O último cão de guarda que tive e do qual ainda sinto uma saudade
imensa, foi um Rottweiler chamado Roger, alcunhado de “Sargento” pelos meus
alunos de então, um amigo incondicional e um valente pouco visto, que juntava à
sua prontidão uma sobriedade extraordinária, como se houvesse nascido para a
função e vindo ao mundo para me servir. Felizmente sobrevivi-lhe, porque doutro
modo, o meu desaparecimento poderia obrigar à sua precoce eliminação, já que
era cão de um só dono, sombra da minha silhueta e cumprimento da minha vontade,
meu sétimo sentido e parte inseparável de mim, não tanto pelo que lhe ensinei
mas porque nasceu assim. Ainda sonho com ele e ao acordar, sou surpreendido por
uma lágrima sorrateira a escorrer-me pela cara. Não quero e jamais terei outro
cão igual, porque o tempo me ultrapassa e há cães que não voltam mais.
Presto-lhe homenagem ao ver as fotos dos cães de guerra no Afeganistão, também
eles valentes e infelizmente condenados a um final inglório, separados dos seus
tratadores, abatidos covardemente e sem direito ao merecido toque de silêncio.
Oficialmente, mais coisa menos coisa, se considerarmos o ano em que se
iniciou a I Guerra Mundial (1914), há 100 anos que temos cães de guerra, que
seleccionamos e treinamos cães para esse fim, apesar de hoje quase todos os
exércitos terem também cães de terapia na sua retaguarda, nas suas bases e
hospitais, amigos que se prestam ao equilíbrio dos soldados, que os auxiliam na
convalescença e que os ajudam a vencer o stress pós-traumático, valendo
eventualmente às populações. Para além destes, dos guerreiros e dos terapeutas,
outros há que executam diferentes tarefas, que vão desde o policiamento interno
e a detecção de explosivos até ao resgate de soldados feridos. No total, o seu
número ascende a vários milhares e dele fazem parte animais com pedigree e
outros sem raça definida mas todos convenientemente adestrados e aprovados para
aquelas missões, vindo alguns a ser condecorados pelo excepcional mérito das
suas prestações, conforme vamos tendo notícia.
Naquele cenário de guerra, a exemplo do que acontece entre os soldados
humanos, os vínculos afectivos entre cães e tratadores tornam-se profundos, por
força do destino comum e da necessidade de sobrevivência, protegendo-se
mutuamente para que regressem ilesos e dependendo uns dos outros para o sucesso
nas suas missões, o que torna únicas e excelentes, nalguns casos
surpreendentes, aquelas relações binomiais.
E se aos homens não é dado descanso, igual sorte têm os cães, porque
partem juntos para o atear da fogueira e são vítimas de ataque quando
acantonados. Evoluem invariavelmente debaixo de fogo, aguentam as explosões ao
seu redor, sujeitam-se a toda a sorte de armadilhas e emboscadas, suportam as
amplitudes térmicas (que no Afeganistão não são para brincadeiras) e à rudez
dos solos, num ecossistema onde dificilmente sobreviveriam sozinhos. Alguns
deles terão a morte como certa e outros acabarão amputados ou feridos.
Enquanto durar a comissão dos seus tratadores naquelas paragens, farão
centos de patrulhas, alertarão para vários perigos, identificarão, perseguirão,
capturarão e guardarão inimigos, capitanearão colunas, servirão de batedores,
detectarão explosivos, levarão socorro e resgatarão camaradas de armas, não
raramente debaixo de fogo e perante inimigos acoitados, tantos nas aldeias
quanto nas montanhas, a qualquer hora do dia ou da noite, sendo transportados
por diversos meios. Depois de tanta abnegação, valentia, luta, risco e stress,
ao regressarem a casa, o que os espera?
Os menos bélicos poderão vir a ser adoptados e a esmagadora maioria dos
valentes será condenada à injecção letal, independentemente do valor
demonstrado em combate ou das honrarias de que foram alvo, porque ficarão
privados dos seus tratadores, a guerra deixou-lhes marcas, a sua adopção
torna-se difícil e a sua reeducação incerta, demorada e dispendiosa, preço que
ninguém quer pagar e que os sentencia ao corredor da morte, agora abatidos por
mãos amigas, quando não deram tréguas aos inimigos, fim inglório para quem
salvou tantas vidas e que merecia outro desfecho. Serão “drones”? Até à
presente data já foram abatidos milhares destes cães e muitos mais se seguirão,
alimentando a revolta daqueles que os conheceram, com eles lutaram lado a lado
e que elevam as suas vozes dos dois lados do Atlântico.
Nos Estados Unidos cresce um movimento de veteranos que reclama pela
adopção dos seus companheiros de campanha e que tem vindo a alertar a opinião
pública para este crime hediondo, que leva mais de 100 anos, já fez largos
milhares de vítimas e continuará a fazê-lo enquanto não houver outra solução à
vista. E como de nada valem as honrarias perante a “morte santa”, a solução que
nos afigura passa pela dispensa dos cães para esse fim, por outras formas de
fazer a guerra que os torne obsoletos e dispensáveis, como já aconteceu com os
cavalos. Como poderemos falar dos direitos do animal, se pomos alguns deles a
morder e depois abatemo-los por causa disso?
Não
sejamos hipócritas, os cães vão para a guerra porque são uma opção económica
mais viável e vantajosa do que outras, há muitos, morrem sem dar pio e não
reclamam por aposentadoria. Quando chegará o dia em que deixarão de ser
recrutados para guerrear? Cem anos não bastam? Atendendo ao tempo que demorou a
abolição da escravatura, parece que não será para já!
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