sábado, 9 de agosto de 2014

CONVERSAS SOBRE PASTORES ALEMÃES À MESA DO CAFÉ

Após a insistência de vários leitores decidimos voltar à temática dos Pastores Alemães, muito embora o façamos com algum cuidado e num convite à reflexão, pois não queremos alimentar polémicas ou estabelecer a confusão em quem ainda não tem o know-how ou não possui a clarividência para enveredar pelos “mistérios” da raça, quiçá por lhe faltar tempo, vontade, isenção, estudo, erudição e experiência. Vamos aqui tratar dos beneficiamentos dentro do Cão de Pastor Alemão, os proscritos e os recomendados pela SV (Verein für Deutsche Schäferhunde), para tentar explicar a perca de qualidade e de popularidade desta excelente raça de trabalho, hoje em desuso, cada vez mais substituída, quase ultrapassada e entregue a um grupo de apaixonados, que tal qual frades conventuais, respeita a regra e espera a morte, neste caso a dos cães.
O Pastor Alemão teve como pai o sonho de um homem e como mãe um grupo de cães pastores, foram seus padrinhos a evolução das espécies e a eugenia, vindo a transformar-se num formidável cão de trabalho, que ao longo de seis décadas, praticamente não teve rival ou concorrência. Nos últimos cinquenta anos tem vindo a definhar e o seu presente cada vez menos se confunde com o seu passado glorioso, como animal a quem roubaram espaço, liberdade e mantimento, resultando disso uma prole fraca, problemática, saturada e de menor préstimo. O que terá contribuído para este desenlace?
Basicamente as sucessivas políticas de selecção praticadas a partir de 1933 e que se foram agravando ao longo séc. XX, castradoras da multivariedade presente na raça, responsável pelo seu bom-nome e superior prestação, umas decretadas pela “SV” e outras dela decorrentes e postas em prática pela maioria dos seus criadores, que apostados somente na variedade dominante – a preto-afogueada (no Brasil capa-preta), desprezaram e tornaram recessivas aquelas que contribuíram para o a sua formação e enaltecimento, ao ponto de quase desaparecerem. Políticas de génese nazi, de manifesta eugenia negativa e próximas da clonagem induzida sem objectivos terapêuticos.
A adopção dessas políticas selectivas foi em muita ajudada pela perca de atribuições militares caninas no Ocidente, passando a raça a mais valer pela sua diferencia estética e entregue maioritariamente a criadores com essa preocupação. E se há males que vêm por bem, a abusiva “Cortina de Ferro”, ao provocar o isolamento do Leste, acabou por valer ao Pastor Alemão, porque ali se conservaram até aos dias hoje, os cães lobeiros, negros e outros que se iam extinguindo no Ocidente e que hoje são muito procurados. Via Áustria, pelos laços histórico-culturais estabelecidos pelo outrora “Império Austro-Húngaro”, que estabelecia a ponte entre o Ocidente e o Leste, os cães da Europa Central chegaram até nós. A demanda pela qualidade, acabou por provocar o advento dos cães checos para a perpetuação dos cães de trabalho, superiores do ponto vista biomecânico e sensorial mas estruturalmente mais deficitários, características que não escondem o isolamento geoestratégico e a saturação dele resultante, que obrigou alguns criadores à hibridação e à criação do Lobo Checo (Československý vlčák), híbrido com uma louvável esperança de vida.
A evolução dos cães de cor uniforme para bicolores contou com cinco factores cromáticos: o azul (cinzento), o branco, o fígado, o negro e o vermelho, variedades cromáticas que ainda se vêem uniformes e continuam presentes no actual manto dos cães tornados dominantes na raça. A excomunhão do branco, que nunca foi absoluta, foi fatal para o retorno dos cães vermelhos, porque na ausência de outra cor uniforme, dificilmente ressurgiriam. E dizemos que o desprezo pelos pastores brancos nunca foi absoluto porque até hoje, ainda que de modo dissimulado, eles têm sido usados para a obtenção de exemplares totalmente cinzentos, tanto em França como em Inglaterra e por onde o branco nunca se extinguiu. A permuta entre o branco ancestral e o moderno preto-afogueado continua a ser usada por alguns criadores de ambas variedades, tanto para actualizar e aproximar os brancos como para devolver aos preto-afogueados a rusticidade e o equilíbrio que há muito perderam, estratégia acertada que nenhum deles divulga.
