Recebemos de um nosso leitor o seguinte email: “Caros Srs. Quero antes
de mais felicitá-los pelo excelente blogue… Tenho uma cadela Pastor Alemã (Lobeira)
com dois anos de idade que morde a cauda, adquiri-a com 4 meses de idade já com
esse trauma. Foi-me dito pelo criador que tal comportamento passaria com o
adestramento e maturidade da cadela, mas tal não se verificou… Noto que a
cadela fica mais excitada, começando a perseguir a cauda, quando está presa, e
vê alguém estranho ou outros animais na minha habitação/quintal. Após leitura
atenta sobre o vosso tópico verifiquei que os Srs. Têm mais informação sobre o
mesmo, informação essa, que agradecia se ma pudessem disponibilizar… Queria
resolver o problema da Mika para a própria não se prejudicar e pelo transtorno
que causa vê-la naquela aflição. Queria também saber se tal comportamento se
transmite geneticamente, caso um dia pensasse em cruzá-la. Fico a aguardar
notícias e conselhos, muito obrigado! No caso da minha cadela, verifico o
seguinte: boas dimensões do canil (15m2); espaço envolvente grande, meio
hectare; boa higiene do canil; boa higiene do animal em questão; boa
alimentação e bom equilíbrio de tempo confinamento/liberdade. Contudo, as
marchas diárias nem sempre são conseguidas… Apesar do cansaço físico dos
treinos, melhorou mas não por completo. Ficava mais relaxada, mas se exposta
aos factores acima descritos ateimava no comportamento (embora pare à ordem
verbal de “não”). PS: Junto envio o seu pedigree em anexo”.
Como nãos somos mágicos e não temos uma cartola para tirar de lá um
coelho, também porque não somos milagreiros e chegados às artes do oculto,
pedimos ao proprietário desta cadela que nos respondesse a um questionário de
sensivelmente 40 perguntas, para melhor conhecermos o animal, o seu histórico,
o particular da sua instalação e o seu dono, factores importantíssimos para a
descoberta das possíveis causas, se ambientais ou genéticas e para a diagnose
objectiva do problema visando a sua solução. Pedimos ao proprietário da “Mika”
que nos autorizasse a publicação da sua resposta, ao que anuiu prontamente para
bem doutros interessados e com o mesmo problema. Graças à descrição do
problema, às respostas que nos foram enviadas e ao estudo da genealogia desta
pastora (pelo pedigree que nos foi adiantado), afirmamos tratar-se de uma
Pastora Alemã Lobeira, cinzenta de predominância, produto de quadro aberto
(resultante do beneficiamento de diversas variedades cromáticas), descendente
de cães excepcionalmente grandes e alguns testados no trabalho, meia-linha, com
boa cabeça e implantação de orelhas, de ossatura média, com 60cm de altura e
28kg de peso (o que denuncia um deplorável acompanhamento nos ciclos infantis),
com um quociente de envergadura de 2.14, pernalta, cuja curva de crescimento
obedeceu à linha estética actualmente em vigor (teve o 1º cio aos 8 meses e
pouco cresceu a partir daí), saudável, atleta e sem maiores entraves físicos.
De carácter submisso, afectuosa, cúmplice, activa, carente
emocionalmente (pede festas amiúde), ansiosa, instável, socialmente
desenraizada, com excelentes impulsos herdados ao alimento, movimento e à luta,
mediana de capacidade de aprendizagem, competitiva, possivelmente pouco
aproveitada, de forte sentimento gregário, com necessidades de evasão e
excursão, de fácil travamento, parcialmente treinada e que acusa de
sobremaneira a inibição. O seu dono tem alguma experiência na cinotecnia
enquanto tratador (rudimentar), é tolerante e um apaixonado pela raça (mais
cardíaco do que conhecedor), faltando-lhe conhecimento objectivo da sua
história, mecânica, psicologia e mais-valias cognitivas, ignorando em simultâneo
alguns princípios básicos relativos à canicultura no geral, nomeadamente os concernentes
à transmissão genética, à selecção de cães, ao seu acompanhamento,
desenvolvimento e particular instalador, já que não foi alvo de formação nessas
áreas e assumiu como absolutos alguns pressupostos generalizados que obstam a
compreensão de cada cão em particular, resultando disso a impotência para valer
aos achaques da cadela, que não sendo da sua responsabilidade, tendem a
perpetuar-se e agravar-se pela sua inacção. Como pessoa sensível que é e não se
conformando com a situação, acabou por nos pedir ajuda, o que é de todo
louvável.
