quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

PODENGO: DESPREZAR O QUE NOS FAZ FALTA!

DEDICATÓRIA - Dedicamos este texto particularmente a dois cães: ao “Rodas” (um mestiço de podengo) e ao “Inferno da Urca” (um podengo gigante que nos foi oferecido e hoje já falecido). Para além deles, este trabalho pretende homenagear os milhares de podengos e seus descendentes abatidos, trucidados, mal compreendidos, abandonados, descartados e castrados ao longo da sua existência, vítimas do especicismo que encobre toda a conveniência.

O aforismo “ dá Deus nozes a quem não tem dentes” bem que podia ser aqui aplicado, se considerarmos a existência do podengo e o seu desprezo generalizado. A canicultura actual vê-se a braços com vários problemas, que não sendo de hoje, carecem de solução imediata, porque são mediatizados e objecto de condenação, destacando-se entre eles o surto dos cães perigosos e o flagelo das doenças raciais. Ainda que ninguém o queira admitir e a coisa venha a acontecer dentro do maior secretismo, mais cedo ou mais tarde, considerando a sobrevivência das várias raças, a hibridação terá de acontecer, porque importa irradiar a agressividade desmedida e a disgenia, já que a primeira atenta contra os direitos humanos e a segunda torna cínica a carta dos direitos do animal. Esta alteração, caracterizada pelo abandono dos actuais pressupostos selectivos, obrigará a um retorno até hoje desprezado, distante do especicismo originário que tanto lucro deu e a tantos valeu, na procura do atavismo e de uma nova eugenia: o cão irá ser reinventado.

Lembramo-nos dele pela ocasião da abertura da caça, quando nas auto-estradas o seu número aumenta, quer nas bermas quer dentro de exíguos reboques, quando vemos caçadores camuflados em brejos e charnecas. Geralmente preso por uma corda à cinta, o podengo acompanha o homem de arma à tiracolo, perto da caça que afugentou ou ajudou a capturar. A história repete-se há milhares de anos. Ainda que as armas tenham sido outras, o podendo continua o mesmo. Ao que consta, a sua origem é antiquíssima (3400 anos) e remonta pelo menos à época dos faraós. “Anubis”, o cão de guarda dos mortos, representado numa estátua encontrada no túmulo de Tutankhamon em 1922, em pouco ou nada difere do podengo ibicenco, familiar do português e de igual origem. Crê-se que foram os mercadores fenícios que o espalharam pelo mediterrâneo e que a horda muçulmana (mouros e sarracenos) que invadiu a Península e o sul de França contribui para a sua proliferação. Entre os gauleses ganhou as designações de “Le charnaigre”, “charnègre” e “charnique”, restringindo a sua presença na Provença, em Languedoc e em Roussillon. Foi usado para levantar de coelhos e lebres, acabando extinto por aquelas paragens, pela interdição da caça à lebre decidida pelo tribunal d’Aix-en-Provence e confirmada pelo parecer do tribunal de Cassation (1844). Na Península, nas Ilhas Baleares e na Sícilia teve uma sorte bem diferente, popularizando-se e proliferando até aos nossos dias, ainda que em pequeno número. Entre nós, no princípio do Sec. XX e nalguns casos para além da 2ª Guerra Mundial, quando o povo ainda caçava a pau, o podengo foi o seu melhor auxiliar. Justamente, o símbolo do Clube Português de Canicultura é um podengo.

Da mesma origem e colateral do podengo ibicenco e do cirneco dell etna, o Podengo Português, ao contrário da maioria das raças actuais, causadoras e vítimas de tantos problemas por via da endogamia sistemática, perpetuou-se pela selecção natural e não foi alvo de acérrima manipulação genética, o que o popularizou e em simultâneo tende a condená-lo, enquanto cão do tipo primitivo. Animal extremamente rústico e resistente, tem uma longevidade acima da média, dispensa a excelência das dietas e não requer maiores cuidados. O nome podengo deriva do substantivo latino “potencus” (cão para caçar coelhos), mas o substantivo português está mais próximo do castelhano “podenco” de igual significado. Apesar de em Portugal a primeira referência escrita sobre o Podendo remontar ao reinado de D.Sancho I (1185-1211), onde se faz saber do seu uso entre nobres e populares, o estalão da raça só foi reconhecido pela FCI em 1967, quinhentos anos depois de ter sido aproveitado como cão rateiro nas caravelas, donde chegou ao Novo Mundo e deu origem as outras raças. Este cão originário do Norte de África, tornado português, apresenta-se em 3 tamanhos tal qual o Teckel: pequeno, médio e grande, encontrando-se o último em vias de extinção e sendo empregue nas matilhas de caça grossa (veado e javali). Esta raça pode caçar isolada ou em matilha quer ela seja espontânea, homogénea ou heterogénea. Colocando de lado a história do cão que é apaixonante e muito anterior à nacionalidade, deixamos uma curiosidade: “luso” é a palavra fenícia que para “coelho”.

