quinta-feira, 5 de março de 2015

CONSEGUIRÃO OS CÃES APRENDER A LER?

Graças ao advento do reforço positivo, honra lhe seja feita, qualquer um pode ensinar o seu cão, quer tenha mais ou menos técnica, equilíbrio ou perfil para isso, já que a obediência é tirada a partir da dependência e por causa disso, as respostas caninas tornam-se naturais, sendo alcançadas à velocidade da sua avidez, quer pelo concurso da gula quer pelo convite à perseguição, método por si bastante para os que apenas desejam animais de companhia mas insuficiente para a salvaguarda dos cães e para o alcance doutras especialidades cinotécnicas, que ao exigirem maior autonomia, não dispensam o concurso doutras selecções, simulacros, técnicas, tácticas e métodos. Com este aumento inesperado de adestradores e handlers, cuja “erudição” mais deve à dependência canina do que ao conhecimento objectivo dos cães, velhas trapaças voltam à tona e refinam-se os truques, até porque os cães nunca se prestaram tanto à promoção social dos seus proprietários como agora, o que tem fomentado o culto “do santo cão”, por via dos milagres e benefícios que este companheiro tem operado nas suas vidas (não faltam exemplos).
Lá para as bandas do Kentucky/USA, em Louisville, uma senhora chamada Maureen Ward, anda a fazer furor com a sua cadela Mia, uma Pastora Australiana miniatura, que segundo ela consegue “ler”. Há inclusive um vídeo na internet a provar esse portento, relativo a uma exibição que ambas fizeram na escola de Brown, onde foram veementemente aplaudidas. A ideia e a ambição não são novas, remontam à década de 30 do Século passado, quando debaixo dos auspícios do nazismo, se fundou na Alemanha a ASRA (escola de línguas para cães), debaixo da supervisão da Sr.ª Margarethe Schimdt, na Cidade de Leutenberg na Turíngia, com o propósito de ensinar os cães a falar e a comunicarem também por alfabetos tipológicos, diante da possibilidade de aprenderem a ler e a escrever, o que tornaria o seu uso ainda mais abrangente pela melhor comunicação com os soldados. E como há muito não se ouvia falar em tal coisa, movidos pela curiosidade, dispusemo-nos a ver e a analisar o dito vídeo (www.wave3.com/story/28194165/reading-dog-is-real-deal), quantas vezes fosse necessário, para aferir da autenticidade dos seus propósitos, existência de truques ou possível trapaça, já que somos experimentados e hábeis na comunicação não-verbal.
Para espanto nosso, o vídeo não traz qualquer novidade nem falta à verdade, porque nele é por demais visível o efeito “Clever Hans”, designação científica para a capacidade que os animais têm de entenderem a mímica dos seus donos e que a Sr.ª Maureen Ward não omite e até explica, realçando inclusive a necessidade de memorização canina. A resposta da cadela às palavras impressas, destacadas em folhas brancas de A4, fica a dever-se ao alerta verbal, que é introduzido por uma pergunta e ao dedilhar de uma ou duas letras destacadas, que indiciam as acções requeridas, dedilhar em tudo idêntico aos comandos gestuais por detrás daquele condicionamento, o que é sobejamente mais arte do que erudição científica. Todas as acções e figuras requeridas estão associadas a estados de ânimo particulares e desnudam o contributo da memória afectiva canina. E também não poderia ser de outro modo, reconhecidas que são as dificuldades de verbalização caninas e a aquisição de respostas para além do uso dos sentidos, de transitar do abstracto para o concreto e vice-versa.
Tudo o que dissemos é por demais visível no “Shame”, palavra sibilante que carrega travamento e desconforto, cujo dedilhar das primeiras letras indicia reprovação e reproduz um claro “não”. A moda está a pegar um pouco por todo o lado e por toda a parte aparecem cães a ”ler”. Se eles de facto soubessem ler, descobririam diferentes palavras no meio de outras sem indicação dos seus mestres e desvinculadas de acções reais. No entanto, há que louvar o esforço desta treinadora, porque retomou um trabalho há muito desleixado, apaixonante e que mais nos aproxima do conhecimento objectivo da inteligência canina. Mediante o concurso da recompensa, que sela a aprovação e garante o acerto animal, podemos colocar num quadro ao alcance dum cão, quatro palavras com três nomes da sua família adoptiva e outro a ela alheio (ex: Mãe, Vasco, Empregada e Estranho), perguntando depois ao cão quem esteve lá em casa, pessoa que nos indicará pelo tocar da sua pata no nome correspondente (a ordem nos nomes não deverá ser alterada para facilitar a sua memorização). O número das pessoas a indicar e a memória da sua passagem irão depender de cão para cão, segundo o seu impulso conhecimento, capacidade de aprendizagem, concentração, condicionamento e recapitulação. O sucesso sempre resultará do experimento que propiciou a experiência variada e rica, do qual não podemos dispensar a recompensa. E nisto os saloios têm razão: “burro é o cão que corre sem lebre à frente!” 

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