A história da “Mika” divide-se em quatro momentos que correspondem em
número ao particular da sua instalação. Ao que consta, foi criada no Norte do
País, vindo depois a ser entregue ao proprietário do seu pai, possivelmente
como compensação económica por algum trato anteriormente havido, onde
permaneceu até aos 4 meses dentro dum canil, ocasião em que já manifestava o
mau hábito de morder a cauda, pormenor que o seu proprietário de então disse
ser transitório e ultrapassável pelo crescimento e adestramento da cadela,
explicação que satisfez o nosso leitor e não impediu que a adquirisse. O animal
veio depois a ser instalado num canil na casa dos pais do seu actual
proprietário, que a remeteu para um canil, onde dividia o habitáculo com outro
Pastor Alemão Lobeiro, que segundo o que nos adiantaram era sóbrio de carácter.
E como a vida é feita de mudança e não sobra aos cães outro remédio do que
marcharem atrás dos donos, hoje encontra-se no Centro do País onde o seu dono
buscou habitação, dentro de um canil com outro cão, agora um Pastor
preto-afogueado, com 1 ano de idade, resultante do beneficiamento entre um pai
preto-afogueado e mãe dourada, brincalhão, alegre e imaturo, que não interfere
nas acções da cadela, como seria de esperar, atendendo à sua idade, despreparo
e tardio alcance da sua maturidade emocional. A opção pelo alojamento
compulsivo no canil ficou a dever-se à compreensão que o actual dono tem dos
cães e também para que estes não lhe sujem a casa e lhe causem alguns transtornos
familiares.
A “Mika” morde a cauda (que
já” lembra um pau de vassoura”) quando vê alguém estranho ou outros animais nas
redondezas da casa ou do canil. Antes de partir para o disparate geme e nunca se
joga contra as grades ou morde-as, sintomas por si mesmo elucidativos acerca
das causas do desvio e do perfil psicológico do animal, considerando a “voz que
utiliza e o modo que usa no despoletar daquelas acções. O seu dono deseja
usá-la para reprodução mas teme que o problema seja de origem genética, pelo
que neste momento não sabe o que fazer. Será ele de origem hereditária?
É evidente que não! Se todos os cães de trabalho activos, competitivos,
curiosos e ávidos de excursão, com forte sentimento gregário e óptimos impulsos
ao alimento, movimento e à luta (qualidades que se procuram) mordessem amiúde
as caudas, certamente abandonariam as suas tarefas pela exaustão, perdendo
assim qualquer préstimo. Pela experiência que temos e por aquilo que nos foi
dito, a causa do problema reside na mudança de mão a que a cadela se viu
sujeita, quando foi arrancada de quem lhe deu o “imprinting” e entregue a quem
a enjaulou, que por certo não morria de amores por ela (acreditamos que tenha
sido vendida a baixo preço), porque doutro modo jamais se desfaria dela. A
alteração arbitrária do modo de vida do animal e a alteração social a que
obrigou são as causas objectivas do problema, sendo por isso de origem ambiental e
não genética, o que equivale a dizer que a alteração de rotinas induzirá à
solução do problema, alteração que deverá primeiro considerar o indivíduo e
depois o particular da raça a que pertence.
