Com a Primavera à porta lembrei-me de Irún, uma pequena Cidade basca
fronteiriça com a França, colada a Hendaye (Hendaia), no sopé dos Pirenéus,
banhada pelo Rio Bidasoa e a poucos quilómetros de San Sebastian, que faz do
comércio com os franceses uma das suas principais actividades. Local de
peregrinação obrigatória para os descendentes dos judeus fugitivos da II Guerra
Mundial, para os filhos dos emigrantes portugueses que ali passaram rumo a
França e também para aqueles cujos antepassados combateram pela República
Espanhola contra Franco, porque a todos serviu como porta de entrada ou de
saída da Península, ao tempo isolada do resto da Europa democrática,
substancialmente mais atrasada e entregue a dois ditadores: Francisco Bahamonde
Franco e António de Oliveira Salazar, responsáveis directos pela emigração dos
povos peninsulares pela restante Europa.
O estatuto de neutralidade alcançado por Salazar durante o II Maior
Conflito Mundial fez de Portugal um cais de embarque para os Judeus fugitivos
que pretendiam ir para os Estados Unidos, que eram primeiro obrigados a
atravessar toda a Espanha. Como é histórico e conhecido, nenhum dos ditadores
era chegado aos judeus ou sensível aos seus problemas, já que politicamente se
encontravam mais próximos do III Reich. Não fora a “traição” perpetrada por
alguns dos seus funcionários, que passaram milhares de vistos àquela gente,
jamais Salazar teria acolhido aqueles turistas forçados e de passagem, que
ainda lhe causaram alguns amargos de boca com o “pessoal” de Berlim. Por razões
políticas e falta de conhecimento, aqui se confundiu os bascos ora como
revolucionários ora como terroristas, por via dos “tramposos” da ETA, que não
espelham nem nunca espelharam as aspirações do Povo Basco, sendo por isso um
grupo sectário de índole manifestamente assassina. Os bascos são realmente
diferentes dos outros povos peninsulares e nalguns casos para melhor, porque
são discretos, simpáticos e esforçados, comedidos no falar e nas acções, que
tocam a sua vidinha sem se imiscuírem na dos outros, sendo a princípio um pouco
tímidos e introvertidos, qualidades que os tornam gente boa e confiável.
Quando lá estive (em Irún), tive oportunidade de falar com vários
bascos, primeiro ao final da tarde e à mesa do café (ali almoça-se muito
tarde), depois como convidado na casa de alguns. Uma das conversas recorrentes
era a relativa à emigração portuguesa, que aquela gente muito admirou e
protegeu, porque era obrigada a galgar toda a serraria do norte de Espanha,
tinha que se esconder de dia e só podia caminhar à noite, tendo a Guardia Civil
à perna. Se algum se fosse abaixo ou ficasse ferido, ficava entregue a si
próprio para não atrapalhar o avanço dos demais. Para que não fossem caçados,
recambiados de volta e vítimas de algumas sevícias, muitos bascos esconderam
esses portugueses, mormente em estábulos e currais, animando-os e dando-lhes de
comer para que chegassem a França. No sentido inverso, debaixo das mesmas
condições mas com risco de morte, depois de terminada a II Guerra Mundial, os
portugueses que combateram pelo lado da República Espanhola e que acabaram por
engrossar as fileiras dos “Maquis” em França, também por ali passaram rumo a
Portugal, onde não eram desejados e tinham a prisão como certa, caso fossem
denunciados ou caçados. Mas foram os judeus, maioritariamente Askhenasi, que
mais viram o seu destino ligado à Real Ponte de Santiago, que servia de
fronteira entre a França e a Espanha, cujo trajecto lhes parecia demasiado
longo e por vezes quase inalcançável, quando perseguidos pela “Wehrmacht” ou
pelas “SS”.
Irún não está só ligada à história moderna ou recente mas a um conjunto
de decisões históricas que nela traçaram o destino de várias nações europeias.
