Quando nos debruçamos
sobre o adestramento e ao olharmos para os métodos da maioria dos adestradores
actuais, vem-nos à memória o que passa em certas latitudes, onde muita gente
ignora que o peixe tem espinhas e que o frango tem cabeça, porque todos querem
ver a sua vida facilitada e procuram o prato pronto, os treinadores caninos
valer-se-ão de bolas para o seu o seu ofício e todos comerão as carcaças dos
frangos nas salsichas, ainda que não o saibam. Apesar do adestramento não
dispensar a carga emotiva que serve de estímulo às acções caninas e a
cumplicidade que visa o melhor aproveitamento dos cães, ele é sustentado pelo
exercício da lógica que presidirá à escolha dos métodos, considerando os prós e
os contras presentes em cada um deles, clarividência pouco visível naqueles que
hoje abraçam este nobre ofício, que seguem o convencional sem aquilatarem dos
seus riscos e menos valias. Quase que poderíamos jurar (não o fazemos para não
incorrermos em juízos temerários), que muitos alienados fazem do adestramento
terapia e que quanto maior for o seu grau de insanidade melhor serão
respeitados, como se os loucos estivessem mais perto da verdade oculta e a
genialidade resultasse da loucura, princípios dogmáticos que vimos respeitados
nas nossas andanças pelo Magrebe.
Poderei ensinar um cão valendo-me
apenas de uma bola? Sim e com muita facilidade, se o cão a ensinar for cúmplice
e alegre, conservar algum instinto de caça e tiver excelentes impulsos ao
movimento e à luta. Com o auxílio da bola conseguirei ensinar-lhe todo o
currículo de obediência, tanto os comandos estáticos como os dinâmicos,
alcançando os mesmos resultados com um saco de biscoitos, um disco, um
brinquedo e até com um simples cavaco. Ainda que o recurso aos brinquedos
simplifique e facilite de sobremaneira o ensino canino, ao ponto de dispensar
os condutores de maiores requisitos técnicos e de valer aos cães com menor
impulso ao conhecimento, pondo-os assim em igualdade com outros que de outro
modo jamais seriam capazes de acompanhar, o seu desmame não é fácil e nem
sempre é absoluto, por que causa dependência e possibilita o uso dos cães por
terceiros quando munidos dos brinquedos, o que poderá vir a comprometer alguns
serviços historicamente destinados aos cães. É evidente que o reforço positivo,
diante da sua abrangência e prática, está muito para além disto. O recurso aos
brinquedos, estratégia inescusável no ensino dalguns cães, lembra o que fazemos
em aritmética na teoria dos números, quando pretendemos encontrar o máximo
divisor comum (mdc) entre dois ou mais números inteiros, porque nivela o ensino
canino por baixo, baseando-o quase em exclusivo nas respostas naturais dos
animais, valendo a muitos e subaproveitando os melhores, cuja riqueza de
personalidade suplanta os instintos, despreza a dependência e não é dada a
subornos. Sim, também na pedagogia canina se trabalha para as estatísticas e
trabalhar-se-á enquanto forem os donos a pagar as mensalidades.
Longe vão os dias em que
as famílias podiam deslocar-se aos parques públicos sem sobressaltos, comer por
ali e depois optarem por uma “peladinha” com os filhos, porque hoje, vindo
donde menos se espera, sempre aparece um esfaimado cão (e há-os de todos os
tamanhos) que reclama a bola para si e desaparece com ela na boca, apesar da
lei obrigar todos a circularem atrelados. No meio da confusão gerada, para além
dos vitupérios e das ameaças usuais, a Polícia acabará por ser chamada, porque
a bola foi furada, uma criança foi projectada no chão, mordida ou ficou
traumatizada. Os donos dos cães acabarão por sair dali à pressa, antes que a
Polícia chegue para tomar conta da ocorrência e sem terem aprendido a lição.
Uma criança com uma bola
na mão transforma-se num alvo e uma bola a saltitar numa tentação. E se por
acaso houver um cão a correr atrás duma bola, breve terá a concorrência doutro,
irá ter que lutar para ficar com ela e poderá vir a ser escorraçado. Então, não
deveremos usar a bola no ensino dos cães? Há casos em que ela é perfeitamente
dispensável e outros em que se torna imprescindível, opções ligadas ao
particular biológico dos indivíduos, à sua vocação e serviço. De qualquer modo,
numa fase ulterior do treino, cada cão só deverá procurar e interessar-se pelos
seus brinquedos, desprezando aqueles que não lhe pertencem, condicionamento
obrigatório para não vir a causar desacatos, acabar ludibriado ou eliminado, o
que equivale a dizer que, nalgum momento do treino, a bola deverá a ser
entendida como presságio de trabalho e não como um acessório lúdico, podendo e
devendo ser ainda usada como recompensa pelo trabalho prestado pelos cães.
Contudo, esta distinção não estará ao alcance de todos eles e a bola jamais
substituirá a liderança e o seu papel, particularmente na presença de cães
notoriamente agressivos ou carenciados de travamento, erro em que incorrem
usualmente os donos menos audazes perante cães valentes, que incapazes de se
fazerem ouvir, tentam subornar os animais, “educá-los sem eles darem por isso”,
evitando a todo o custo o confronto directo, atitude típica de larápios que
desnuda e envergonha qualquer dono. E caso venham a ser bem-sucedidos, ao
destruírem assim os cães, acabarão por entregá-los na mão dos bajuladores,
cujas intenções nem sempre são as melhores.
Assim como há quem tire
uma esquadria “às três pancadas”, a maioria dos donos colocará os cães para
correr e jamais operará o seu travamento pronto e imediato, correndo depois,
inevitavelmente, atrás do prejuízo, até porque, ao chegarem às escolas, só
pretendiam assenhorar-se duns quantos “truques”! A bola, como os demais
brinquedos, poderá ser e na maioria dos casos é, um excelente subsídio de
ensino para os cães, mas pouco contribui para a inevitável e urgente formação
dos seus condutores, primeiros e únicos responsáveis pelos actos dos seus cães
perante a sociedade e o seu socorro. Incomodados diante desta toada, sentimos
saudades do tempo em que podíamos jogar futebol sem ter um cão à perna, dos
bons e saudosos velhos tempos em que podíamos celebrar os golos sem nos
roubarem a bola.
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