quinta-feira, 26 de março de 2015

JUDY: HEROÍNA E PRISIONEIRA DE GUERRA A TROCO DE UMA BEBEDEIRA

Esta é uma história verídica que aconteceu na II Guerra Mundial e que opôs os Estados Unidos, o outrora Império Britânico e outras potências mundiais contra o Império Japonês pelo domínio do Pacífico e suas possessões, um relato para nós comovente duma cadela Pointer, nascida em Singapura, que veio a ser tratada por Judy e tornada mascote da Royal Navy, numa época em que ainda mal se falava nos “cães de terapia”. O que nos levou a este relato sintético das façanhas da Judy, também ela pertencente ao grupo dos cães caçadores, foi a má lembrança dos comuns e superlotados atrelados destinados aos cães de caça, que lembram em muito as grades usadas pelos chineses para os cães de abate, onde bracóides, bassetóides e spitzs são ali emparedados sem o mínimo de condições, como se não tivessem para os seus donos qualquer valor, imagem degradante para quem vê e prática cruel que não se coaduna com os mais elementares direitos dos animais. Pouco a pouco a situação está a mudar mas não tão rápido como desejaríamos, pois já se vêm atrelados caninos dignos desse nome.
A história da Judy não pode ser dissociada de Frank Williams, um Navegador da RAF que ao adoptá-la, foi seu companheiro de aventuras, desventuras e cativeiro, valendo a muitos prisioneiros como eles e sobrevivendo ambos à Guerra. Depois de ter sido aceite pela Marinha Real Inglesa (RN), foi colocada a bordo do HMS Grasshopper, um Canhoeira de 585 toneladas, que estava aportada em Singapura na altura em que os japoneses tomaram aquela cidade. Não tendo outra alternativa, este navio de guerra fez-se ao mar em direcção à Ilha de Java, sendo duas milhas adiante bombardeado por aviões japoneses, o que obrigou a tripulação ao seu abandono. Valeu na circunstância à Judy o pronto auxílio de Frank, que quebrando uma vigia, a salvou de se afundar junto com aquele navio, apesar da ter perdido de vista durante duas horas, naquele mar cheio de óleo e combustível, farto em detritos e pleno de homens em pânico. Uma vez liberta, a  prestação da Judy veio a revelar de extrema importância para aqueles homens, quer rebocando-os quer guiando-os para pedaços flutuantes de destroços, evitando a exaustão de alguns e possibilitando desse modo o seu salvamento.
Os sobreviventes conseguiram chegar à Ilha de desabitada de Sinkep, ao Sul do Mar da China, com pouca comida e sem água, padecendo de fome e sede por dois dias, onde mais uma vez a cadela lhes valeu, guiando-os para um manancial de água doce, que escavou depois da maré baixa, trazendo-a à superfície. Livres daquela aflição, os marinheiros ingleses apoderaram-se dum junco chinês e rumaram à Ilha de Sumatra. Chegados a terra firme, empreenderam uma caminhada de 200 milhas desde o nordeste da costa até Padang, onde por desventura foram parar a um povoado controlado pelas tropas nipónicas, sendo ali feitos prisioneiros e levados para um campo de detenção, sem contudo abandonarem a Judy, que esconderam dos seus captores no meio de sacos de arroz, acabando todos no Campo de Prisioneiros de Gloegoder em Medan, na Indonésia.
Naquele Campo de Detenção, a presença da cadela foi deveras importante para a salvaguarda dos prisioneiros, porque alertava-os para a presença de animais selvagens ou venenosos, capazes de os vitimarem, ladrando para escorpiões, serpentes, varanos (komodos), tigres e crocodilos, conseguindo em certa ocasião afoguentar um destes répteis aquáticos. Para além dessa azáfama proveitosa, a Judy ainda distraía os guardas japoneses, rosnando-lhes quando intentavam espancar os prisioneiros, livrando-os assim de grandes surras mas não se livrando de apanhar com os canos das espingardas dos carcereiros japoneses, que a detestavam, sendo correspondidos por igual sentimento por parte da Judy. Com a cadela em risco de ser abatida, Frank, aproveitando a borracheira do Comandante do Campo, que havia bebido demasiado “sakê”, conseguiu que este assinasse os papéis em como a cadela era uma prisioneira de guerra, tornando-se a Judy no prisioneiro nº POW81.A, o que lhe salvou a vida, sendo caso único nos anais da guerra até aos dias de hoje. Ainda voltariam a ser prisioneiros dos japoneses antes do término do conflito, mas conseguiriam sobreviver-lhe.
De volta à ” Velha Albion”, onde foi recebida com honras e fanfarra, a Judy viria a ser condecorada com a Medalha Dickin (a Victória Cross destinada aos animais) em Maio de 1946, pela excelência dos serviços prestados em prol dos militares a quem tantas vezes valeu e livrou da morte, sendo os seus feitos noticiados e admirados por toda a parte.
Morreu em Fevereiro de 1950, já lá vão 65 anos e 1 mês, com a bonita idade de 13 anos, vítima de cancro, sendo sepultada por Frank Williams com um casaco da RAF, mandado fazer especialmente para esse efeito. Ficaram célebres as palavras de Frank quando se referia à Judy: “ Tudo o que eu tinha a fazer era olhar para ela e para aqueles olhos vermelhos cansados, perguntando-me o que lhe sucederia se eu morresse?”. Se há que exaltar a qualidade da cadela como moral da história, há também que destacar o amor que o homem da RAF lhe tinha, sentimento indispensável ao mais elementar adestramento. Como é sabido (talvez alguns não saibam), na origem do Pointer está o Perdigueiro Português, o mesmo que circula pelas nossas estradas emparedado, dentro de boxes exíguas e em atrelados desconfortáveis e impróprios. Há quem diga que para tudo é preciso ter sorte e se assim é, há cães com um azar tremendo, porque nasceram no lugar errado e entre gente que os desconsidera, situação que nos desencanta e contra a qual nos insurgimos. Estamos convencidos que haverá milhares de “Judys” em Portugal mas não temos a certeza de haver aqui muitos Frank Williams. E porque a mudança começa em cada um de nós, para isso escrevemos e não nos calamos. 

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