Após a insistência de vários leitores decidimos voltar à temática dos
Pastores Alemães, muito embora o façamos com algum cuidado e num convite à
reflexão, pois não queremos alimentar polémicas ou estabelecer a confusão em
quem ainda não tem o know-how ou não possui a clarividência para enveredar
pelos “mistérios” da raça, quiçá por lhe faltar tempo, vontade, isenção, estudo,
erudição e experiência. Vamos aqui tratar dos beneficiamentos dentro do Cão de
Pastor Alemão, os proscritos e os recomendados pela SV (Verein für Deutsche
Schäferhunde), para tentar explicar a perca de qualidade e de popularidade
desta excelente raça de trabalho, hoje em desuso, cada vez mais substituída,
quase ultrapassada e entregue a um grupo de apaixonados, que tal qual frades
conventuais, respeita a regra e espera a morte, neste caso a dos cães.
O Pastor Alemão teve como pai o sonho
de um homem e como mãe um grupo de cães pastores, foram seus padrinhos a
evolução das espécies e a eugenia, vindo a transformar-se num formidável cão de
trabalho, que ao longo de seis décadas, praticamente não teve rival ou
concorrência. Nos últimos cinquenta anos tem vindo a definhar e o seu presente
cada vez menos se confunde com o seu passado glorioso, como animal a quem
roubaram espaço, liberdade e mantimento, resultando disso uma prole fraca, problemática,
saturada e de menor préstimo. O que terá contribuído para este desenlace?
Basicamente as sucessivas políticas de selecção praticadas a partir de
1933 e que se foram agravando ao longo séc. XX, castradoras da multivariedade
presente na raça, responsável pelo seu bom-nome e superior prestação, umas
decretadas pela “SV” e outras dela decorrentes e postas em prática pela maioria
dos seus criadores, que apostados somente na variedade dominante – a
preto-afogueada (no Brasil capa-preta), desprezaram e tornaram recessivas aquelas
que contribuíram para o a sua formação e enaltecimento, ao ponto de quase
desaparecerem. Políticas de génese nazi, de manifesta eugenia negativa e próximas
da clonagem induzida sem objectivos terapêuticos.
A adopção dessas políticas selectivas foi em muita ajudada pela perca de
atribuições militares caninas no Ocidente, passando a raça a mais valer pela
sua diferencia estética e entregue maioritariamente a criadores com essa preocupação.
E se há males que vêm por bem, a abusiva “Cortina de Ferro”, ao provocar o
isolamento do Leste, acabou por valer ao Pastor Alemão, porque ali se
conservaram até aos dias hoje, os cães lobeiros, negros e outros que se iam
extinguindo no Ocidente e que hoje são muito procurados. Via
Áustria, pelos laços histórico-culturais estabelecidos pelo outrora “Império
Austro-Húngaro”, que estabelecia a ponte entre o Ocidente e o Leste, os cães da
Europa Central chegaram até nós. A demanda pela qualidade, acabou
por provocar o advento dos cães checos para a perpetuação dos cães de trabalho,
superiores do ponto vista biomecânico e sensorial mas estruturalmente mais
deficitários, características que não escondem o isolamento geoestratégico e a
saturação dele resultante, que obrigou alguns criadores à hibridação e à
criação do Lobo Checo (Československý
vlčák), híbrido com uma louvável esperança de vida.
A evolução dos cães de cor uniforme para bicolores contou com cinco
factores cromáticos: o azul (cinzento), o branco, o fígado, o negro e o
vermelho, variedades cromáticas que ainda se vêem uniformes e continuam presentes
no actual manto dos cães tornados dominantes na raça. A excomunhão do branco,
que nunca foi absoluta, foi fatal para o retorno dos cães vermelhos, porque na
ausência de outra cor uniforme, dificilmente ressurgiriam. E dizemos que o
desprezo pelos pastores brancos nunca foi absoluto porque até hoje, ainda que
de modo dissimulado, eles têm sido usados para a obtenção de exemplares
totalmente cinzentos, tanto em França como em Inglaterra e por onde o branco
nunca se extinguiu. A permuta entre o branco ancestral e o moderno
preto-afogueado continua a ser usada por alguns criadores de ambas variedades,
tanto para actualizar e aproximar os brancos como para devolver aos
preto-afogueados a rusticidade e o equilíbrio que há muito perderam, estratégia
acertada que nenhum deles divulga.