A diversidade cromática presente nos Pastores Alemães remonta à sua fase embrionária e testemunha a presença de cães diferentes que alicerçaram a sua construção, todos eles pastores e portadores de mais-valias. Assim, os azuis transmitiram-lhes excelente máquina sensorial e rusticidade, os brancos dotaram-nos de ascetismo e incorrupção, os cor de fígado estenderam-lhes instinto de presa e parceria, os negros revestiram-nos de segurança e versatilidade e os vermelhos acrescentaram-lhes agressividade e valentia. Ninguém duvida que a opção pelo preto-afogueado foi a escolha mais acertada, o que se põe em causa é o seu afastamento relativo às variedades originais que lhe transmitiram as mais-valias. A criação isolada do preto-afogueado, para além dos malefícios da endogamia, tem originado Pastores Alemães menos aptos e por isso mesmo menos procurados. Só a multivariedade original, segundo os critérios de então, poderá valer a raça, pelo que importa recuar no tempo, corrigir os erros do passado recente e desprezar as decisões erradas que hoje mais do que nunca a comprometem.
Se condenamos a criação isolada do preto-afogueado, muito mais abominamos a criação isolada doutra variedade cromática, porque isso seria um retrocesso e um erro tremendo, que levaria à criação de subvariedades menos interessantes e pior equipadas que a dominante actual, distanciadas de igual modo dos pressupostos selectivos originais e carregadas de indesejável consanguinidade. Para além dos aspectos relativos ao carácter, o beneficiamento repetitivo de duas variedades cromáticas diferentes, quando isento da contribuição das restantes, pode produzir alterações morfológicas capazes de alterar o comportamento expectável da raça. A supremacia funcional das linhas de trabalho em relação às estéticas tem resultado dos beneficiamentos entre 3 variedades cromáticas: preto-afogueado, lobeiro e negro. A acentuada melhoria funcional das linhas de exposição, ocorrida recentemente, aconteceu pela contribuição do lobeiro, que carregando outra variedade cromática para além da sua, acabou por beneficiar pela multivariedade a saturadíssima preto-afogueada, aumentando-lhe a autonomia e o préstimo.
Analisando amiúde o beneficiamento lobeiro-negro, uma constante ao longo de décadas nos cães de trabalho, responsável por exemplares de alto gabarito laboral, cedo se vislumbram alterações estruturais tangentes ao nanismo e ao pernaltismo, por vezes reforçadas com desaprumos estruturais de vária ordem, o que tem merecido dos criadores de exposição considerações do tipo: “no trabalho vale tudo” ou “qualquer um serve para cão de trabalho”. Perseguindo o sonho de juntar o belo ao funcional, os criadores de índole laboral têm vindo a beneficiar os seus exemplares com outros de linha meramente estética, estabelecendo a confusão entre as linhas, ao ponto de não se saber quem é quem, solução muito em voga e deveras apreciada por todos, apesar dessa salada não beneficiar uns e outros. A variedade preto-afogueada a usar nestes casos deverá ser robusta, exemplar de aprumos, não ultrapassar a altura máxima indicada pelo estalão e ser portadora de um bom crânio e ossatura, porque doutro modo o beneficiamento será desastroso e mais agravará as menos valias presentes nas outras variedades cromáticas.
