quarta-feira, 2 de setembro de 2015

REPROVAR PARA LEVAR AO ACERTO

Ao abraçarmos este tema, porque o humor resulta melhor do que a animosidade, vêm-nos à memória uma piada que recebemos há uns tempos atrás, relativa às diferentes posturas pedagógicas entre alunos, pais e professores no passado recente e na actualidade, ambas indubitavelmente extremadas. Segundo ela, no passado recente, os alunos eram apertados pelos professores e pelos pais; agora, pais e alunos carregam desmesuradamente sobre os professores. Bem sabemos que o aproveitamento escolar duma classe depende maioritariamente da qualidade dos professores, mas estes pouco ou nada podem fazer se os seus alunos não quiserem aprender e nisso obtiverem a conivência dos pais. Também no adestramento se assistiu à transição extremada de métodos, porque no passado recente o desacerto era invariavelmente atribuído aos cães e hoje é-o aos seus condutores, novidade que ocasionalmente coloca em dúvida quem ensina quem. Num ápice, os condutores passaram de deuses a crentes (believers) e de mestres a aprendizes, trocando agora a exigência pela súplica e o reparo pela condescendência, como se a reprovação dos maus hábitos caninos fosse inteiramente dispensável e os cães fossem, na sua esmagadora maioria, criaturas angelicais.
À luz dos estudos recentes da Dr.ª Susan Hazel, cientista veterinária da Universidade de Adelaide/Austrália, os cães não exibem a sua culpa porque são incapazes de se sentirem culpados, somente adquirem uma mímica de apaziguamento, quando surpreendidos em flagrante, para se libertarem da reprovação dos seus donos ou mestres, mercê da ansiedade causada pelos reparos, manobra elaborada que visa sua chantagem emocional. A ausência de um verdadeiro sentimento de culpa canino obrigará os seus mestres a promover-lhes um afincado condicionamento, visando a sua salvaguarda, a das pessoas, dos seus pertences e a relativa aos outros animais, o que releva a importância das experiências negativas no adestramento, a partir das memórias mecânica e afectiva, enquanto indutoras à associativa, experiências que ciclicamente deverão ser repetidas e reavivadas, por serem artificias e por isso mesmo alheias aos cães. Nesta perspectiva, nenhum cão fica ensinado para sempre e os comandos ligados à sua sobrevivência necessitarão de ser reavivados amiúde. E quem a isto fizer “orelhas moucas” arrisca-se a ficar sem cão, conforme vamos tendo notícia (infelizmente).
 Entendemos como “experiências negativas” as lições fornecidas pela experiência que apontam para a salvaguarda dos cães, desenvolvidas pelos seus donos em substituição das adiantadas pela matilha, que visam alertar os animais para a presença de inimigos e para a existência de vários perigos, nisto incluindo a recusa de engodos e toda a sorte de procedimentos capazes de colocarem de sobreaviso os nossos companheiros de quatro patas. Durante muitos anos, porque trabalhávamos a soldo de outrem, em regime de prestação de serviços, sempre nos deparámos com um dilema: quando ensinar a recusa de engodos a um cão, sabendo que tal ensino operaria o enfraquecimento de alguns para a tarefa pretendida (guarda). A bem da conveniência e dentro de uma política consensual, também porque outros faziam o mesmo, optámos por fazê-lo depois do alcance da maturidade emocional dos cães, vulnerabilizando-os até esse estágio do seu desenvolvimento.
Se o fizéssemos mais cedo, a maioria dos cães submissos jamais seria aprovada na disciplina de guarda, o que desagradaria a muitos dos nossos clientes, mais interessados no serviço dos cães do que na sua salvaguarda. Hoje, libertos desses encargos, podemos afirmar que tal deverá ser feito logo a partir dos 4 meses de idade, altura em que os cachorros partem para a excursão, estão na idade da cópia e começam a compreender a hierarquia. Escusado será dizer que um bom cão de guarda deverá nascer dentro do grupo dos dominantes e não alicerçado somente em investiduras, já que mais depressa se encontrarão cinquenta cobardes que um só valente, o que muito agrada a quem não quer perder os fundilhos das calças. E se o genuíno cão de guarda carece de ser ensinado na recusa de engodos bem cedo, a mesma necessidade terão os cães destinados a outros serviços, enquanto a vida for o maior dos seus bens. Sim, a inibição é necessária à sobrevivência dos cães, porque só ela poderá suspender processos fisiológicos ou psicológicos accionados pelos instintos e passíveis de condená-los. O treino canino não tem como objecto o controlo dos instintos e a potenciação dos impulsos herdados?
E como os cães não têm um genuíno sentimento de culpa que os leve ao reconhecimento dos seus erros ou à aquisição de lições para toda a vida, vivendo para o presente segundo a experiência que carregam, sendo que os mais instintivos tendem a durar menos, tanto por inadaptação quando por inclinação natural, importa que todos sejam alertados e preparados para os perigos que os cercam, levando-os à suspeita, ao desprezo e abandono das respostas naturais que os põem em risco, geralmente provenientes duma exagerada carga instintiva ou resultantes da super potenciação (acidental ou proposital) de um impulso herdado em relação aos demais. Nestes casos, visando a efectivação dos comandos inibitórios e em abono da salvaguarda dos animais poder-se-á, eventualmente, lançar mão de meios, subsídios e acessórios persuasivos e nalguns casos até coercivos, visando a supremacia desses comandos para além da presença dos donos (não há dois cães iguais).
Poderá um cão ser ensinado sem recurso a comandos inibitórios, sem nunca ter ouvido sequer um simples “não”? Pode, desde que o seu perfil psicológico o permita, a natureza do seu serviço não exija grandes reparos, não se veja obrigado a cessações e travamentos constantes, desempenhe as suas funções num ambiente protegido ou específico, onde a ocorrência de perigos é nula ou quase nula. Como existem cães que devido à sua extraordinária inibição não aguentam um “não”, estes deverão ser dispensados da instalação de todo e qualquer comando inibitório por ser-lhes indesejável, contraproducente, abusivo e lesivo. O ensino ou instalação de comandos inibitórios, mais comum entre os cães de guerra e de guarda, visa a sua salvaguarda e a de terceiros, o seu uso pronto e maior acerto, assim como a economia do seu esforço, sendo por isso uma medida preventiva de rara importância, particularmente para aqueles cães que trabalham horas infindas longe da presença e protecção dos seus donos. Como o nível de ensino de um cão poderá também ser avaliado pela quantidade de “nãos” que necessita para executar determinada tarefa, facilmente se compreende que o recurso sistemático à inibição ou espelha um cão imaturo e por isso mesmo despreparado ou evidencia um dono impróprio e inseguro (em qualquer dos casos o binómio ainda não está constituído). À parte disto, o recurso à inibição facilita o acerto canino para além das suas respostas naturais.

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