Hoje vamos falar dum assunto recorrente, dos cães que mordem a cauda sem
razão aparentemente, que normalmente acabam encharcados em antidepressivos, ansiolíticos
e outras drogas, de difícil desmame e de múltiplos efeitos secundários, por
norma inibidores do seu melhor desempenho, capazes de surtir efeito contrário e
por vezes responsáveis pelo aparecimento de novas taras, que podem não evitar e
na maioria dos casos não evitam a amputação da sua cauda. Dedicámos muitos anos
à observação e estudo do problema, que nunca nos bateu à porta mas que sempre
conviveu connosco paredes-meias. Devido a essa relação de proximidade e ao facto
de ensinarmos cães, depois de termos observado o maior número deles com esse
desvio comportamental, ao encontrarmos as causas, descobrimos também as
soluções. Em função do que constatámos e sem medo de fugir à verdade, as razões
que concorrem para este desequilíbrio individual são três, sendo elas
genéticas, ambientais e higio-sanitárias, podendo isoladamente cada uma delas
bastar para a eclosão do problema, apesar de não ser raro assistirmos à sua
combinação, o que mais reforça a frustração e revolta caninas.
Vamos começar pela última, a dependente das condições higio-sanitárias,
que conforme se antevê é a de mais fácil solução, já que se encontra ligada ao
desprezo pela higiene e à dispensa dos cuidados médico-veterinários, práticas
que uma vez contrariadas solucionarão o problema, ainda que nalguns casos, por
força do mau hábito adquirido, haja cães que teimem em largá-lo, pelo que mais
vale trabalhar na prevenção do que correr atrás do prejuízo. Sem grande
dificuldade conseguimos estabelecer uma relação causa-efeito entre a falta de
higiene e a ocorrência do problema, particularmente nos casos de cães alojados
em canis, acompanhados horas a fio pelos dejectos e com pisos de pouco ou
nenhum escoamento, situação que para além de poder induzir ao consumo dos “cocós”,
ao emporcalhar os animais e ao atrair sobre eles os insectos, acaba por condicioná-los
ao frenesim mercê do incómodo. Não será por mero acaso que este comportamento
anómalo se encontra maioritariamente associado a cães assim alojados. Apesar de
não ser muito comum, o problema pode estar também associado a razões clínicas,
a doenças internas ou externas e à presença de parasitas que para elas
concorrem. Acontecendo a desparasitação e a cura breve cessará o problema, isto
se a higiene prevalecer. Sempre será mais fácil tratar o problema isoladamente
e drogar o cão, do que chamar porco ao dono, até porque o primeiro não se
queixa e o segundo, o que paga as contas, não gosta de ser ofendido, poderá ser
hábil no ripostar e nunca mais dar notícia, o que a ninguém servirá.
E como começámos pela ordem inversa, assim vamos continuar, adiantando
as razões ambientais que fomentam e contribuem para o desequilíbrio, interligadas,
como não podia deixar de ser, a questões de ordem social. As causas ambientais que
observámos nos indivíduos portadores do problema
foram: má fabricação e orientação dos canis, excesso de confinamento,
isolamento forçado, supressão da légua diária e interacção deficitária. Pouco a
pouco começamos a perceber, por que razão o texto “O CANIL”, editado em 29/12/2009, é o mais lido deste blogue, com 8.529
leitores, o que a princípio muito estranhámos. Como pode a má fabricação e
orientação dos canis forçar este tipo de comportamento auto mutilador? Basicamente
pela sua exiguidade, mau fabrico, ausência de antecâmara, má orientação, falta
de resguardo e excesso de exposição, para além da falta de higiene que já referimos,
condições que aumentam de sobremaneira as frustrações dos seus hóspedes (uma
cadela prenhe nestas circunstâncias, podendo escapar-se do canil, preferiria
ter a ninhada numa manilha de esgoto ou escondida num matagal). O canil de um
cão é em simultâneo o seu refúgio e fortaleza, devendo oferecer-lhe a segurança
e o bem-estar necessários para que nele se sinta bem, dando-lhe irrefutáveis
condições de abrigo e protecção, capazes de o proteger das intempéries, das
oscilações à sua volta, das agressões sonoras e das abordagens de surpresa,
factores que, quando ignorados, aumentam a sua vulnerabilidade e promovem a sua
instabilidade, levando-o à irritabilidade e à revolta.
