Ao abraçarmos este tema, porque o humor resulta melhor do que a
animosidade, vêm-nos à memória uma piada que recebemos há uns tempos atrás,
relativa às diferentes posturas pedagógicas entre alunos, pais e professores no
passado recente e na actualidade, ambas indubitavelmente extremadas. Segundo
ela, no passado recente, os alunos eram apertados pelos professores e pelos
pais; agora, pais e alunos carregam desmesuradamente sobre os professores. Bem
sabemos que o aproveitamento escolar duma classe depende maioritariamente da
qualidade dos professores, mas estes pouco ou nada podem fazer se os seus
alunos não quiserem aprender e nisso obtiverem a conivência dos pais. Também no
adestramento se assistiu à transição extremada de métodos, porque no passado
recente o desacerto era invariavelmente atribuído aos cães e hoje é-o aos seus
condutores, novidade que ocasionalmente coloca em dúvida quem ensina quem. Num
ápice, os condutores passaram de deuses a crentes (believers) e de mestres a
aprendizes, trocando agora a exigência pela súplica e o reparo pela
condescendência, como se a reprovação dos maus hábitos caninos fosse inteiramente
dispensável e os cães fossem, na sua esmagadora maioria, criaturas angelicais.
À luz dos estudos recentes da Dr.ª Susan Hazel, cientista veterinária da
Universidade de Adelaide/Austrália, os cães não exibem a sua culpa porque são
incapazes de se sentirem culpados, somente adquirem uma mímica de
apaziguamento, quando surpreendidos em flagrante, para se libertarem da reprovação
dos seus donos ou mestres, mercê da ansiedade causada pelos reparos, manobra
elaborada que visa sua chantagem emocional. A ausência de um verdadeiro
sentimento de culpa canino obrigará os seus mestres a promover-lhes um afincado
condicionamento, visando a sua salvaguarda, a das pessoas, dos seus pertences e
a relativa aos outros animais, o que releva a importância das experiências
negativas no adestramento, a partir das memórias mecânica e afectiva, enquanto
indutoras à associativa, experiências que ciclicamente deverão ser repetidas e
reavivadas, por serem artificias e por isso mesmo alheias aos cães. Nesta
perspectiva, nenhum cão fica ensinado para sempre e os comandos ligados à sua
sobrevivência necessitarão de ser reavivados amiúde. E quem a isto fizer
“orelhas moucas” arrisca-se a ficar sem cão, conforme vamos tendo notícia
(infelizmente).
Entendemos como
“experiências negativas” as lições fornecidas pela experiência que apontam para
a salvaguarda dos cães, desenvolvidas pelos seus donos em substituição das
adiantadas pela matilha, que visam alertar os animais para a presença de
inimigos e para a existência de vários perigos, nisto incluindo a recusa de
engodos e toda a sorte de procedimentos capazes de colocarem de sobreaviso os
nossos companheiros de quatro patas. Durante muitos anos, porque trabalhávamos
a soldo de outrem, em regime de prestação de serviços, sempre nos deparámos com
um dilema: quando ensinar a recusa de engodos a um cão, sabendo que tal ensino
operaria o enfraquecimento de alguns para a tarefa pretendida (guarda). A bem
da conveniência e dentro de uma política consensual, também porque outros
faziam o mesmo, optámos por fazê-lo depois do alcance da maturidade emocional
dos cães, vulnerabilizando-os até esse estágio do seu desenvolvimento.
Se o fizéssemos mais cedo,
a maioria dos cães submissos jamais seria aprovada na disciplina de guarda, o
que desagradaria a muitos dos nossos clientes, mais interessados no serviço dos
cães do que na sua salvaguarda. Hoje, libertos desses encargos, podemos afirmar
que tal deverá ser feito logo a partir dos 4 meses de idade, altura em que os
cachorros partem para a excursão, estão na idade da cópia e começam a
compreender a hierarquia. Escusado será dizer que um bom cão de guarda deverá
nascer dentro do grupo dos dominantes e não alicerçado somente em investiduras,
já que mais depressa se encontrarão cinquenta cobardes que um só valente, o que
muito agrada a quem não quer perder os fundilhos das calças. E se o genuíno cão
de guarda carece de ser ensinado na recusa de engodos bem cedo, a mesma
necessidade terão os cães destinados a outros serviços, enquanto a vida for o
maior dos seus bens. Sim, a inibição é necessária à sobrevivência dos cães,
porque só ela poderá suspender processos fisiológicos ou psicológicos
accionados pelos instintos e passíveis de condená-los. O treino canino não tem
como objecto o controlo dos instintos e a potenciação dos impulsos herdados?
E como os cães não têm um
genuíno sentimento de culpa que os leve ao reconhecimento dos seus erros ou à
aquisição de lições para toda a vida, vivendo para o presente segundo a
experiência que carregam, sendo que os mais instintivos tendem a durar menos,
tanto por inadaptação quando por inclinação natural, importa que todos sejam
alertados e preparados para os perigos que os cercam, levando-os à suspeita, ao
desprezo e abandono das respostas naturais que os põem em risco, geralmente
provenientes duma exagerada carga instintiva ou resultantes da super
potenciação (acidental ou proposital) de um impulso herdado em relação aos
demais. Nestes casos, visando a efectivação dos comandos inibitórios e em abono
da salvaguarda dos animais poder-se-á, eventualmente, lançar mão de meios,
subsídios e acessórios persuasivos e nalguns casos até coercivos, visando a
supremacia desses comandos para além da presença dos donos (não há dois cães
iguais).
Poderá um cão ser ensinado
sem recurso a comandos inibitórios, sem nunca ter ouvido sequer um simples “não”?
Pode, desde que o seu perfil psicológico o permita, a natureza do seu serviço
não exija grandes reparos, não se veja obrigado a cessações e travamentos
constantes, desempenhe as suas funções num ambiente protegido ou específico,
onde a ocorrência de perigos é nula ou quase nula. Como existem cães que devido
à sua extraordinária inibição não aguentam um “não”, estes deverão ser
dispensados da instalação de todo e qualquer comando inibitório por ser-lhes indesejável,
contraproducente, abusivo e lesivo. O ensino ou instalação de comandos
inibitórios, mais comum entre os cães de guerra e de guarda, visa a sua
salvaguarda e a de terceiros, o seu uso pronto e maior acerto, assim como a
economia do seu esforço, sendo por isso uma medida preventiva de rara
importância, particularmente para aqueles cães que trabalham horas infindas
longe da presença e protecção dos seus donos. Como o nível de ensino de um cão
poderá também ser avaliado pela quantidade de “nãos” que necessita para
executar determinada tarefa, facilmente se compreende que o recurso sistemático
à inibição ou espelha um cão imaturo e por isso mesmo despreparado ou evidencia
um dono impróprio e inseguro (em qualquer dos casos o binómio ainda não está
constituído). À parte disto, o recurso à inibição facilita o acerto canino para
além das suas respostas naturais.
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