Há sensivelmente um século, logo após
Darwin e Galton, muito antes do advento do hediondo II Reich da eugenia de má
memória, graças à excessiva endogamia e muito para além das leis da selecção
natural, que a canicultura mundial enveredou pela criação de mutantes, criando
raças morfologicamente anómalas e distantes do bem-estar animal, aberrações de
toda a casta que se constituíram em impropriedades genéticas e que acabaram por
transformar o sonho dos homens no maior pesadelo dos cães. A BBC lançou há
pouco tempo dois documentários acerca do assunto e a canicultura europeia
começa agora, ainda que lentamente, a tomar consciência dos erros cometidos e
da necessidade de mudança nos critérios de selecção dentro das raças
actualmente reconhecidas pela FCI, apesar de muitos clubes de raça e outros
tantos criadores fazerem “orelhas moucas”, o que a ninguém espanta considerando
o embaraço e os custos inerentes à mudança requerida.
Para se ter a noção exacta dos abusos
cometidos, que cada vez mais atentam contra a saúde dos cães considerados
puros, basta comparar o que eles eram há um século atrás com aquilo que são
hoje. Essas alterações resultaram num sem número de enfermidades e
incapacidades que estão a comprometer a saúde e sobrevivência das raças,
contribuindo desde logo para o sofrimento atroz de muitos animais. Se
entendermos a selecção dos cães como um baralho de cartas, então está na hora
de baralhar outra vez e dar de novo, o que aponta claramente para a hibridação
quando tal se justificar para a eliminação das insuficiências que hoje vitimam
cada raça, porque a procura da dominância em cada uma delas, ao ser por demais
valorizada, foi, é-lhes e continuará a ser-lhes fatal, fenómeno também
compreendido pelo desprezo relativo e sistemático pelas variedades recessivas
que estiveram na origem e construção dos diferentes estalões.
O problema há muito que é do
conhecimento dos adestradores, o que os tem obrigado a cuidados suplementares e
à supressão de um sem número de tarefas ou aptidões, considerando a salvaguarda
animal, a particularidade dos indivíduos e a continuidade do seu ofício. Assim
se compreende quão difícil é juntar o belo ao funcional, tarefa inglória tantas
vezes procurada por muitos, porque ordinariamente os “Apolos” vêm munidos de
atestados limitadores para a função. E neste sentido, poder-se-á dizer a grosso
modo (porque sempre houve excepções e são bem vindas), que a clássica divisão
entre o trabalho e a beleza reside na diferença entre os cães saudáveis e
aqueles que o não são, exactamente quando a estética ignora ou desconsidera o
trabalho, serviço que exige saúde e que não se compraz exclusivamente na
passerelle, no corrupio entre a boxe e a apresentação. Não queremos com isto
denegrir a importância das exposições de beleza, o que seria um autêntico
descalabro, apenas pedimos aos diferentes criadores e expositores de cães que
apresentem e passem animais saudáveis. Oxalá esse tempo não demore, todos temos
a ganhar com isso, homens e cães, criadores, adestradores e futuros
proprietários caninos.
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