quarta-feira, 11 de março de 2015

PRIMAVERA EM IRÚN

Com a Primavera à porta lembrei-me de Irún, uma pequena Cidade basca fronteiriça com a França, colada a Hendaye (Hendaia), no sopé dos Pirenéus, banhada pelo Rio Bidasoa e a poucos quilómetros de San Sebastian, que faz do comércio com os franceses uma das suas principais actividades. Local de peregrinação obrigatória para os descendentes dos judeus fugitivos da II Guerra Mundial, para os filhos dos emigrantes portugueses que ali passaram rumo a França e também para aqueles cujos antepassados combateram pela República Espanhola contra Franco, porque a todos serviu como porta de entrada ou de saída da Península, ao tempo isolada do resto da Europa democrática, substancialmente mais atrasada e entregue a dois ditadores: Francisco Bahamonde Franco e António de Oliveira Salazar, responsáveis directos pela emigração dos povos peninsulares pela restante Europa.
O estatuto de neutralidade alcançado por Salazar durante o II Maior Conflito Mundial fez de Portugal um cais de embarque para os Judeus fugitivos que pretendiam ir para os Estados Unidos, que eram primeiro obrigados a atravessar toda a Espanha. Como é histórico e conhecido, nenhum dos ditadores era chegado aos judeus ou sensível aos seus problemas, já que politicamente se encontravam mais próximos do III Reich. Não fora a “traição” perpetrada por alguns dos seus funcionários, que passaram milhares de vistos àquela gente, jamais Salazar teria acolhido aqueles turistas forçados e de passagem, que ainda lhe causaram alguns amargos de boca com o “pessoal” de Berlim. Por razões políticas e falta de conhecimento, aqui se confundiu os bascos ora como revolucionários ora como terroristas, por via dos “tramposos” da ETA, que não espelham nem nunca espelharam as aspirações do Povo Basco, sendo por isso um grupo sectário de índole manifestamente assassina. Os bascos são realmente diferentes dos outros povos peninsulares e nalguns casos para melhor, porque são discretos, simpáticos e esforçados, comedidos no falar e nas acções, que tocam a sua vidinha sem se imiscuírem na dos outros, sendo a princípio um pouco tímidos e introvertidos, qualidades que os tornam gente boa e confiável.
Quando lá estive (em Irún), tive oportunidade de falar com vários bascos, primeiro ao final da tarde e à mesa do café (ali almoça-se muito tarde), depois como convidado na casa de alguns. Uma das conversas recorrentes era a relativa à emigração portuguesa, que aquela gente muito admirou e protegeu, porque era obrigada a galgar toda a serraria do norte de Espanha, tinha que se esconder de dia e só podia caminhar à noite, tendo a Guardia Civil à perna. Se algum se fosse abaixo ou ficasse ferido, ficava entregue a si próprio para não atrapalhar o avanço dos demais. Para que não fossem caçados, recambiados de volta e vítimas de algumas sevícias, muitos bascos esconderam esses portugueses, mormente em estábulos e currais, animando-os e dando-lhes de comer para que chegassem a França. No sentido inverso, debaixo das mesmas condições mas com risco de morte, depois de terminada a II Guerra Mundial, os portugueses que combateram pelo lado da República Espanhola e que acabaram por engrossar as fileiras dos “Maquis” em França, também por ali passaram rumo a Portugal, onde não eram desejados e tinham a prisão como certa, caso fossem denunciados ou caçados. Mas foram os judeus, maioritariamente Askhenasi, que mais viram o seu destino ligado à Real Ponte de Santiago, que servia de fronteira entre a França e a Espanha, cujo trajecto lhes parecia demasiado longo e por vezes quase inalcançável, quando perseguidos pela “Wehrmacht” ou pelas “SS”.