Ainda que o estalão permita beneficiamentos com 10cm de diferença entre os progenitores, é de todo conveniente, visando a envergadura desejável, que essa diferença não ultrapasse os 8cm. A experiência ensinou-nos que os melhores lobeiros resultam das seguintes construções: 4/8LB+ 3/8PA+1/8NG e 5/8LB+2/8PA+1/8NG, dependo a escolha da qualidade do lobeiro a beneficiar (se precisar de mais envergadura usa-se a 1ª construção). Não se coloca aqui a questão da altura, porque a variedade lobeira é por norma médio-grande e quando o não é, o fenómeno resulta da excessiva endogamia, de progenitores inadequados ou da herança doutras variedades cromáticas. Convém dizer, porque há gente que sempre se esquece, que o cão lobeiro não é um comilão nato, mas um indivíduo que exige riqueza de dietas, condicionantes que o tornarão maior ou menor.
Nenhuma variedade cromática garantirá isoladamente, quando oriunda da multivariedade e sujeita à selecção artificial, os índices laborais de outrora, particularmente quando arredada do trabalho, sujeita quase em exclusivo ao aprimoramento morfológico e constituída em variedade dominante. O mais certo é abraçar a estagnação e ficar de costas viradas para os seus pergaminhos. Nos Pastores Alemães a prova irrefutável reside no actual preto-afogueado. Todas as raças caninas estritamente alicerçadas numa só variedade cromática há muito que alcançaram esse estado (estagnação), comummente associado a insuficiências físicas graves, à novidade de comportamentos e a outras predisposições. A lufada de ar fresco que o Deutscher Schäferhund recebeu dos cães de Leste não irá durar por muito mais tempo, porque bem cedo os seus criadores beneficiaram-nos com os cães ocidentais, por necessidade de sangue novo, actualização e aprovação, transmitindo-lhes idênticas maleitas.
O desprezo continuado pelos cães de cor sólida, uns proscritos e outros tornados recessivos (brancos e negros), tem sido responsável pela progressiva quebra laboral dos Pastores Alemães, manifesta numa menor concentração, maior nervosismo, reforço instintivo, menor curiosidade e dificuldades apreensivas, factores que somados, há que dizê-lo, apontam para uma inequívoca ausência de identidade, como se o seu genoma houvesse sido misteriosamente alterado, em algum momento da sua curta história. Sabem os criadores com mais de 55 anos de idade, outros sabê-lo-ão por relatos, que o Pastor Alemão se destacava dos demais cães pela excelente capacidade de aprendizagem, factor ligado ao forte impulso ao conhecimento que sempre o acompanhou. Hoje há notícia de pastores que fogem e de casa e não voltam, que abanam por tudo e por nada, que apresentam grandes dificuldades de resolução, que resistem à parceria e que vacilam diante de desafios precários. Para cães como estes, há que estender-lhe o contributo das variedades cromáticas sólidas, cães de “bem com a vida”, animais mais seguros e controláveis, tão prontos para o despoletar das acções como para a sua cessação.
Muita gente se questiona porque procurámos os pastores vermelhos, quando foram os negros que nos granjearam reputação, atingimos notoriedade com os preto-afogueados e sempre fomos adeptos dos lobeiros. Nunca tivemos como propósito a proliferação de cães vermelhos, apenas nos interessámos por eles por sabermos da sua existência e raridade, como peça em falta no “puzzle” relativo aos Pastores Alemães. Depois de adquirirmos o primeiro e de o havermos beneficiado com cadelas de todas as variedades cromáticas abrigadas no estalão, trabalho que durou uma década, gradualmente fomos descobrindo como prevaleceu e quase desapareceu esta variedade, naturalmente associada aos cães brancos e ultrapassada por eles pela selecção empreendida. E dizemos isto, porque do beneficiamento entre um branco e um vermelho, raramente sairão filhotes todos alvos e é mais do que certo que toda a prole saia vermelha, ainda que sem máscara, variedade que alguns, noutras partes do Globo, sabiamente alcunharam de “cor de areia”. Sairão maioritariamente alvos se o progenitor branco não for recessivo em vermelho.