Para aqueles que andam mais esquecidos ou que ignoram qual o significado
das diferentes “vozes” dos cães, adianta-se que o “gemer” é sempre uma súplica
e um pedido de ajuda, que é exactamente o que a “Mika” solta antes de se auto
mutilar. Torna-se evidente que se sente infeliz dentro do canil, que o
“entende” como um lugar de desterro face ao seu histórico anterior, um entrave
para a sua necessidade de coabitação e que lhe impede uma relação mais próxima
com o dono, já que junto dele não envereda pelo disparate. Antes doutras
considerações importa dizer que o canil mais serve aos donos do que aos cães e
que são raros os que o preferem em detrimento da companhia dos donos, porque
são seres manifestamente sociais e que são seleccionados e criados para a
parceria. A talhe de confidência adianto que já conheci um cão assim, por sinal
um Pastor Alemão, que abominava estar num apartamento e que adorava ser
encerrado num canil, que por ironia do destino e falta de outros, se viu
obrigado a ser estrela da TV, manifestando em simultâneo um conjunto de várias
taras.
O problema da “Mika”, como já atrás dissemos, é reflexo dum
encarceramento precoce e arbitrário, infelizmente muito comum entre nós, que
desrespeita as necessidades sociais dos cachorros em função da conveniência dos
seus proprietários, também desconhecedores da relação existente entre a idade
dos seus pupilos e o tipo de alojamento adequado, que sempre deverá considerar
as diferentes maturidades que atravessam. O facto do dono não ter até ao
momento disponibilidade para a passear diariamente, mais agrava o problema pelo
aumento da ansiedade que provoca (todos os cães saudáveis deverão passear uma
légua diária, em marcha e por diferentes ecossistemas, visando a sua saúde,
desenvolvimento, robustecimento, parceria, adequação, aumento cognitivo e
bem-estar).
A uma cadela submissa com este problema, que se auto mutila por ansiedade,
é contraproducente instalar-lhe comandos inibitórios porque mais agravarão esse
comportamento anómalo, por força da rejeição que aumentará a sua frequência e
intensidade. Nestes casos os comandos inibitórios deverão dar lugar a
exercícios que reforcem a cumplicidade com os donos, tirados a partir da
supercompensação (reforço positivo), para devolverem aos animais a serenidade e
confiança que lhes falta, já que psicologicamente encontram-se debilitados.
Juntar a inibição ao desencanto pelo alojamento e à revolta pelo isolamento é,
como se diz na gíria, “pior que bater no ceguinho”. Mais do que promover
estafas aos cães, na esperança de que quebrados não abraçarão o desvio, o que
não é verdade e não resulta, importa diminuir-lhes a intensidade dos exercícios
e promover a cumplicidade que se fundamenta na união binomial, pois só ela será
capaz de devolver aos cães a confiança e o bem-estar em débito. Primeiro
importa recuperar (curar) a cadela, “pô-la em paz com o dono” e só depois se
deverá pensar no adestramento, que a acontecer, deverá ser feito com todas as
cautelas para não dar azo ao ressurgimento do desvio e mau hábito.
O que o nosso leitor deveria ter feito antes de pensar em treinar a
cadela e ter seguido o conselho de quem lha vendeu (sem dúvida um “expert”),
relegando-a mais uma vez para dentro dum canil, era serená-la, coabitar com ela
e mantê-la sempre a seu lado. Segundo o que nos fez saber, o canil onde cadela
se encontra alojada com o outro cão, é rodeado de um terreno vedado com meio
hectare de área e se assim é, não percebemos do que está à espera para lhe
abrir a porta do canil e soltá-la, para que a liberdade de movimentos obste à
tortura induzida pelo confinamento, sendo este o primeiro passo para a
recuperação do animal. Ao fazê-lo verá melhorias imediatas, porque a cadela ao
invés de morder a cauda quando avista outros cães, persegui-los-á ao longo da
cerca, sentindo-se confiante e menos vulnerável pelo recurso à defesa do
território.
Queremos lembrar ao dono da “Mika” que a aquisição de um cão, devido às
alterações a que obriga, deverá ser um projecto familiar e quando a opção não é
unânime, será o cão que irá pagar!
Assim, as rápidas melhoras da cadela e a supressão do vício acontecerão
quando conseguir levá-la para dentro de casa, ensinando-lhe regras e hábitos de
higiene, porque quando ela está ao seu lado ou vai no carro consigo não morde a
cauda e quando o faz está dar-lhe um recado: “tira-me daqui e leva-me contigo!”