Irún não está só ligada à história moderna ou recente mas a um conjunto de decisões históricas que nela traçaram o destino de várias nações europeias. Com mais de 60.000 habitantes, é possível ver na Cidade espanhóis de toda a parte (até andaluzes), índios e mestiços sul-americanos, brasileiros e portugueses (a maioria camionistas), para além de muitos franceses que ali vão comprar álcool e tabaco às carradas. A língua basca parece à partida de difícil assimilação mas depois de uma semana ou duas, para nós portugueses, ela torna-se familiar, porque a sua sonoridade é igual à nossa, muito embora a sua escrita resulte numa complicação tremenda. As palavras soam-nos familiares e a sua absorção é deveras agradável, quiçá porque num dia remoto, os antepassados dos portugueses de origem celta e europeia por ali passaram, depois de expulsos pelos germanos das margens dos Rios Reno e Danúbio. Também por ali passaram os Suevos e os Visigodos, vindos da destruição de Roma e empurrados pelos Francos, que haveriam de estabelecer as bases das diferentes monarquias peninsulares. Por tudo isto, Irún resulta familiar e cosmopolita. A gastronomia ali não é de encher o olho e é comum ver os bascos, logo pela manhã, com um cacete de pão debaixo do braço, embrulhado num papel. Sobre a história da cidade e da região, por ser riquíssima, muito mais haveria a dizer, pelo que não nos delongaremos nisso e aconselhamos todos a visitá-la, comprovando assim o que acabámos de dizer. Adianta-se ainda que Irún é parte integrante de um dos caminhos para Santiago.
Agora que o Sol começa a despontar mais cedo a nascente do Rio Bidasoa, com o aumento da temperatura e o degelo, as flores nos Pirenéus Atlânticos começam a desabrochar, salpicando aqui e ali, de verde e outras cores, o cinzento das montanhas que se eleva altíssimo e que guarda em si muitas lendas e narrativas. E porque Irún está a uns escassos 20m acima do nível médio das águas do mar, as montanhas ao seu redor parecem guardá-la e reclamá-la, como se de um oásis se tratasse. Pouco a pouco, com o aumento dos dias, a Avenida que vem da Estação de Comboios de Hendaia para o Centro de Irún começa a encher-se de gente, lotando os cafés e entrepostos comerciais fronteiriços, agora com mais horas de luz, menos frio, vento e neblinas. Apesar da cidade estar extraordinariamente bem apetrechada de transportes públicos e o custo de vida não ser elevado, o que mais cativa, a quem tem ainda algum sangue na guelra, é subir as montanhas, entrar em contacto com a natureza e poder ver em simultâneo a Terra e o Mar, o País Basco e a França, inclusive a Biarritz, deslumbre que parece miragem. Do lado francês existe um praia situada numa baía (estamos no Golfo da Biscaia), protegida por fortes paredões, paradisíaca, bem cuidada, ao mesmo tempo rústica e requintada, idílica, piscatória e com uma luz extraordinária: a Praia de St.-Jean-de-Luz, que dista poucos kms de Irún e que é rodeada por cidade bonita e cheia de eventos, o que a torna por demais apelativa.
Irún ainda conserva o carácter sacrossanto na arquitectura das suas casas, enquanto urbe no meio das montanhas e condicionada por elas, lembrando por vezes alguns aglomerados populacionais serranos do Nordeste Transmontano, não sendo por isso de estranhar que alguns transmontanos por lá vivam, se sintam bem e mantenham ali negócio. Junto ao estádio de futebol há uma cantina gerida por uma flaviense, boa cozinheira, tesa e sem papas na língua, que segundo a má-língua dos seus patrícios, mostra igual desprendimento no que à higiene diz respeito (eu entrei lá por indicação de outros e saí, até porque a clientela pareceu-me pouco recomendável).
Como em todo o País Basco, os portugueses são ali bem vistos e respeitados. A melhor maneira para lá chegar é ir de avião mas a mais cómoda e mais barata é ir de comboio (nunca foi tão barato). Esta primavera não irei a Irún, não voltarei a subir as suas montanhas, mas como as saudades são tantas, não resisti em dividir as minhas impressões acerca dela com os nossos leitores. Gostei de lá estar e senti-me em casa, como que transportado por uma regressão hipnótica. Irún é um pouco como Sintra: todos encontramos nela um pouco de cada um de nós e graças ao seu fascínio todos a sentimos nossa.

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