quinta-feira, 5 de março de 2015

CÃES DE GUERRA: 100 ANOS SEM SOLUÇÃO

O último cão de guarda que tive e do qual ainda sinto uma saudade imensa, foi um Rottweiler chamado Roger, alcunhado de “Sargento” pelos meus alunos de então, um amigo incondicional e um valente pouco visto, que juntava à sua prontidão uma sobriedade extraordinária, como se houvesse nascido para a função e vindo ao mundo para me servir. Felizmente sobrevivi-lhe, porque doutro modo, o meu desaparecimento poderia obrigar à sua precoce eliminação, já que era cão de um só dono, sombra da minha silhueta e cumprimento da minha vontade, meu sétimo sentido e parte inseparável de mim, não tanto pelo que lhe ensinei mas porque nasceu assim. Ainda sonho com ele e ao acordar, sou surpreendido por uma lágrima sorrateira a escorrer-me pela cara. Não quero e jamais terei outro cão igual, porque o tempo me ultrapassa e há cães que não voltam mais. Presto-lhe homenagem ao ver as fotos dos cães de guerra no Afeganistão, também eles valentes e infelizmente condenados a um final inglório, separados dos seus tratadores, abatidos covardemente e sem direito ao merecido toque de silêncio.
Oficialmente, mais coisa menos coisa, se considerarmos o ano em que se iniciou a I Guerra Mundial (1914), há 100 anos que temos cães de guerra, que seleccionamos e treinamos cães para esse fim, apesar de hoje quase todos os exércitos terem também cães de terapia na sua retaguarda, nas suas bases e hospitais, amigos que se prestam ao equilíbrio dos soldados, que os auxiliam na convalescença e que os ajudam a vencer o stress pós-traumático, valendo eventualmente às populações. Para além destes, dos guerreiros e dos terapeutas, outros há que executam diferentes tarefas, que vão desde o policiamento interno e a detecção de explosivos até ao resgate de soldados feridos. No total, o seu número ascende a vários milhares e dele fazem parte animais com pedigree e outros sem raça definida mas todos convenientemente adestrados e aprovados para aquelas missões, vindo alguns a ser condecorados pelo excepcional mérito das suas prestações, conforme vamos tendo notícia.
Naquele cenário de guerra, a exemplo do que acontece entre os soldados humanos, os vínculos afectivos entre cães e tratadores tornam-se profundos, por força do destino comum e da necessidade de sobrevivência, protegendo-se mutuamente para que regressem ilesos e dependendo uns dos outros para o sucesso nas suas missões, o que torna únicas e excelentes, nalguns casos surpreendentes, aquelas relações binomiais.
E se aos homens não é dado descanso, igual sorte têm os cães, porque partem juntos para o atear da fogueira e são vítimas de ataque quando acantonados. Evoluem invariavelmente debaixo de fogo, aguentam as explosões ao seu redor, sujeitam-se a toda a sorte de armadilhas e emboscadas, suportam as amplitudes térmicas (que no Afeganistão não são para brincadeiras) e à rudez dos solos, num ecossistema onde dificilmente sobreviveriam sozinhos. Alguns deles terão a morte como certa e outros acabarão amputados ou feridos.
Enquanto durar a comissão dos seus tratadores naquelas paragens, farão centos de patrulhas, alertarão para vários perigos, identificarão, perseguirão, capturarão e guardarão inimigos, capitanearão colunas, servirão de batedores, detectarão explosivos, levarão socorro e resgatarão camaradas de armas, não raramente debaixo de fogo e perante inimigos acoitados, tantos nas aldeias quanto nas montanhas, a qualquer hora do dia ou da noite, sendo transportados por diversos meios. Depois de tanta abnegação, valentia, luta, risco e stress, ao regressarem a casa, o que os espera?
Os menos bélicos poderão vir a ser adoptados e a esmagadora maioria dos valentes será condenada à injecção letal, independentemente do valor demonstrado em combate ou das honrarias de que foram alvo, porque ficarão privados dos seus tratadores, a guerra deixou-lhes marcas, a sua adopção torna-se difícil e a sua reeducação incerta, demorada e dispendiosa, preço que ninguém quer pagar e que os sentencia ao corredor da morte, agora abatidos por mãos amigas, quando não deram tréguas aos inimigos, fim inglório para quem salvou tantas vidas e que merecia outro desfecho. Serão “drones”? Até à presente data já foram abatidos milhares destes cães e muitos mais se seguirão, alimentando a revolta daqueles que os conheceram, com eles lutaram lado a lado e que elevam as suas vozes dos dois lados do Atlântico.
Nos Estados Unidos cresce um movimento de veteranos que reclama pela adopção dos seus companheiros de campanha e que tem vindo a alertar a opinião pública para este crime hediondo, que leva mais de 100 anos, já fez largos milhares de vítimas e continuará a fazê-lo enquanto não houver outra solução à vista. E como de nada valem as honrarias perante a “morte santa”, a solução que nos afigura passa pela dispensa dos cães para esse fim, por outras formas de fazer a guerra que os torne obsoletos e dispensáveis, como já aconteceu com os cavalos. Como poderemos falar dos direitos do animal, se pomos alguns deles a morder e depois abatemo-los por causa disso?
Não sejamos hipócritas, os cães vão para a guerra porque são uma opção económica mais viável e vantajosa do que outras, há muitos, morrem sem dar pio e não reclamam por aposentadoria. Quando chegará o dia em que deixarão de ser recrutados para guerrear? Cem anos não bastam? Atendendo ao tempo que demorou a abolição da escravatura, parece que não será para já!

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