terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

CINOTECNIA: A ESTRUTURA E A RUPTURA DOS MÉTODOS

Exactamente como acontece na história da humanidade, também a cinotecnia se encontra sujeita a avanços e recuos, na alternância entre a criação dos métodos e a sua ruptura, mercê da novidade que busca o progresso, interrupção tantas vezes radical que considera totalmente inválida a contribuição anterior, como se para trás tudo fosse mau e o corte abrupto com o passado fosse a melhor das opções. Ao abordarmos este assunto, estamos a lembrar-nos do fervor idealista por detrás de todas as revoluções e do suporte económico que garante todos os ideais, primeiro “deita-se abaixo” e depois, inevitavelmente, há que reconstruir, subvertendo-se invariavelmente algumas aspirações por falta de sustentação, já que nem tudo o que se deseja é fazível. Para contextualizarmos o que acabámos de dizer, adiantamos um exemplo concreto a que assistimos. Numa determinada parada militar, onde se encontravam quatro binómios, divididos por duas forças, com os restantes militares em “apresentar armas”, por ocasião do toque do Hino Nacional, três dos militares caninos não paravam quietos, calados e alinhados pelos seus tratadores, havendo um deles que, na primeira fileira da sua força, amarinhou pelas calças acima do seu condutor, empoleirando-se nele como se andasse à procura de algo em falta, o que levou à hilaridade do público naquele momento solene, na circunstância constituído por nacionais e estrangeiros.
Como se depreende este não é um exemplo único. Não temos como objectivo depreciar ou vituperar aqueles que, através de juramento solene, arriscam a sua vida pelo nosso bem-estar e soberania. O que muito estranhamos é a falta de obediência daqueles cães, também eles militares e adestrados para o efeito, cujo cumprimento da ordem de “quieto” não acontece ou tarda em acontecer, envergonhando e comprometendo de sobremaneira o desempenho e o brio das forças onde são inseridos, que devem operar a uma só voz, enquanto membros do mesmo corpo. Ao dizermos isto, não somos movidos por nenhum tipo de saudosismo, porque somos conhecedores dos abusos perpetrados sobre os cães militares do passado que, em idêntica situação, se viam obrigados a carregar uma incómoda, pesada e mal-amanhada capa, com as cores e insígnias daquela força, tanto de Inverno como de Verão. Bendito seja quem cortou com essa tradição!
E antes que se acuse o reforço positivo por tal despropósito e ausência de brio, que quando bem operado torna as respostas caninas mais céleres e duradouras, enquanto método que melhor serve à sua autonomia condicionada e que desenvolve como nenhum a cumplicidade entre homens e cães, importa descortinar as causas do despreparo, que apontam para a ausência de treino específico ou para uma pedagogia de treino imprópria ou insuficiente, possivelmente também para a escolha de binómios ou cães errados, porque doutro modo o desacerto não aconteceria, já que o treino aturado garante o bom desempenho e vence a surpresa, dotando os binómios da comodidade inerente à função, porque sabem ao que vão e aquilo que os espera. É importante não esquecer que estes cães fazem parte de uma Unidade dedicada à segurança e ao protocolo do Estado, e que em função disso, tais veleidades só podem ser consideradas estranhas, indesejáveis e reprováveis. Será coisa do outro mundo conservar os cães quietos enquanto o Hino Nacional é tocado? A história diz que não e as gravações que temos em mão, que se reportam à década de 80, afirmam dessa possibilidade.
A Portuguesa, da autoria de Alfredo Keil e Henrique Lopes Mendonça, que é tocada nas paradas militares e nos actos oficiais, tem uma duração de sensivelmente um minuto (com a introdução incluída), já que não se opta por cantar a totalidade dos seus versos (para nós tão importantes quanto aqueles que convencionámos guardar). Sabendo-se que a música até tem um efeito relaxante nos cães, pergunta-se: será assim tão difícil permanecerem quietos enquanto se houve o Hino da Pátria? Quanto tempo deverá um cão permanecer quieto debaixo de ordem? Teoricamente, até que o dono o chame; na prática, de acordo com a sua preparação. Não será o treino por definição também rigor? E se uma cerimónia tem uma hora de duração, custará assim tanto treinar gradualmente os cães para isso? Em qualquer esquina e até à porta dos canis conseguimos alcançar esse objectivo, particularmente quando temos no mínimo 20 dias para o fazer! E se o problema é a música, ou levam-se os cães para o meio duma orquestra ou traz-se-lha até eles mediante gravação! É também possível que o incómodo dos animais tenha a ver com a novidade do ecossistema, que estejam mais adaptados às sombras dos cedros e pinheiros do que familiarizados com a urbe e a sua azáfama.
