segunda-feira, 20 de julho de 2015

SAUDADES DE JOGAR À BOLA SEM TER UM CÃO PERNA

Quando nos debruçamos sobre o adestramento e ao olharmos para os métodos da maioria dos adestradores actuais, vem-nos à memória o que passa em certas latitudes, onde muita gente ignora que o peixe tem espinhas e que o frango tem cabeça, porque todos querem ver a sua vida facilitada e procuram o prato pronto, os treinadores caninos valer-se-ão de bolas para o seu o seu ofício e todos comerão as carcaças dos frangos nas salsichas, ainda que não o saibam. Apesar do adestramento não dispensar a carga emotiva que serve de estímulo às acções caninas e a cumplicidade que visa o melhor aproveitamento dos cães, ele é sustentado pelo exercício da lógica que presidirá à escolha dos métodos, considerando os prós e os contras presentes em cada um deles, clarividência pouco visível naqueles que hoje abraçam este nobre ofício, que seguem o convencional sem aquilatarem dos seus riscos e menos valias. Quase que poderíamos jurar (não o fazemos para não incorrermos em juízos temerários), que muitos alienados fazem do adestramento terapia e que quanto maior for o seu grau de insanidade melhor serão respeitados, como se os loucos estivessem mais perto da verdade oculta e a genialidade resultasse da loucura, princípios dogmáticos que vimos respeitados nas nossas andanças pelo Magrebe.
Poderei ensinar um cão valendo-me apenas de uma bola? Sim e com muita facilidade, se o cão a ensinar for cúmplice e alegre, conservar algum instinto de caça e tiver excelentes impulsos ao movimento e à luta. Com o auxílio da bola conseguirei ensinar-lhe todo o currículo de obediência, tanto os comandos estáticos como os dinâmicos, alcançando os mesmos resultados com um saco de biscoitos, um disco, um brinquedo e até com um simples cavaco. Ainda que o recurso aos brinquedos simplifique e facilite de sobremaneira o ensino canino, ao ponto de dispensar os condutores de maiores requisitos técnicos e de valer aos cães com menor impulso ao conhecimento, pondo-os assim em igualdade com outros que de outro modo jamais seriam capazes de acompanhar, o seu desmame não é fácil e nem sempre é absoluto, por que causa dependência e possibilita o uso dos cães por terceiros quando munidos dos brinquedos, o que poderá vir a comprometer alguns serviços historicamente destinados aos cães. É evidente que o reforço positivo, diante da sua abrangência e prática, está muito para além disto. O recurso aos brinquedos, estratégia inescusável no ensino dalguns cães, lembra o que fazemos em aritmética na teoria dos números, quando pretendemos encontrar o máximo divisor comum (mdc) entre dois ou mais números inteiros, porque nivela o ensino canino por baixo, baseando-o quase em exclusivo nas respostas naturais dos animais, valendo a muitos e subaproveitando os melhores, cuja riqueza de personalidade suplanta os instintos, despreza a dependência e não é dada a subornos. Sim, também na pedagogia canina se trabalha para as estatísticas e trabalhar-se-á enquanto forem os donos a pagar as mensalidades.
 O hábito generalizado de se ensinarem cães com bolas, que vulgariza o adestramento e que o torna extensível ao mais rudimentar dos proprietários caninos, não lhe adiantando qualquer capacitação, tem vindo a ser responsável por um infindável número de incómodos e disparates, alguns deles fatais, tanto para pessoas como para os animais. Por toda a parte sobram ataques caninos sobre crianças de tenra idade pela disputa de bolas, o que nos leva a questionar sobre a justeza do método: será ele o mais indicado para quem é pai e tem filhos pequenos? Já sabemos que os cães têm vindo gradualmente a substituir as crianças nos lares, que os jovens casais optam por um cão para se libertarem dos possíveis encargos com um filho ou dois, não diferindo nisso dos solitários seniores que já se viram privados deles. Serão os cães do futuro que suportarão as pensões da população e os encargos do Estado amanhã?
Longe vão os dias em que as famílias podiam deslocar-se aos parques públicos sem sobressaltos, comer por ali e depois optarem por uma “peladinha” com os filhos, porque hoje, vindo donde menos se espera, sempre aparece um esfaimado cão (e há-os de todos os tamanhos) que reclama a bola para si e desaparece com ela na boca, apesar da lei obrigar todos a circularem atrelados. No meio da confusão gerada, para além dos vitupérios e das ameaças usuais, a Polícia acabará por ser chamada, porque a bola foi furada, uma criança foi projectada no chão, mordida ou ficou traumatizada. Os donos dos cães acabarão por sair dali à pressa, antes que a Polícia chegue para tomar conta da ocorrência e sem terem aprendido a lição.
Uma criança com uma bola na mão transforma-se num alvo e uma bola a saltitar numa tentação. E se por acaso houver um cão a correr atrás duma bola, breve terá a concorrência doutro, irá ter que lutar para ficar com ela e poderá vir a ser escorraçado. Então, não deveremos usar a bola no ensino dos cães? Há casos em que ela é perfeitamente dispensável e outros em que se torna imprescindível, opções ligadas ao particular biológico dos indivíduos, à sua vocação e serviço. De qualquer modo, numa fase ulterior do treino, cada cão só deverá procurar e interessar-se pelos seus brinquedos, desprezando aqueles que não lhe pertencem, condicionamento obrigatório para não vir a causar desacatos, acabar ludibriado ou eliminado, o que equivale a dizer que, nalgum momento do treino, a bola deverá a ser entendida como presságio de trabalho e não como um acessório lúdico, podendo e devendo ser ainda usada como recompensa pelo trabalho prestado pelos cães. Contudo, esta distinção não estará ao alcance de todos eles e a bola jamais substituirá a liderança e o seu papel, particularmente na presença de cães notoriamente agressivos ou carenciados de travamento, erro em que incorrem usualmente os donos menos audazes perante cães valentes, que incapazes de se fazerem ouvir, tentam subornar os animais, “educá-los sem eles darem por isso”, evitando a todo o custo o confronto directo, atitude típica de larápios que desnuda e envergonha qualquer dono. E caso venham a ser bem-sucedidos, ao destruírem assim os cães, acabarão por entregá-los na mão dos bajuladores, cujas intenções nem sempre são as melhores.
Assim como há quem tire uma esquadria “às três pancadas”, a maioria dos donos colocará os cães para correr e jamais operará o seu travamento pronto e imediato, correndo depois, inevitavelmente, atrás do prejuízo, até porque, ao chegarem às escolas, só pretendiam assenhorar-se duns quantos “truques”! A bola, como os demais brinquedos, poderá ser e na maioria dos casos é, um excelente subsídio de ensino para os cães, mas pouco contribui para a inevitável e urgente formação dos seus condutores, primeiros e únicos responsáveis pelos actos dos seus cães perante a sociedade e o seu socorro. Incomodados diante desta toada, sentimos saudades do tempo em que podíamos jogar futebol sem ter um cão à perna, dos bons e saudosos velhos tempos em que podíamos celebrar os golos sem nos roubarem a bola.

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