Graças ao advento do reforço positivo, honra lhe seja feita, qualquer um
pode ensinar o seu cão, quer tenha mais ou menos técnica, equilíbrio ou perfil
para isso, já que a obediência é tirada a partir da dependência e por causa
disso, as respostas caninas tornam-se naturais, sendo alcançadas à velocidade
da sua avidez, quer pelo concurso da gula quer pelo convite à perseguição,
método por si bastante para os que apenas desejam animais de companhia mas
insuficiente para a salvaguarda dos cães e para o alcance doutras
especialidades cinotécnicas, que ao exigirem maior autonomia, não dispensam o
concurso doutras selecções, simulacros, técnicas, tácticas e métodos. Com este
aumento inesperado de adestradores e handlers, cuja “erudição” mais deve à
dependência canina do que ao conhecimento objectivo dos cães, velhas trapaças
voltam à tona e refinam-se os truques, até porque os cães nunca se prestaram
tanto à promoção social dos seus proprietários como agora, o que tem fomentado
o culto “do santo cão”, por via dos milagres e benefícios que este companheiro
tem operado nas suas vidas (não faltam exemplos).
Lá para as bandas do Kentucky/USA, em Louisville, uma senhora chamada
Maureen Ward, anda a fazer furor com a sua cadela Mia, uma Pastora Australiana
miniatura, que segundo ela consegue “ler”. Há inclusive um vídeo na internet a
provar esse portento, relativo a uma exibição que ambas fizeram na escola de
Brown, onde foram veementemente aplaudidas. A ideia e a ambição não são novas,
remontam à década de 30 do Século passado, quando debaixo dos auspícios do
nazismo, se fundou na Alemanha a ASRA (escola de línguas para cães), debaixo da
supervisão da Sr.ª Margarethe Schimdt, na Cidade de Leutenberg na Turíngia, com
o propósito de ensinar os cães a falar e a comunicarem também por alfabetos
tipológicos, diante da possibilidade de aprenderem a ler e a escrever, o que
tornaria o seu uso ainda mais abrangente pela melhor comunicação com os
soldados. E como há muito não se ouvia falar em tal coisa, movidos pela
curiosidade, dispusemo-nos a ver e a analisar o dito vídeo (www.wave3.com/story/28194165/reading-dog-is-real-deal),
quantas vezes fosse necessário, para aferir da autenticidade dos seus
propósitos, existência de truques ou possível trapaça, já que somos
experimentados e hábeis na comunicação não-verbal.
Para espanto nosso, o vídeo não traz qualquer novidade nem falta à
verdade, porque nele é por demais visível o efeito “Clever Hans”, designação
científica para a capacidade que os animais têm de entenderem a mímica dos seus
donos e que a Sr.ª Maureen Ward não omite e até explica, realçando inclusive a
necessidade de memorização canina. A resposta da cadela às palavras impressas,
destacadas em folhas brancas de A4, fica a dever-se ao alerta verbal, que é
introduzido por uma pergunta e ao dedilhar de uma ou duas letras destacadas,
que indiciam as acções requeridas, dedilhar em tudo idêntico aos comandos
gestuais por detrás daquele condicionamento, o que é sobejamente mais arte do
que erudição científica. Todas as acções e figuras requeridas estão associadas
a estados de ânimo particulares e desnudam o contributo da memória afectiva
canina. E também não poderia ser de outro modo, reconhecidas que são as
dificuldades de verbalização caninas e a aquisição de respostas para além do
uso dos sentidos, de transitar do abstracto para o concreto e vice-versa.
Tudo o que dissemos é por demais visível no “Shame”, palavra sibilante que carrega travamento e desconforto,
cujo dedilhar das primeiras letras indicia reprovação e reproduz um claro
“não”. A moda está a pegar um pouco por todo o lado e por toda a parte aparecem
cães a ”ler”. Se eles de facto soubessem ler, descobririam diferentes palavras
no meio de outras sem indicação dos seus mestres e desvinculadas de acções
reais. No entanto, há que louvar o esforço desta treinadora, porque retomou um
trabalho há muito desleixado, apaixonante e que mais nos aproxima do
conhecimento objectivo da inteligência canina. Mediante o concurso da recompensa,
que sela a aprovação e garante o acerto animal, podemos colocar num quadro ao
alcance dum cão, quatro palavras com três nomes da sua família adoptiva e outro
a ela alheio (ex: Mãe, Vasco, Empregada e Estranho), perguntando depois ao cão
quem esteve lá em casa, pessoa que nos indicará pelo tocar da sua pata no nome
correspondente (a ordem nos nomes não deverá ser alterada para facilitar a sua
memorização). O número das pessoas a indicar e a memória da sua passagem irão
depender de cão para cão, segundo o seu impulso conhecimento, capacidade de
aprendizagem, concentração, condicionamento e recapitulação. O sucesso sempre
resultará do experimento que propiciou a experiência variada e rica, do qual
não podemos dispensar a recompensa. E nisto os saloios têm razão: “burro é o
cão que corre sem lebre à frente!”
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