O desaparecimento gradual e compulsivo da variedade vermelha, presente nos alvores da raça e hoje muito rara, ficou a dever-se aos seguintes factores: a outra opção de padronização, à preferência inicial pelos lobeiros e negros, à evolução para os exemplares bicolores, à expulsão dos brancos e também ao facto da variedade ser recessiva. Retornar aos vermelhos é voltar ao caldeirão genético do raça, descobrir como foi construída e desvendar os seus mistérios. Esta variedade, quando comparada com as restantes e criada isoladamente, é por norma mais silenciosa, segura, aguerrida, fiel, disponível, insubornável e produz ataques cirúrgicos, características que poderá omitir em parte quando beneficiada sistematicamente com a lobeira, que a tornará mais autónoma, subversiva e perigosa, menos controlável e de intenções menos perceptíveis, que a levarão a carregar sem provocação junto ao dono ou no seu território. Para além dos factores que atrás mencionámos para o seu desaparecimento, sobressaíram ainda outros de ordem morfológica, hoje felizmente ultrapassados pelos pastores actuais. Contudo uma coisa é certa: entre os pastores, os vermelhos são os que se encontram mais próximos da selecção natural, ligando ao mesmo tempo a raça a outras mesomorfas. A sua longevidade é um pouco superior à média encontrada nas outras variedades cromáticas.
E como as conversas são como as cerejas, vamos agora falar sobre a presença de pêlo crespo nos Pastores Alemães, facto que muitos ignoram e que nos transporta para a fase embrionária da raça, onde cães pastores com esse tipo de pelagem foram também usados para a sua formação, próximos dos exemplares de pêlo comprido, de orelhas mais curtas, por norma bicolores, rectangulares e um pouco mais baixos, outrora pouco numerosos e hoje praticamente extintos (o último exemplar que nos passou pelas mãos foi uma cadela preto-afogueada com farto subpêlo e registada com o nome de “Karenkal”, numa alusão ao seu local de nascimento: Carenque, nascida na década de 90 e que não transmitiu o particular da sua pelagem aos seus descendentes). A presença de remoinhos no peito, no dorso ou nas coxas de alguns Pastores Alemães, zonas onde a sua pelagem é mais densa, prova essa ascendência e liga-os directamente a essa ancestralidade, assim como a algumas desprezadas linhas de trabalho. Tirando o particular da pelagem, estes exemplares são em tudo iguais aos outros. O retorno a esta subvariedade, notoriamente afável quando dominante, é possível pelo recurso persistente a pastores com remoinhos, opção que nos parece gratuita e descartável, porque daí não resultaria qualquer mais-valia assinalável.
Falta falar sobre os cães cor de fígado uniformes e bicolores, resultantes da diluição do factor azul presente nalguns lobeiros e negros, devido ao cruzamento histórico entre estas duas variedades cromáticas, por cá tratados como “chocolate” e pouco vistos, normalmente de olhos claros e próximos dos vermelhos e dos azuis. Também não abordámos os cães azuis uniformes e bicolores (cinzentos), assuntos que abordaremos oportunamente, porque à conversa já vai longa.
O que importa compreender e memorizar é que nenhuma cor é melhor que outra, que não há uma só de cor de Pastores Alemães e que todas elas são boas se os cães forem igualmente bons, conclusão histórica de Stephanitz que os actuais criadores da raça parecem ignorar e que todas elas contribuíram e continuam a contribuir para o enaltecimento do Pastor Alemão. Em simultâneo e por via disto, facilmente se conclui que a criação exclusiva de uma variedade cromática, ao excluir as outras, atenta contra a sua origem, propósitos, préstimo, potencial, abrangência e multivariedade, política selectiva que desconsidera tanto a herança genética como a continuidade da raça, sem dúvida uma das mais excelentes dentro do panorama canino mundial. 

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