A diversidade cromática presente nos
Pastores Alemães remonta à sua fase embrionária e testemunha a presença de cães
diferentes que alicerçaram a sua construção, todos eles pastores e portadores
de mais-valias. Assim, os azuis transmitiram-lhes excelente máquina sensorial e
rusticidade, os brancos dotaram-nos de ascetismo e incorrupção, os cor de
fígado estenderam-lhes instinto de presa e parceria, os negros revestiram-nos
de segurança e versatilidade e os vermelhos acrescentaram-lhes agressividade e
valentia. Ninguém duvida que a opção pelo preto-afogueado foi a escolha mais
acertada, o que se põe em causa é o seu afastamento relativo às variedades
originais que lhe transmitiram as mais-valias. A criação isolada do
preto-afogueado, para além dos malefícios da endogamia, tem originado Pastores
Alemães menos aptos e por isso mesmo menos procurados. Só a multivariedade
original, segundo os critérios de então, poderá valer a raça, pelo que importa
recuar no tempo, corrigir os erros do passado recente e desprezar as decisões
erradas que hoje mais do que nunca a comprometem.
Se condenamos a criação isolada do preto-afogueado, muito mais abominamos
a criação isolada doutra variedade cromática, porque isso seria um retrocesso e
um erro tremendo, que levaria à criação de subvariedades menos interessantes e pior
equipadas que a dominante actual, distanciadas de igual modo dos pressupostos
selectivos originais e carregadas de indesejável consanguinidade. Para além dos
aspectos relativos ao carácter, o beneficiamento repetitivo de duas variedades
cromáticas diferentes, quando isento da contribuição das restantes, pode
produzir alterações morfológicas capazes de alterar o comportamento expectável
da raça. A supremacia funcional das linhas de trabalho em relação às estéticas
tem resultado dos beneficiamentos entre 3 variedades cromáticas:
preto-afogueado, lobeiro e negro. A acentuada melhoria funcional das linhas de
exposição, ocorrida recentemente, aconteceu pela contribuição do lobeiro, que
carregando outra variedade cromática para além da sua, acabou por beneficiar
pela multivariedade a saturadíssima preto-afogueada, aumentando-lhe a autonomia
e o préstimo.
Analisando amiúde o beneficiamento lobeiro-negro, uma constante ao longo
de décadas nos cães de trabalho, responsável por exemplares de alto gabarito
laboral, cedo se vislumbram alterações estruturais tangentes ao nanismo e ao
pernaltismo, por vezes reforçadas com desaprumos estruturais de vária ordem, o
que tem merecido dos criadores de exposição considerações do tipo: “no trabalho
vale tudo” ou “qualquer um serve para cão de trabalho”. Perseguindo o sonho de
juntar o belo ao funcional, os criadores de índole laboral têm vindo a
beneficiar os seus exemplares com outros de linha meramente estética,
estabelecendo a confusão entre as linhas, ao ponto de não se saber quem é quem,
solução muito em voga e deveras apreciada por todos, apesar dessa salada não
beneficiar uns e outros. A variedade preto-afogueada a usar nestes casos deverá
ser robusta, exemplar de aprumos, não ultrapassar a altura máxima indicada pelo
estalão e ser portadora de um bom crânio e ossatura, porque doutro modo o
beneficiamento será desastroso e mais agravará as menos valias presentes nas
outras variedades cromáticas.