Com mais de 60.000 habitantes, é possível ver na Cidade espanhóis de toda a
parte (até andaluzes), índios e mestiços sul-americanos, brasileiros e
portugueses (a maioria camionistas), para além de muitos franceses que ali vão
comprar álcool e tabaco às carradas. A língua basca parece à partida de difícil
assimilação mas depois de uma semana ou duas, para nós portugueses, ela
torna-se familiar, porque a sua sonoridade é igual à nossa, muito embora a sua
escrita resulte numa complicação tremenda. As palavras soam-nos familiares e a
sua absorção é deveras agradável, quiçá porque num dia remoto, os antepassados
dos portugueses de origem celta e europeia por ali passaram, depois de expulsos
pelos germanos das margens dos Rios Reno e Danúbio. Também por ali passaram os
Suevos e os Visigodos, vindos da destruição de Roma e empurrados pelos Francos,
que haveriam de estabelecer as bases das diferentes monarquias peninsulares.
Por tudo isto, Irún resulta familiar e cosmopolita. A gastronomia ali não é de
encher o olho e é comum ver os bascos, logo pela manhã, com um cacete de pão
debaixo do braço, embrulhado num papel. Sobre a história da cidade e da região,
por ser riquíssima, muito mais haveria a dizer, pelo que não nos delongaremos
nisso e aconselhamos todos a visitá-la, comprovando assim o que acabámos de
dizer. Adianta-se ainda que Irún é parte integrante de um dos caminhos para Santiago.
Agora que o Sol começa a despontar mais cedo a nascente do Rio Bidasoa, com
o aumento da temperatura e o degelo, as flores nos Pirenéus Atlânticos começam
a desabrochar, salpicando aqui e ali, de verde e outras cores, o cinzento das
montanhas que se eleva altíssimo e que guarda em si muitas lendas e narrativas.
E porque Irún está a uns escassos 20m acima do nível médio das águas do mar, as
montanhas ao seu redor parecem guardá-la e reclamá-la, como se de um oásis se
tratasse. Pouco a pouco, com o aumento dos dias, a Avenida que vem da Estação
de Comboios de Hendaia para o Centro de Irún começa a encher-se de gente,
lotando os cafés e entrepostos comerciais fronteiriços, agora com mais horas de
luz, menos frio, vento e neblinas. Apesar da cidade estar extraordinariamente
bem apetrechada de transportes públicos e o custo de vida não ser elevado, o
que mais cativa, a quem tem ainda algum sangue na guelra, é subir as montanhas,
entrar em contacto com a natureza e poder ver em simultâneo a Terra e o Mar, o
País Basco e a França, inclusive a Biarritz, deslumbre que parece miragem. Do
lado francês existe um praia situada numa baía (estamos no Golfo da Biscaia),
protegida por fortes paredões, paradisíaca, bem cuidada, ao mesmo tempo rústica
e requintada, idílica, piscatória e com uma luz extraordinária: a Praia de
St.-Jean-de-Luz, que dista poucos kms de Irún e que é rodeada por cidade bonita
e cheia de eventos, o que a torna por demais apelativa.
Irún ainda conserva o carácter sacrossanto na arquitectura das suas
casas, enquanto urbe no meio das montanhas e condicionada por elas, lembrando
por vezes alguns aglomerados populacionais serranos do Nordeste Transmontano,
não sendo por isso de estranhar que alguns transmontanos por lá vivam, se
sintam bem e mantenham ali negócio. Junto ao estádio de futebol há uma cantina
gerida por uma flaviense, boa cozinheira, tesa e sem papas na língua, que
segundo a má-língua dos seus patrícios, mostra igual desprendimento no que à higiene
diz respeito (eu entrei lá por indicação de outros e saí, até porque a
clientela pareceu-me pouco recomendável).
Como em todo o País Basco, os portugueses são ali bem vistos e
respeitados. A melhor maneira para lá chegar é ir de avião mas a mais cómoda e
mais barata é ir de comboio (nunca foi tão barato). Esta primavera não irei a
Irún, não voltarei a subir as suas montanhas, mas como as saudades são tantas,
não resisti em dividir as minhas impressões acerca dela com os nossos leitores.
Gostei de lá estar e senti-me em casa, como que transportado por uma regressão
hipnótica. Irún é um pouco como Sintra: todos encontramos nela um pouco de cada
um de nós e graças ao seu fascínio todos a sentimos nossa.
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