Um homem com o seu cão lado pode retornar à infância e aos sonhos
perdidos, dar azo à criança que habita dentro de cada um de nós e reconstruir
momentos aparentemente esquecidos, quando tudo era possível e o futuro não
incomodava, quando todos julgávamos ser imperadores, reis ou generais,
super-heróis como o mundo nunca viu.
Pode ainda encontrar um
escape para o seu quotidiano, ser igual a si próprio sem receios, desnudar-se
diante do seu cão e ousar partir com ele à aventura, redescobrindo a sua
verdadeira natureza por detrás da máscara que o sustenta e traz de pé. Sem
dificuldades poderá voltar a balbuciar, retornar às diabruras há muito
recriminadas e fazer o que lhe der na gana, escudando-se atrás do animal que a
tudo se presta. Infelizmente, e contradizendo o Padre Américo, fundador da
“Casa do Gaiato”, os meninos não são todos iguais, há uns melhor que outros e
alguns são notoriamente malvados, pardais enxofrados que mais tarde virão a ser
gaviões.
Quem se deslocar a Portugal e fizer um périplo pelas escolas caninas que
aqui temos, rapidamente se aperceberá que a disciplina cinotécnica de guarda é
a mais publicitada, o que poderá à primeira vista induzir alguns em erro ,
levando-os a considerar-nos ou País de ricos ou uma plebe de ladrões, quando na
verdade não somos uma coisa nem outra e nunca fomos tão pobres e tão espoliados
como agora, pouco mais tendo para guardar que as nossas próprias carcaças. E
dissemos “à primeira vista” porque a riqueza, a estabilidade e o progresso de
um país podem também ser medidos pelo ensino preferencial dado aos seus cães,
uma vez que os guardiões aumentam com a miséria e diminuem com a prosperidade.
Esse mau hábito que temos de ser polícias uns dos outros, tantas vezes movido
pela inveja, sempre tem contribuído para que outros nos roubem sem apelo nem
agravo. Melhor seria que tivéssemos mais cães de resgate e salvamento, que
fossemos fecundos em cães guias, de terapia e de serviço, mais-valias que
espelhariam a unidade que tanto nos falta e que possibilitaria o nosso mútuo socorro.
A panca pela traulitada, porque é disso que se trata, toleima sustentada
maioritariamente por jovens e por gente descontente de todas as idades (consigo
mesma, com outros ou desencantada com a sociedade), acaba por ser uma
actividade terapêutica para os donos, que sentindo-se impotentes e injustiçados,
por breves momentos (no decorrer de cada ataque dos seus cães), aliviam a sua
revolta, libertam-se do descontentamento e descarregam agressividade, o que os
faz sentir melhor e livres da canga que os subjuga ordinariamente,
aumentando-lhes a auto-estima e dando-lhes uma sensação de poder, apesar de
fugaz. É bem possível que estas razões, só por si ou associadas a outras
patologias, sirvam de base ao se convencionou chamar de “guarda desportiva” nas
suas múltiplas variantes. Nos anos que levamos a ensinar cães para guarda,
apenas 6% dos donos tinha necessidade objectiva deles, por serem alvo de
cobiça, não se poderem valer doutras armas, viverem isolados, terem pouca
robustez física, serem deficientes ou se encontrarem incapacitados, já haverem
sido assaltados, morarem em locais ermos ou de alto risco, onde o socorro policial
tardava em chegar e os meios electrónicos defensivos se revelaram ineficazes.
A prática de brincar às
capturas, sempre reclamada por justiceiros e por paisanos que se querem ver
fardados, que por usurpação de poderes procuram alguma notoriedade, não deverá
ser encarada de ânimo leve. E não deverá porque o cão é uma arma e como tal,
muito poucos estarão habilitados e terão autoridade para manejá-la em
segurança. O cão de guarda deverá ser entendido à luz das restrições acerca da
“arma de defesa pessoal”, cujo porte não se estende a todos os cidadãos. Os
cães dos indivíduos menores, coléricos, conflituosos, vingativos, subversivos, com
algum tipo de demência, de manifesta instabilidade emocional ou envolvidos em
qualquer disputa, assim como os pertença dos cadastrados, não deverão ser
aceites nos cursos de guarda, porque os seus donos, no calor do momento,
poderão usá-los indevidamente ou vir a usá-los para fins criminosos, conforme
temos vindo a ter notícia. E se todos tiverem um cão de guarda, quem nos
defenderá uns dos outros? Para que nos servirá a Polícia? A passagem da guarda
desportiva para as acções reais é automática, porque a arma é a mesma – o cão, que
tal qual outra arma, tanto poderá ser usado como advertência quanto para matar,
apesar dos cães “desportivos” dependerem de várias condições para se adaptarem
às acções reais. Outra coisa bem diversa é treinar cães para alarme e para
defesa pessoal, assim como ensiná-los a lutar pela sua salvaguarda.
O Mundo, a Humanidade e os
Cães precisam de paz, não de traulitada, todos somos poucos para valer a tanto.
Como este blogue tem também como objectivo a divulgação da cultura portuguesa,
escolhemos deliberadamente os termos “panca” e “traulitada”, o primeiro mais
usado pelas novas gerações (que significa fixação, atracção muito forte, mania,
maluqueira e pancada) e o segundo, menos em voga, que nos remete para a
história do Séc. XIX Português, por ocasião da “Monarquia do Norte”, também
conhecida jocosamente por “Reino da Traulitânia”, obra da insurreição
monárquica de Paiva Couceiro, onde os prisioneiros republicanos foram sujeitos
a toda a sorte de maus tratos e sevícias: fartaram-se de apanhar traulitada (“trauliteiro”
é um indivíduo espancador; caceteiro). Pense bem antes de treinar ou mandar
treinar o seu cão para guarda, veja se tem perfil para isso e da possibilidade
doutras opções, porque os acidentes acontecem e podem causar vítimas. Nunca se
esqueça que um bom cão de guarda exige um líder incontestável, atento, seguro,
clarividente, avisado e acautelado, tão lesto no despoletar das acções como na
sua cessação. Doutro modo, quem o protegerá do cão e dos danos que ele venha a causar a outrem? Estamos a falar do mundo real, não do virtual!
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