Não deverá haver um são equilíbrio entre o “não se rir para os cães” do passado e o constante abanar da sua cauda, que hoje se procura? Quando em parada, onde deverá estar a fixação dos cães: na pessoa dos seus tratadores ou nos objectos dos seus intentos? Certamente ainda deverão restar algumas diferenças entre um cão militar e um de uso civil! Graciosamente o respeito pela autoridade ainda impera e a consideração pela farda não desapareceu, porque se assim não fosse, seria um pandemónio, se eventualmente alguém se lembrasse de lançar-lhes uma bola, soltasse outros cães, lhes jogasse comida, um churro na sua direcção ou desatasse a correr na sua frente. Duma coisa estamos certos: a ansiedade nos cães obsta à sua capacidade de aprendizagem, pela dependência que leva à redução da sua autonomia funcional. O reforço positivo é um instrumento de trabalho, uma meta que serve e bem um objectivo: o ensino dos cães, que deverá ser gradualmente abandonado quando tornado desnecessário e importar dotá-los dum carácter impoluto e incorruptível. Como é óbvio, não nos estamos a referir aos cães destinados à detecção de substâncias químicas ou ao salvamento, mas aos destinados à segurança, para que não substituam os alvos pelos potenciadores de mordedura, acabem manietados ou envenenados e não reajam por modo próprio a qualquer tipo de provocação, mordendo em camaradas de armas ou nas entidades que pretensamente deveriam guardar.
É evidente que tudo isto irá passar pela escolha acertada dos seus tratadores. Na semana passada falámos no texto “ PARA QUE A MEMÓRIA NÃO SE EXTINGA: A SECÇÃO DE CÃES DA CCAÇ 763”, dos critérios que então presidiram à escolha dos seus tratadores. Vamos relembrá-los: exigiam-se militares que gostassem de cães, que fossem pacientes, perseverantes, inteligentes, expeditos, desembaraçados e imaginativos, com boa resistência física e capazes de se coordenarem física e mentalmente, ao que nós acrescentaríamos o espírito de sacrifício, a valentia e o destemor para a função, porque sabemos que os cães valentes testam os seus tratadores e é-nos difícil imaginar um tratador que, por causa do cão lhe rosnar (o que é uma ameaça), o despreze e deixe a enraizar no canil. E se realçamos o papel dos tratadores, visando o prémio do seu empenho, somos obrigados a falar dos critérios relativos à selecção dos cães, que ontem como hoje, carecem de gente verdadeiramente capacitada para esse efeito, indigitada pelo saber e não por nomeação, capaz de neles identificar os impulsos herdados inerentes ao equilíbrio prà função.
Falta travamento aos actuais cães militares e policiais? Pensamos que sobre isso ninguém tem dúvida, assim como ninguém duvida que estão a morder mais, novidade também alicerçada no maior recrutamento de Malinois, que carregam desalmadamente e que sofrem demasiado com as regras indutoras à disciplina, o que nalguns casos coloca os seus tratadores num beco sem saída, porque se apertam ficam sem cão e se não apertam são apertados! E quem duvidar disto, basta ver a cessação dos seus ataques nos vídeos das diferentes polícias internacionais, onde não raramente, no meio da excitação das capturas, não tendo mais ninguém a quem morder, acabam por carregar nos seus próprios tratadores. A actual crise económica, que é global, também se encontra ligada à menor qualidade dos cães, já que pelo preço de um bom Pastor Alemão podem comprar-se 4 Malinois, senão mais, porque se vierem do Leste Europeu, o lote poderá ainda ser recheado com mais um ou dois (o que continua a acontecer).
Em abono à verdade, não podemos analisar isoladamente a prestação dos cães, porque ela apenas reflecte um conjunto de causas que a compromete, intrinsecamente ligadas à história e desenvolvimento do País, que continuam a obstar à instituição duma verdadeira escola cinotécnica em Portugal, independentemente dela vir a ser de cariz militar ou civil. Quando estalou a Primeira Guerra Mundial, ocasião que despoletou o grande “boom” da cinotecnia militar, onde os cães foram usados para diferentes fins, 80% do Corpo Expedicionário Português mandado para França era analfabeto, o que nalguns casos obrigava os oficiais a escreverem as cartas para as famílias dos soldados, testemunho presente no filme “João Ratão” e que serviu de base ao seu enredo, da autoria de Jorge Brum do Canto e estreado em 1940 (vale a pena revê-lo!). Compreensivelmente, só no final dos anos 50, quarenta anos depois do uso inicial  dos cães militares, é que nos chegaram os primeiros cães para esse fim, facto revelador do nosso atraso relativo à cinotecnia militar europeia e internacional, demorando ainda mais algumas décadas para termos a primeira e única escola de cães-guias de cegos em Portugal.