Para além do peso dos aspectos climáticos e geográficos ligados à
construção do canil, que não devem ser desprezados, diante da saúde, bem-estar
e longevidade dos cães, há que considerar a sua localização, que deverá ser
suficientemente distante das estradas e do corrupio das pessoas, movimentações
que tendem a captar a sua atenção e a despoletar os seus mecanismos de
agressividade, levando alguns, à falta de melhor e por ausência de alvos, a
morder em si próprios, em particular na ausência dos donos. Também o excesso de
clausura ou confinamento, no desfasamento temporal entre a prisão a liberdade,
contribui para a ocorrência do problema. Canis isolados, por demais distantes
dos donos e seus afazeres, que condenam os cães ao isolamento e ao degredo,
podem suscitar-lhes igual desvio e desequilíbrio. Mas é na supressão dos
passeios diários e na deficitária interacção, que residem, quando for caso
disso, as principais causas indutoras à auto mutilação, quer os cães estejam
instalados em casa ou no canil, porque são seres sociais muito curiosos, foram
seleccionados para a parceria, são excursionistas e aprendem pela experiência,
o que equivale a dizer que, quando assim procedemos, estamos a atentar contra a
sua natureza gregária e contra o seu desenvolvimento cognitivo, revezes que os
relegam para os instintos, para o descalabro e para um sem número de
disparates, dos quais poderá constar a auto mutilação, culminar que menos poupa
os mais activos. A inexistência, irregularidade, alteração e o encurtamento forçado
dos passeios diários, são também responsáveis pela caça à cauda empreendida por
certos cães.
Durante largos anos tivemos oportunidade de observar várias companhias
cinotécnicas militares e centros de treino caninos (aqui e além fronteiras),
mantivemos 45 cães diariamente, ensinámos mais de 300 anualmente e de 40 raças diferentes,
não sendo visível em nenhum dos casos a ocorrência do fenómeno, exceptuando um
cão militar que corria atrás da cauda mas que não a mordia, quando avistava o
seu tratador (igual no destrambelhamento), dominado pela alegria do reencontro,
o que nos permite afirmar que a auto mutilação canina é, na maioria dos casos,
reflexo da ausência de condições, do despreparo e falta de cuidado dos seu
proprietários, englobando-se neste último caso a ignorância que não serve a uns
e a outros. E dizemos na sua maioria e não em absoluto, porque subsistem razões
genéticas para a eclosão do problema, advindas das distintas selecções por
detrás dos indivíduos, umas por desconhecimento e outras por colateralidade,
por força da “excelência” procurada. Diante dos seis grupos somáticos caninos comummente
aceites, este tipo de auto mutilação, que é mais comum nos machos mas que se
estende também às fêmeas, é mais frequente entre os lupinos e vulpinos,
seguidos pelos molossos de pelo curto, geralmente destinados à guarda. Os
bracos vocacionados pró ofício cinegético incorrem ocasionalmente no desvio,
por serem descuidados e brutos, ferindo-se nas suas boxes e aproveitando a
deixa e, se o vício pega, será o cabo dos trabalhos, o que obrigará a troca de alojamento logo que
possível.
A procura da transmissão
isolada de um ou dois impulsos herdados em particular, a despeito dos restantes
principais que equilibram os cães, tem contribuído eficazmente para a ocorrência
deste comportamento e doutros semelhantes, já que a auto mutilação canina não
se restringe exclusivamente à cauda ou a mutilações desse tipo, indo para além
delas e induzindo a comportamentos marginais e até suicidas, mercê dos
desequilíbrios provocados pela super potenciação dos impulsos à defesa, à luta
e ao poder, por um lado e por igual despropósito em torno dos impulsos ao alimento
e ao movimento. Assim, dependendo dos casos, existirá ou não uma predisposição
genética, não raramente agravada por razões ambientais e higio-sanitárias,
razões válidas só por si para o despoletar deste comportamento anómalo, que
sempre estará ligado a questões ou carências sociais. Se você tem o seu cão bem
instalado (se não tiver, vale a pena ler os nossos textos “O CANIL”,
e “A CASOTA DO CÃO”,
editados em 29/12/2009), se prima pela higiene e o mantém asseado (os cães
devem ser escovados todos os dias), se o alimenta convenientemente e lhe
garante os serviços médico-veterinários, se tem tempo para o passear (pelo
menos 5km diários), se mantém as suas rotinas diárias, se consegue equilibrar os
tempos de encarceramento com os de convivência e os momentos de trabalho com os
lúdicos e de supercompensação, dificilmente o seu cão roerá a cauda! Mas se não
tem uma ou mais destas condições, pergunta-se: para que quis você um cão? Não
seria mais sensato ter ficado quieto? Quando um cão desprezado chega ao ponto de se auto mutilar, fruto do descuido do seu dono, o pobre do veterinário, que não tem como debelar a doença, ficar-se-á pelo combate aos seus sintomas.
PS: Como temos mais informações para a resolução do problema,
colocamo-nos de imediato à disposição de quem as desejar.
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