quinta-feira, 17 de novembro de 2022

IMBRÓGLIO EM ONTÁRIO

 

Ainda não tinha entrado para a escola e já ouvia: “quem dá e tira ao inferno vai parar”. O aforismo ficou-me gravado para sempre na memória e hoje lembrei-me dele por conta de um imbróglio sucedido na região canadiana de Ontário, noticiado há poucas horas. Sasha Singh diz que no dia em que a sua família conseguiu adquirir um cão de serviço para sua filha mudou totalmente a sua vida. "Posso dizer com certeza que o melhor terapeuta vem com pelo e tem quatro patas", referindo-se à grande ajuda que Sammy, um Bouvier Bernois, deu à sua filha Catiana de 14 anos, que não fala e sofre de autismo (na foto seguinte. "Deu-nos uma vida normal; podíamos fazer as coisas como uma família." Mas em março, Singh diz que a vida de Catiana ficou de pernas para o ar quando o National Service Dogs (NSD) levou Sammy sem pré-aviso, após quatro anos com a família. Não é fácil conseguir um cão de serviço em Ontário, que requer entre outras coisas um atestado médico. As listas de espera podem durar anos e o treino destes cães custa milhares de dólares. A família de Sasha Singh diz que esperou quatro anos para conseguir ficar com o Sammy. Mas a NSD, uma organização com sede em Cambridge, nos arredores de Ontário, que treina cães para crianças diagnosticadas com autismo, disse que o cão estava obeso e sem a saúde necessária para continuar a trabalhar – algo que a família usurpada contesta.

Antes de ser levado, Sammy passou no teste de acesso público, o que demonstra que encontrava capaz de desempenhar suas funções como animal de serviço. Após isso, Singh recebeu uma carta a dizer que o cão foi certificado provisoriamente. E quando a família perguntou por que motivo, a NSD disse que era por causa do animal se encontrar acima do peso. “Explicámos-lhes que nos últimos dois anos a nossa vida profissional sofreu alteração por causa do COVID, impedindo-nos de sair com as crianças e Sammy aumentou de peso por via disso”, disse ela. Após alguma troca de e-mails, a família diz que a organização queria fazer uma visita domiciliar para discutir uma dieta e um plano de exercícios para o cão, o que não aconteceu, sendo o animal confiscado. O pai de Catiana, Ricardo Portillo, afirma que a família foi apanhada totalmente desprevenida. “No dia anterior, falei com eles e eles prometeram-nos que não levariam o cão, que iriam trabalhar num plano para colocá-lo operacional”, disse ele. "Quando chegaram aqui, depois de dois minutos de conversa, disseram- nos que iam levar o Sammy, deixando as nossas filhas num pranto inconsolável". A família mostrou à CBC News uma nota de um veterinário de Mississauga referindo-se a uma visita que eles dizem ter ocorrido poucos dias antes de Sammy ser levado. A nota afirmava que ele estava "saudável e feliz". Nessa mesma nota podia ler-se ainda: "reavaliámos o histórico de peso (do cão) e descobrimos que o peso de inverno de 49,7 kg é aceitável e sugerimos o peso ideal de 46 kg a 47 kg” (3 kg a mais durante o inverno canadiano não são razão para tal excesso de zelo).

Num comunicado, a NSD disse que o Sammy foi visto por vários veterinários. “Outros veterinários trataram o cão de problemas ortopédicos relacionados com a sua obesidade”, dizia o comunicado. "Os nossos pensamentos estão com a família e seus filhos enquanto eles navegam nessa difícil transição. Felizmente, o cão de serviço em questão iniciou a longa jornada para retornar a um peso corporal saudável sob um regime diário de exercícios e nutrição adequada, proporcionando-lhe alívio ortopédico e outras questões exacerbadas pela sua obesidade." A declaração também dizia que houve alguns casos, ao longo dos 26 anos de história da organização, em que algumas famílias não conseguiram cuidar adequadamente dos seus cães de serviço e, como "último recurso", foi tomada a decisão de remover permanentemente o animal. Laura Kirby-McIntosh, ex-presidente da Ontario Autism Coalition (na foto abaixo), disse que cães de serviço são criados e treinados para se focarem nas crianças, criando com elas um vínculo incrivelmente próximo. A mesma Laura Kirby-McIntosh, disse que acha a história desta família "chocante" e que nunca tinha ouvido falar de um caso semelhante. "Aparentemente, parece muito, muito triste" (o filho de Kirby-McIntosh, que tem autismo, teve também um cão de serviço durante 10 anos).

“Existe uma comunicação tácita entre o cão e a criança, porque o animal é uma criatura livre de julgamentos”, disse ela, esclarecendo que o cão destes desempenha funções de segurança e fornece apoio emocional. Enquanto Kirby-McIntosh reconhece que não conhece todos os detalhes da história, ela sente-se sensibilizada com o drama daquela família e particularmente com o da criança, ao ter constatado da diferença que um cão de serviço fez na vida do seu filho. "A única coisa que eu poderia comparar seria tirar uma cadeira de rodas a um deficiente físico. Estes cães dão mais liberdade e independência às crianças com autismo.” Face aos acontecimentos, a família Singh pondera apresentar queixa no tribunal dos direitos humanos. Sem o Sammy desde março passado, a família diz-se insatisfeita com a comunicação com o NSD, por não saber se o cão se encontra bem, animal que já se ofereceu para comprar, mesmo que isso significasse que Sammy não poderia trabalhar. "Não posso aceitar que o levassem sem nos dar outra saída ou um acordo", disse Portillo. Singh diz que Catiana regrediu desde então, que a sua filha agora não consegue sair de casa sem ser violenta e tem longos períodos de tempo em que fica virada para uma parede, balançando-se para a frente e para trás e se balança para frente e para trás. "Não é um cachorro para mim, é meu filho. Queremos que ele volte para casa", rematou Singh. A ser verdade o que aqui foi dito e sem querer enveredar por teorias da conspiração, parece-me que estamos perante um simples e descarado caso de racismo, acompanhado quiçá de algum negócio menos claro e mal orquestrado. 

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