Não é por acaso que o fenómeno é mais frequente nos cães alojados em canis e
que raramente sucede aos que vivem dentro de apartamentos, muito embora possam
ser acometidos de igual toleima, se os donos persistirem em não os levar à rua,
erro em que o dono da “Mika” também incorre e que agrava o problema, quando a
isenta dos passeios diários. Ainda hoje vivo com um cão dentro de casa e não me
queixo, porque a suja menos do que as pessoas que nela vivem, já que tenho o
cuidado diário de escová-lo e passeá-lo. Se por acaso tiver dúvidas quanto à
limpeza da cadela, prontificamo-nos desde já para o esclarecer, até porque
outras dificuldades não terá, visto que esta lobeira gosta de ser escovada.
A permanência ou coabitação da cadela dentro de casa tanto poderá ser
provisória quanto definitiva, muito embora optássemos claramente pela segunda
opção, porque entendemos que o lugar do Pastor Alemão é ao lado do seu dono,
considerando o seu particular social, territorialidade e melhor aproveitamento
das suas características, já que de mercenário e arruaceiro tem pouco e vive em
função do dono, ao ponto de dar a vida por ele. Considerando a manifesta
resistência familiar a tal terapia, não havendo mudança de opinião nos seus
opositores, ela terá que ser necessariamente provisória, o que de certa forma
poderá convencer, atendendo à necessidade de recuperação da cadela, os membros
do agregado familiar do dono, que tudo leva a crer serem pessoas sensíveis.
Contudo, essa permanência provisória dentro de casa só deverá cessar passados
90 dias, se nesse período de tempo a cadela não voltar ao disparate, podendo
eventualmente ser encurtado pelo desejo do animal, que farto das quatro paredes
domésticas poderá ambicionar outros territórios, o que não é raro acontecer e
até é desejável. Na ausência dos donos poderá ficar junto à sua habitação em
liberdade, o que contribuirá de sobremaneira para o seu policiamento e defesa,
facilitando em simultâneo a sua transferência de casa para a rua.,
transferência que deverá ser faseada: de casa para o quintal e deste para o
terreno vedado onde se encontra o canil, que sempre deverá ter a porta aberta.
É possível e geralmente acontece, que passados 90 dias toda a família já se
tenha costumado ao animal e não veja com bons olhos a sua separação,
considerando a parceria e segurança que o animal tem para oferecer.
Se porventura a permanência da cadela dentro de casa estiver fora de
causa, sobra-nos o canil de porta aberta e a permanência do animal em liberdade
pelo meio hectare vedado, terapia também válida, ainda que mais morosa e
sujeita a eventuais retrocessos.
Independentemente do animal ficar alojado em casa ou instalado no terreno, a
sua excursão diária torna-se imperativa tanto para o seu bem-estar como para a
melhor aceitação do seu refúgio, onde se sentirá mais seguro perante a surpresa
e novidade dos passeios. Como o morder da cauda é de origem ambiental, não há
qualquer inconveniente em cruzar a “Mika”, que deverá ser beneficiada por um
cão com um quociente de envergadura de 1.7, doutra variedade cromática, sem
nenhum grau de parentesco com ela, de boa morfologia e aprumos, com forte
impulso ao conhecimento e seguro de carácter, nunca mais alto do que ela 4cm,
para que a futura prole seja de qualidade superior à sua matriarca, excessivamente
leve, pernalta, ansiosa e instintiva. Se ainda restarem dúvidas e é natural que as haja, mantemo-nos como sempre à disposição. Há que dar os parabéns ao dono da
“Mika” pela sua aquisição, porque cada cão é um aprendizado e todos contribuem
para o seu conhecimento geral. Se eventualmente as soluções indicadas não sutirem efeito, ainda nos sobra como solução o beneficiamento da cadela, porque o instinto maternal, ao ser imperativo e absoluto, tende a levar de vencida a maioria dos traumas anteriores à prenhez. Por causa deste particular, sempre será mais fácil eliminar a automutilação numa fêmea do que num macho, sendo a castração das cadelas, se for caso disso, mais rica em taras.