Ainda que o estalão permita beneficiamentos com 10cm de diferença entre
os progenitores, é de todo conveniente, visando a envergadura desejável, que
essa diferença não ultrapasse os 8cm. A experiência ensinou-nos que os melhores
lobeiros resultam das seguintes construções: 4/8LB+ 3/8PA+1/8NG e 5/8LB+2/8PA+1/8NG, dependo a escolha da
qualidade do lobeiro a beneficiar (se precisar de mais envergadura usa-se a 1ª
construção). Não se coloca aqui a questão da altura, porque a variedade lobeira
é por norma médio-grande e quando o não é, o fenómeno resulta da excessiva
endogamia, de progenitores inadequados ou da herança doutras variedades
cromáticas. Convém dizer, porque há gente que sempre se esquece, que o cão
lobeiro não é um comilão nato, mas um indivíduo que exige riqueza de dietas,
condicionantes que o tornarão maior ou menor.
Nenhuma variedade cromática garantirá
isoladamente, quando oriunda da multivariedade e sujeita à selecção artificial,
os índices laborais de outrora, particularmente quando arredada do trabalho,
sujeita quase em exclusivo ao aprimoramento morfológico e constituída em
variedade dominante. O mais certo é abraçar a estagnação e ficar de costas viradas
para os seus pergaminhos. Nos Pastores Alemães a prova irrefutável reside no
actual preto-afogueado. Todas as raças caninas estritamente alicerçadas numa só
variedade cromática há muito que alcançaram esse estado (estagnação),
comummente associado a insuficiências físicas graves, à novidade de
comportamentos e a outras predisposições. A lufada de ar fresco que o Deutscher
Schäferhund recebeu dos cães de Leste não irá durar por muito mais tempo,
porque bem cedo os seus criadores beneficiaram-nos com os cães ocidentais, por
necessidade de sangue novo, actualização e aprovação, transmitindo-lhes
idênticas maleitas.
O desprezo continuado pelos cães de cor
sólida, uns proscritos e outros tornados recessivos (brancos e negros), tem
sido responsável pela progressiva quebra laboral dos Pastores Alemães,
manifesta numa menor concentração, maior nervosismo, reforço instintivo, menor
curiosidade e dificuldades apreensivas, factores que somados, há que dizê-lo,
apontam para uma inequívoca ausência de identidade, como se o seu genoma
houvesse sido misteriosamente alterado, em algum momento da sua curta história.
Sabem os criadores com mais de 55 anos de idade, outros sabê-lo-ão por relatos,
que o Pastor Alemão se destacava dos demais cães pela excelente capacidade de
aprendizagem, factor ligado ao forte impulso ao conhecimento que sempre o
acompanhou. Hoje há notícia de pastores que fogem e de casa e não voltam, que
abanam por tudo e por nada, que apresentam grandes dificuldades de resolução,
que resistem à parceria e que vacilam diante de desafios precários. Para cães
como estes, há que estender-lhe o contributo das variedades cromáticas sólidas,
cães de “bem com a vida”, animais mais seguros e controláveis, tão prontos para
o despoletar das acções como para a sua cessação.
Muita gente se questiona porque procurámos os pastores vermelhos, quando
foram os negros que nos granjearam reputação, atingimos notoriedade com os
preto-afogueados e sempre fomos adeptos dos lobeiros. Nunca tivemos como
propósito a proliferação de cães vermelhos, apenas nos interessámos por eles
por sabermos da sua existência e raridade, como peça em falta no “puzzle”
relativo aos Pastores Alemães. Depois de adquirirmos o primeiro e de o havermos
beneficiado com cadelas de todas as variedades cromáticas abrigadas no estalão,
trabalho que durou uma década, gradualmente fomos descobrindo como prevaleceu e
quase desapareceu esta variedade, naturalmente associada aos cães brancos e
ultrapassada por eles pela selecção empreendida. E dizemos isto, porque do
beneficiamento entre um branco e um vermelho, raramente sairão filhotes todos
alvos e é mais do que certo que toda a prole saia vermelha, ainda que sem
máscara, variedade que alguns, noutras partes do Globo, sabiamente alcunharam
de “cor de areia”. Sairão maioritariamente alvos se o progenitor branco não for
recessivo em vermelho.
