Desde que me conheço que vejo pessoas
a alimentar e a resgatar cães e gatos vadios, muito embora o termo próprio seja
“abandonados”. Guardo ainda a imagem de uma velha professora primária, do mundo
alheada, solteirona, magra e avançada na idade, que à noitinha era perseguida
por um grupo enorme de gatos esfomeados, miando rua abaixo, à espera de serem
alimentados. Daí para cá pouco ou nada mudou, somente o esforço isolado cedeu
lugar às associações com esse propósito. Apesar das campanhas de
sensibilização, da pressão social, da política de castração, da obrigatoriedade
do microchip, de uma maior
fiscalização e do aumento das coimas, o número de animais abandonados não cessa
de aumentar e as associações tornam-se impotentes diante de tanto encargo. Não
lhes restando outro remédio, sobrevivem do trabalho voluntário, do bolso dos
seus associados, do serviço quase gratuito de alguns veterinários e dos parcos
donativos que conseguem alcançar, quer eles sejam em dinheiro ou em ração, tudo
na esperança da futura adopção dos animais por si recolhidos, o que nem sempre
acontece e não tem impedido o retorno ao abandono de alguns deles, nomeadamente
dos mais velhos, dos inadaptados e dos carentes de maiores cuidados.
Apesar das dificuldades (que são
históricas e já têm barbas), da precariedade dos alojamentos e da superlotação,
do endividamento dos seus associados e da incerteza quanto ao futuro, mesmo
assim, fustigadas como andam (a lembrar baratas tontas), raras são as
associações que apresentam e põem em prática as estratégias necessárias para a
resolução dos seus problemas, quedando-se exclusivamente pela compaixão
relativa aos animais. Ainda que de Berlim só me seduzam as bolas com creme da
doçaria tradicional portuguesa e da Baviera a Oktoberfest, lembro aqui as palavras de Markus Söder, ministro das
Finanças da Baviera, acerca do possível abandono do euro pela Grécia: “Há sempre um dia em que temos que sair da
casa da mamã, e chegou a vez dos gregos”. Pondo de parte o conteúdo
político da citação, que é pseudomaternal, fratricida, abusivo e descarado,
intimamente ligado à guerra económica que a Alemanha está a encetar contra a
restante Europa, vale a pena aceitar o seu conteúdo pedagógico, já que o mundo
é feito de mudança e quem não se adapta jamais sobreviverá. Se as actuais
associações querem sobreviver e continuar a desenvolver a sua meritória
actividade, então terão que mudar de política, abandonar o facilitismo e deixar
de estender a mão ou a saca à caridade, aproveitar melhor os recursos humanos
ao seu dispor e colocar-se em simultâneo ao serviço da sociedade, desenvolvendo
actividades e mais-valias que levem à melhor aceitação dos animais que até aqui
resgataram e continuam a resgatar, já que de nada vale pôr-se à parte e depois
queixar-se do isolamento.
Toda a gente sabe e quem não souber
engana-se irremediavelmente, que a criação de cães, longe de ser rentável, é um
capricho caro só ao alcance de alguns, porque não é auto-sustentável e sempre
necessitará da injecção de capital doutras actividades verdadeiramente
rentáveis. Ao invés, os hotéis caninos sempre foram e continuarão a ser
rentáveis, suportando muitas vezes e quase sempre outras actividades ligadas à
canicultura nas suas múltiplas vertentes ou serviços. Por outro lado, o recurso
ao adestramento tem-se revelado uma necessidade para quem tem cães, particularmente
diante da “lei dos cães perigosos” e das múltiplas restrições a que estes
animais têm vindo a ser alvo. Considerando os preços médios actuais da
hotelaria canina, o preço mensal cobrado por cada cão hospedado dá para
sustentar outros seis com rações de topo de gama ou doze com rações de
manutenção e dez canis em funcionamento garantem o salário mínimo de um
tratador. Vinte animais em treino garantem o salário dum adestrador e ainda o
sustento mensal de quinze cães. Pergunta-se agora: porque não inscrevem as
associações alguns dos seus associados nos cursos de adestramento e
paralelamente não enveredam pela construção de hotéis caninos? Porque não
oferecem esses serviços a quem adopta os seus cães? Não será o adestramento o
melhor dos subsídios para o entendimento entre homens e cães?
Está na hora de ousar ir para além da
simples compaixão, de se abandonar o estatuto de associação sem fins lucrativos,
de produzir riqueza para valer à desgraça, de servir para ser servido e melhor
valer aos cães, porque tudo o que é irrecusável deve-se à sua necessidade – “Há sempre um dia em que temos que sair da
casa da mamã!”.
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