segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O CÃO MASCARADO AO LADO DA HISTÓRIA DESMASCARADA

O Zorro é um cachorro CPA a rondar os 11 meses de idade, um matulão de 71 cm de altura e mais de 50 kg de peso que causa sensação quando sai à rua, ainda que faça de modo desordenado e cause algum transtorno ao seu dono. Por razões que desconhecemos, ganhou o nome do célebre “Mascarilha” e necessita de se acostumar ao particular urbano. Na semana anterior foi convidado para um passeio na baixa pombalina, sendo nisso acompanhado por mais dois CPA´S: o Micks e a Vega. Os binómios convidados evoluíram entre a Praça dos Restauradores e o Terreiro do Paço, executando os diferentes comandos de imobilização de acordo com as exigências citadinas. É espantoso reparar no medo que a maioria das pessoas tem pelos cães, particularmente as de origem africana, que perante o simples cruzamento com eles, se esgueira, muda de direcção, inverte o sentido de marcha ou se põe em debandada. Esse temor não é exclusivo dos africanos e curiosamente são os mais idosos que se acercam dos animais, denotando empatia, cumplicidade e carinho. Polícias e turistas estrangeiros não escondem a sua alegria ao vê-los e as crianças em idade pré-escolar manifestam desejo de os abraçar.

Vindos da Praça da Figueira, entrámos no Largo de S.Domingos, agora constituído em ponto de encontro entre africanos, reunidos ali pela afinidade e por algum negócio que não conseguimos descortinar, dando ao local um ar de musseque em boliço equatorial. Inesperadamente, no meio do largo e atapetado pelos remates da calçada à portuguesa, tal qual bola mal cheia ou amarrotada, deparamo-nos com um hemisfério de pedra adornado por uma “Estrela de David”, privada das suas linhas estruturais internas e portadora de uma inscrição: “ EM MEMÓRIA DOS MILHARES DE JUDEUS VÍTIMAS DA INTOLERÂNCIA E DO FANATISMO RELIGIOSO ASSASSINADOS NO MASSACRE INICIADO A 19 DE ABRIL DE 1506 NESTE LARG0 ”. Quinhentos anos depois faz-se justiça e enterram-se fantasmas, Lisboa reconhece o assassinato de muitos dos seus filhos, vítimas da inveja encapotada na vingança do Messias, por força do populacho facilmente manietado, porque o magote quer é pagode e sempre procura um bode expiatório. E porque a maioria das pessoas ignora o sucedido, vale a pena relembrar esses acontecimentos.

Estamos no Ano da Graça de 1506, no décimo ano do reinado de el-rei D. Manuel I, o venturoso. A corte encontrava-se em Abrantes para fugir à peste e o monarca ia a caminho de Beja afim de visitar a Senhora sua mãe. Para além da peste, o País tinha também sido assolado por uma terrível seca que parecia não ter fim, a fome era certa e a morte uma possibilidade. Nas igrejas multiplicavam-se as intercessões e os ânimos andavam exaltados. No meio da adversidade procuravam-se explicações, razões para tal demando da vontade divina. A população judia portuguesa havia aumentado significativamente, graças ao decreto de expulsão dos Reis Católicos espanhóis que aconteceu em 1492. Portugal acolhe cerca de 93 mil judeus refugiados e cinco anos depois opera a sua conversão forçada (cristãos-novos), ainda que muitos acabassem espoliados, violados, torturados e mortos nos “Autos de Fé”. Nem todos os que foram julgados e condenados eram judeus ou judaizantes, apenas companheiros de infortúnio e alvo de denúncia, tornados judeus por força das circunstâncias.

Naquele Domingo, dia 19 de Abril de 1506, por alturas da Páscoa, rezava-se missa no Mosteiro de São Domingos (Santa Justa), pedia-se pelo fim da seca e da peste que assolavam Portugal. No meio dos fiéis alguém jurou ter visto no altar o rosto de Cristo iluminado, sendo tal entendido pelos presentes como um milagre, um sinal misericordioso do Messias que se compadecia do seu povo. Um cristão-novo que também participava da missa tentou explicar que a luz era somente o reflexo do sol, pelo que foi calado e espancado até à morte. O sucedido aumentou a desconfiança sobre os judeus, tornando-os bode expiatório e causa de todo o infortúnio aos olhos da população maioritária. Três dias de massacre se sucederam debaixo da incitação dos frades dominicanos, que prometiam a absolvição dos pecados, nos últimos 100 dias, para quem matasse os “hereges” (judeus e cristãos-novos). O grupo genocida, maioritariamente lisboeta, foi reforçado pelo préstimo de marinheiros estrangeiros oriundos da Holanda, da Zelândia e de outras paragens, sendo o número dos criminosos superior a 500. Nesses 3 dias da semana santa e como consequência, homens, mulheres e crianças foram torturados, massacrados, violados e queimados em fogueiras improvisadas no Rossio, acusados de matar Cristo e responsáveis pelo castigo da seca e da peste. A “festança” só acabou quando João Rodrigues de Mascarenhas, escudeiro do Rei e cristão-novo (um agente da autoridade) foi morto e diante da acção das tropas reais que entretanto chegaram e restauraram a ordem.

D. Manuel I, que só terá tido notícia dos acontecimentos em Avis, enviando de imediato magistrados para pôr cobro ao banho de sangue, penalizou os envolvidos, confiscando-lhes os bens e condenando os dominicanos à morte. Há quem julgue ter encontrado indícios de que o Convento de S.Domingos (da Baixa) teria sido fechado durante 8 anos. O holocausto hebraico de modo institucionalizado começou na Península Ibérica, pelos “bons ofícios” da Inquisição vulgarmente confundida como “Tribunal do Santo Ofício”. Espanhóis e portugueses serviram de inspiração para o eugenismo negativo germânico, baseado nos mesmos mitos e de pior consequência. Só em 15 de Dezembro de 1774, no reinado de D.José, a quem a influência do Marquês de Pombal não foi alheia, também ele um mestiço, se aboliu a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos. Contudo, a extinção da inquisição em Portugal só aconteceu em 31 de Março de 1821, pelo parecer das Cortes Gerais da Nação Portuguesa. Em 1989, num gesto simbólico, Mário Soares na qualidade de Presidente da República pediu perdão pelas perseguições que o povo judeu sofreu em Portugal. Mas só em 1996, quinhentos anos depois do decreto de expulsão dos judeus, o Parlamento Português votou por unanimidade a sua revogação, quando habitava no Palácio de Belém o 1º Presidente da República de ascendência judia (Jorge Sampaio). Para quem diz que a justiça portuguesa é lenta, o que dirão dela os judeus? Teófilo Braga, 2º Presidente da 1ª República Portuguesa, perante os eugénicos do seu tempo, concluiu que os portugueses resultaram da mistura de várias raças e tal era um exemplo de superioridade. Outros, como Oliveira Martins e Antero de Quental, entenderam a nação portuguesa como resultante da “vontade política e das instituições e não de uma raça entendida como um tipo nacional”. Nem todos os “Pintos” pertencem à mesma galinha, porque entre aqueles que ainda falam ladino o nome persiste. Na encruzilhada entre Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Viseu e Bragança, enquanto distritos fronteiriços, muita coisa há ainda a descobrir. Fiquemos com Pessoa: “ A minha Pátria é a Língua Portuguesa “. Alheio a tudo isto, o Zorro desfrutou e adorou o passeio.

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