O desaparecimento gradual e compulsivo da variedade vermelha, presente
nos alvores da raça e hoje muito rara, ficou a dever-se aos seguintes factores:
a outra opção de padronização, à preferência inicial pelos lobeiros e negros, à
evolução para os exemplares bicolores, à expulsão dos brancos e também ao facto
da variedade ser recessiva. Retornar aos vermelhos é voltar ao caldeirão
genético do raça, descobrir como foi construída e desvendar os seus mistérios.
Esta variedade, quando comparada com as restantes e criada isoladamente, é por
norma mais silenciosa, segura, aguerrida, fiel, disponível, insubornável e
produz ataques cirúrgicos, características que poderá omitir em parte quando
beneficiada sistematicamente com a lobeira, que a tornará mais autónoma,
subversiva e perigosa, menos controlável e de intenções menos perceptíveis, que
a levarão a carregar sem provocação junto ao dono ou no seu território. Para
além dos factores que atrás mencionámos para o seu desaparecimento,
sobressaíram ainda outros de ordem morfológica, hoje felizmente ultrapassados
pelos pastores actuais. Contudo uma coisa é certa: entre os pastores, os
vermelhos são os que se encontram mais próximos da selecção natural, ligando ao
mesmo tempo a raça a outras mesomorfas. A sua longevidade é um pouco superior à
média encontrada nas outras variedades cromáticas.
E como as conversas são como as
cerejas, vamos agora falar sobre a presença de pêlo crespo nos Pastores
Alemães, facto que muitos ignoram e que nos transporta para a fase embrionária
da raça, onde cães pastores com esse tipo de pelagem foram também usados para a
sua formação, próximos dos exemplares de pêlo comprido, de orelhas mais curtas,
por norma bicolores, rectangulares e um pouco mais baixos, outrora pouco
numerosos e hoje praticamente extintos (o último exemplar que nos passou pelas
mãos foi uma cadela preto-afogueada com farto subpêlo e registada com o nome de
“Karenkal”, numa alusão ao seu local de nascimento: Carenque, nascida na década
de 90 e que não transmitiu o particular da sua pelagem aos seus descendentes).
A presença de remoinhos no peito, no dorso ou nas coxas de alguns Pastores
Alemães, zonas onde a sua pelagem é mais densa, prova essa ascendência e
liga-os directamente a essa ancestralidade, assim como a algumas desprezadas
linhas de trabalho. Tirando o particular da pelagem, estes exemplares são em
tudo iguais aos outros. O retorno a esta subvariedade, notoriamente afável
quando dominante, é possível pelo recurso persistente a pastores com remoinhos,
opção que nos parece gratuita e descartável, porque daí não resultaria qualquer
mais-valia assinalável.
Falta falar sobre os cães cor de fígado
uniformes e bicolores, resultantes da diluição do factor azul presente nalguns
lobeiros e negros, devido ao cruzamento histórico entre estas duas variedades
cromáticas, por cá tratados como “chocolate” e pouco vistos, normalmente de
olhos claros e próximos dos vermelhos e dos azuis. Também não abordámos os cães
azuis uniformes e bicolores (cinzentos), assuntos que abordaremos
oportunamente, porque à conversa já vai longa.
O que importa compreender e memorizar é que nenhuma cor é melhor que
outra, que não há uma só de cor de Pastores Alemães e que todas elas são boas
se os cães forem igualmente bons, conclusão histórica de Stephanitz que os
actuais criadores da raça parecem ignorar e que todas elas contribuíram e
continuam a contribuir para o enaltecimento do Pastor Alemão. Em simultâneo e
por via disto, facilmente se conclui que a criação exclusiva de uma variedade
cromática, ao excluir as outras, atenta contra a sua origem, propósitos,
préstimo, potencial, abrangência e multivariedade, política selectiva que
desconsidera tanto a herança genética como a continuidade da raça, sem dúvida
uma das mais excelentes dentro do panorama canino mundial.
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