Os ditos concelhos saloios, situados nos arrabaldes de Lisboa: Cascais,
Loures, Mafra e Sintra, diferem etnograficamente dos restantes que constituem o
Distrito da Capital, graças à fixação de diferentes populações ocorridas durante
a Idade Média, anteriores ou decorrentes da Reconquista Cristã, o que não
significa que a miscigenação não esteja presente em cada um deles e nos
restantes. O Concelho de Mafra é exemplo disso, sendo maioritariamente uma
estância saloia, visível na toponímica, no físico, tradições e linguajar das
gentes, comporta outras origens e influências para além da moura, sendo ainda
perfeitamente identificáveis (entre outras) a romana, a galega e a judia,
populações que durante o domínio muçulmano mereceram a designação de moçárabes,
por pagarem impostos para garantirem a sua individualidade sociocultural e
religiosa. Das 11 freguesias que constituem o Concelho, as de Encarnação, Santo
Isidoro e parte da Ericeira são únicas, porque não sendo originalmente de etnia
norte-africana, vieram a assimilar as suas crenças num sincretismo que o catolicismo
não mexeu e aproveitou, como é o caso das loas presentes no Círio dos Saloios.
Nas freguesias que atrás mencionámos e que em tempos estiveram debaixo
da jurisdição de Torres Vedras, o povo tem a tez mais clara, maior envergadura,
não faltam olhos azuis e verdes, as mulheres sempre gozaram de maior liberdade,
tendencialmente troca-se o “v” pelo “b”, os santos são mais venerados e as
igrejas mais concorridas. Não obstante, subsiste por ali uma crença relativa a
uma misteriosa senhora que aparece e desaparece à luz do dia, quando alguém
evoluiu sozinho pela estrada ou pelos ermos, que não se escusa a dar conselhos
ou a fazer revelações. Quem alguma vez a encontrou não gosta de falar disso e
tende a guardar segredo com receio de vir a ser ridicularizado, só falando desse
encontro aos seus ou a um reduzido número de pessoas, mormente a quem foi
objecto da mesma “aparição”. Ao todo, ouvimos quatro relatos destes, de gente
com idades compreendidas entre 40 e 55 anos de idade, de média instrução, de
sexo e profissões diferentes, tendo em comum a sua crença em Deus e nos seus
milagres. Essas “aparições” aconteceram uma só vez na vida desses indivíduos e
a todos a “senhora” revelou o seu futuro, que segundo os vaticinados veio a
suceder “tintim por tintim”.
Incrédulo mas interessado
em tamanha revelação, talvez mais empenhado na sua desmistificação pelo objecto
da minha Fé (Cristo), bati durante anos a fio aquelas estradas e montes,
aproveitando essas jornadas para dar “pulmão” aos cães. Para mal dos meus
pecados ou para sua satisfação, apesar da minha insistência e empenho, só me
cruzei com condutores embriagados, amantes desesperados, ouriços caixeiros,
cobras e lagartos. Teria a excelsa senhora sido afastada pelos cães? Vá-se lá
saber, se calhar foi! Certo, certo, é que os mouros que por cá andaram eram
fatimidas, acreditavam que a filha de Maomé (Fátima), a “senhora da luz”,
aparecia ciclicamente aos seguidores do seu pai, valendo-lhes no infortúnio,
advertindo-os e guiando-os para um final recto e feliz, o que me faz entender
mais profundamente o sentido do poema de Manuel Freire: Livre (não há machado
que corte), ainda que produto de um ateu e iconoclasta, visto que a alma
intrínseca dos povos conserva crenças ancestrais que a novidade dos ventos não apaga,
o que nos leva a supor haver também um ADN mitocondrial da crendice.
Pode ser que outros, mais sensíveis e dados a visões, bafejados pela
sorte ou destinados a tanto, venham a ser bem-sucedidos e possam a encontrar a
dita senhora. Pelo sim, pelo não, é melhor que não levem cães, animais considerados
impuros à luz do Islão (excepção feita ao Saluki), porque nestas coisas há que
casar a bota com a perdigota e a quebra do ritual leva ao enguiço. Nas terras
de saibro, greda e piçarro que se estendem do Cabo Carvoeiro ao Espichel e daí
para o resto do País, a cultura popular é fértil em inúmeras lendas e inesperadas
aparições, remanescente dum sincretismo muito antigo, fundamentado na Idade das
Trevas e transportado até aos dias de hoje, rico em ver bruxas na eira, diabos
nas encruzilhadas, santas nos caminhos, mouras em castelos e lobisomens
espreitando em noites de lua cheia, onde anjos e demónios vêem confundidas as
suas atribuições. E nisto são os cães superiores aos homens, porque não vêem e
não temem as almas do outro mundo!
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