca
prestação. Realmente, quem não lê é como quem não vê!
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