Indo adiante da sua morfologia (que é de todos conhecida e de fácil consulta) e não parando na apreciação do seu trabalho cinegético, este cão de charneca (terreno de baixa vegetação) tem particularidades que o tornam único e que importa realçar, já que a sua utilidade e mais-valia transcendem o uso que normalmente lhe é atribuído. Para além da pouca ou quase nula incidência de doenças comuns à espécie, o que lhe garante uma maior longevidade, o Podengo apresenta outras vantagens advindas do seu temperamento, não menos importantes e que o tornam apto para outros serviços ou prestações, nomeadamente como cão de vigia (alarme) e como cão de companhia, por força da sua máquina sensorial e distinto viver social. Como o seu desempenho enquanto cão de vigia é próprio e inato, dispensando por isso mesmo de maior delonga, analisaremos seguidamente a sua prestação enquanto cão de companhia, realçando os aspectos positivos e negativos dessa adopção, não ignorando o particular caçador que sempre o acompanhará pela vida fora, mesmo quando arredado ou distante desse ofício. A sociabilização com outros cães é quase automática e raramente provoca confrontos ou alimenta ódios, optando pelo afastamento em prejuízo da confrontação. A sua docilidade torna-o próprio para o convívio com as crianças. Depois de assimilado, o Podengo adora participar em brincadeiras e a sua alegria é contagiante. Estabelece fortes laços afectivos com os donos e é tremendamente asseado. Se desde tenra idade coabitar com outros animais domésticos, irá para além da tolerância e considerá-los-á membros dos seu grupo. A maior vantagem do Podendo enquanto cão de companhia reside nisto: sendo desprovido de agressividade, dificilmente atacará alguma pessoa, por mais que ladre ou avance e o povo sabe disso. Quantos cães ditos de companhia darão a mesma garantia?

Geralmente entre os “podengófilos” confunde-se a capacidade de aprendizagem com a obediência coerciva, porque o cão é naturalmente desconfiado e borra-se perante tons de voz mais severos, porque não é agressivo e tem uma audição assaz sensível, acabando por fazer aquilo que dele se espera. Atribuir-lhe adjectivos como “inteligente” não deixa de ser um exagero, porque estamos a tratar de um cão caçador de coelhos e sujeito maioritariamente à sua carga instintiva, entrave cognitivo que não pode ser ignorado e que amiúde deve ser contrariado. Por causa disso torna-se reservado, arisco e esquivo, mostrando alguma timidez diante de estranhos, independentemente da sua postura ou modo de apresentação, porque a mímica do Podengo não engana. Se o confinarmos isolado num canil por tempo indeterminado ou a título definitivo, ele torna-se tão silvestre quanto o coelho bravo e se ficar amatilhado dificilmente aceitará outro tipo de liderança. Esta dificuldade presente no cão, há muito que é do conhecimento dos caçadores, que o tratam por “áspero” e não hesitam em preferir e procurar os mestiços dele resultantes, menos silvestres e mais interactivos. A necessidade de integração do Podendo obriga a uma cuidada e excelente instalação doméstica, pois não basta tê-lo no quintal e esperar que se transforme num cão de companhia. Outros cães mais afamados apresentam o mesmo problema e a solução aponta para o amor que tudo suporta, se quisermos levar de vencida as barreiras que obstam à profícua comunicação interespécies. A adequação do Podengo é possível e o nosso trabalho tem dado mostras disso. Quem não tem tempo para cães porque o perde a procurá-los?

Entendemos nós e julgamos não estar enganados, que o Podengo pode ser um melhorador de raças, porque transmite a rusticidade ausente em muitas delas. O “cão de ventre arregaçado” oferece também longevidade e o equilíbrio dos impulsos herdados, doando à sua descendência a parceria que sustenta a constituição binomial e se adequa às regras vigentes na actual sociedade. Por razões ligadas à proliferação dos cães de caça e à bestialidade presente nalguns caçadores, a maioria dos cães abandonados ou é, ou teve alguma ascendência em Podengo. O seu maior número acabará votado à chacina, entregue à injecção letal nos canis terminais municipais, arredado da adopção e condenado ao esquecimento. O Podendo continua em risco de extinção, tanto nos campos como nos concursos, talvez por ser português e pelo mérito da galinha alheia. Daqui apelamos aos jovens canicultores para que preservem e melhorem este cão milenar, também ele símbolo da nossa identidade e votado a igual sorte, que atravessou o mediterrâneo, conheceu muitos povos, viu nascer Portugal e continua entre nós. Começámos com um aforismo e terminamos com outro: “cão que ladra, não morde”, tal é a natureza do Podengo, um excelente cão de companhia.

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