O avanço além-fronteiras da cinotecnia ficou a dever-se ao evolucionismo e ao eugenismo, que serviram de base à canicultura, ao incremento cinológico e ao estudo do comportamento animal, caminho primeiro encetado pelos entomologistas e depois continuado pelos etólogos, a todo um conjunto de ciências desprezadas e abominadas pela ignorância e pelo chauvinismo beato que aqui grassavam e que teimam em se ir embora. Nos primórdios do Séc. XX e em particular nas décadas de 20 e 30, já abundavam na Inglaterra, na Áustria e na Alemanha investigadores e peritos em comportamento animal, remontando a essa época o desenvolvimento embrionário da cinotecnia e o surgimento das primeiras escolas de cães-guias. Nesta matéria (há quem diga que também noutras), atrasámo-nos 40 anos e quem o quiser comprovar, basta comparar quando foram elaborados os primeiros estalões das raças caninas alemãs, belgas e portuguesas, o que também explica o carácter primitivo e de menor préstimo das nossas raças, cuja selecção se remeteu ao viver pouco evoluído e às parcas expectativas das nossa gentes de então.
Ainda que desenvolvam o que recebem para os seus próprios fins, levando por vezes à descoberta de outros, os cinotécnicos militares sempre se aproveitam da canicultura e da cinologia adjacentes, o que no nosso caso e desde há muito, tem obrigado à importação de cães, uma vez que é reconhecido o menor préstimo das raças autóctones e ao envio de quadros para países onde a cinotecnia está mais evoluída ou em constante progresso, numa sequência de estrutura-ruptura segundo as preocupações do momento, modo desenrascado que continua a obstar à formação de uma verdadeira escola cinotécnica militar portuguesa, que desconsiderando o que tem, ciclicamente tenta pegar por estaca, muito embora nisso sejam os militares os menos culpados, porque não tendo onde buscar formação, não lhes sobra outro remédio. É provável que venhamos a precisar doutro Conde de Lippe, desta vez para ao cães, porque jamais se levantará uma escola com meia dúzia de manuais ou fichas e com a experiência granjeada na estranja em apenas dois, três ou seis meses.
Torna-se evidente que o problema é de natureza cultural, o que nos remete para o ensino nas universidades, que atendendo também à preferência dos portugueses por cães e ao seu número, há muito que deveriam fornecer cursos de etologia válidos, rigorosamente científicos, devidamente reconhecidos e não do tipo “cash-knowledge”, normalmente ministrados por oportunistas que recebendo umas lufadas sobre comportamento animal e vindos da veterinária ou da zootecnia, respondem indevidamente pelas cátedras, sendo nisso assessorados por práticos de cariz desportivo, rudimentarmente habilitados, mais apaixonados do que objectivos e confinados a um só método. Não estará na hora de estabelecer uma parceria com as faculdades estrangeiras que ministram este tipo de ensino?
Bem vistas as coisas, o pobre do tratador que dá a cara é o menos culpado, porque carrega às costas o fardo do País, uma saca de retalhos cozida pela ignorância, um conjunto de procedimentos que não entende e outros tantos que lhe omitiram. E se a situação não se alterar, mais vale que saia da formatura com o cão, opção do seu agrado pelo aumento dos momentos lúdicos que reforçam a cumplicidade mútua, porque se não forem vistos também não atentarão contra a “ordem unida”.
Provavelmente ninguém lhe disse que a obediência solicitada a um cão tem uma condição exclusiva: o seu cumprimento pronto e imediato, e que a prontidão dos ataques caninos deve ser igual à sua cessação, que um cão não tem mais ou menos obediência, ou tem ou não tem, pressupostos e conteúdos de ensino que outrora foram respeitados e alcançados por outros que rendeu sem os conhecer. O corte com passado tem como reflexos a confusão no presente e a incerteza no futuro, pela ausência de lições e repetição dos mesmos erros. Sem que este tratador saiba, provavelmente os seus instrutores também não, algures numa recôndita e esquecida arrecadação dum Comando-Geral ou duma Companhia, entre tantos livros esquecidos, empoeirados e amarelados pelo tempo, repousam velhos manuais com a solução para o problema, obras de gente que hoje assiste desolada à sua fraca prestação. Realmente, quem não lê é como quem não vê!

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