Os cinófobos finalmente fizeram-se
ouvir, gritam agora que sempre tiveram carradas de razão e que qualquer cão deve
ser olhado com desconfiança, não venha a ser uma fera doméstica de intenções
duvidosas, potencialmente perigoso e de propensão assassina. Num ápice, porque
a moda tem destas coisas, o que antigamente era entendido como submissão é hoje
interpretado como dominância escondida ou dissimulada. No novo entendimento, se
assim se puder chamar, porque a ignorância não é novidade, os cães dominantes
proliferam e os muito dominantes nunca foram tantos, o que de certa forma põe
toda a gente de sobreaviso, apesar da realidade ser bem diferente.
Nas duas décadas anteriores à “lei
sobre os cães perigosos” dedicámo-nos à reeducação de cães e operámos a
recuperação de três dezenas deles, em regime de internato e num período nunca
superior aos noventa dias, o que nos obrigou a árduo trabalho diário, não nos
isentou de algum risco e sujeitou a alguns percalços. E nessa azáfama apanhámos
de tudo, animais de todos os tamanhos (puros, híbridos ou mestiços), com o
mesmo perfil psicológico, de diferentes grupos somáticos, de díspar instalação
doméstica e histórico social. Nem sempre os maiores foram os piores ou mais difíceis,
houve casos em que se passou exactamente o contrário, exemplo disso foi uma
fêmea Sharpei que nos deu bastante “água pela barba”, porque nos fazia esperas,
fazia-se desinteressada, atacava à boca calada e por intercessão, produzindo
ataques cirúrgicos a zonas do corpo particularmente sensíveis e dolorosas, sem
instrução prévia para isso e desnecessitando de qualquer tipo de provocação ou
ameaça. Os “cães estátua”, aqueles que permaneciam parados de pé na nossa
frente, de rabo virado para nós e a rosnar, na sua maioria grandes molossos,
sempre espreitavam ocasião para nos carregarem violentamente, rodando nos
posteriores aquando da abordagem e disferindo ataques à linha do pescoço. Houve
um Podengo Grande Nacional, que na impossibilidade de nos morder, ferrava os
dentes nas ripas do telhado, permanecendo suspenso ali por algum tempo, a abanar
o corpo na impossibilidade de sacudir a cabeça. O confronto com os muito
dominantes nunca foi fácil e nalguns casos, infelizmente, não conseguimos
evitar a luta corpo a corpo, apesar de o tentarmos evitar a todo o custo pelo
uso da inteligência, argúcia, experiência e requisitos técnicos, porque estes
animais normalmente aguardam para nos “fazerem a folha” e mais cedo ou mais
tarde “marcam-nos encontro” montando-nos uma cilada, já que nos estudam e
esperam ocasião, movidos pelo forte impulso ao poder que os impele à luta
letal, podendo inclusive sucumbir no calor da peleja se a pedagogia de ensino
não for soberana e a inteligência não se sobrepuser à força bruta.
Ora, a esmagadora maioria das feras de
agora (muito por mérito dos criadores actuais, particularmente depois da década
de noventa ao alterarem os critérios de selecção), é ordinariamente submissa,
deveras mimada e comumente privada de uma liderança objectiva, surgindo ainda,
como não poderia deixar de ser, algumas excepções, mais por mérito do acaso do
que pela procura deliberada, isto no que toca aos cães considerados puros,
sujeitos à eugenia e próprios para as exposições. É errado pensar-se que a agressividade
dos cães tem somente como fonte a provocação e que o seu comportamente resulta
exclusivamente do tipo de educação de que foram alvo, como também é errado
remeter-se unicamente para a genética a causa ou origem dos comportamentos
caninos mais violentos, porque nem todos os cães reagem ostensivamente à
provocação, são territoriais, apresentam propensão guardiã ou resultam de uma
ascendência notoriamente agressiva, o que nos leva a dividir os comportamentos
agressivos em natos e inatos de acordo com a sua apresentação e ocorrência, o
que nem sempre é fácil atendendo ao atavismo, experiência directa e viver
social dos cães. Agora, quando se junta “a fome à vontade de comer” e acontece
a junção entre a propensão genética e o robustecimento ambiental, o problema
agrava-se substancialmente, ainda que se opere a descodificação operada pelo
condicionamento anterior, porque o animal nasceu assim e irá voltar à carga.
Aqui, encontra a lâmina do capador a sua justificação.
Com a castração em alta (há quem veja
nela a solução para a maior parte dos problemas cancerígenos das fêmeas),
qualquer arrufo leva a mesa de operações e os cães são capados cada vez mais
cedo, acontecendo isso, invariavelmente, antes da maturidade sexual, o que tem
transformado os machos numa massa disforme e amachado as fêmeas, que desse modo
vêem transformado o seu “impulso à defesa” em “impulso à luta”, comportando-se
inúmeras vezes como machos guardiões, ainda que esquivos e pouco confiantes. No
outrora Reino de Portugal e hoje República Portuguesa, pese embora o alarme e o
sensacionalismo, os cidadãos podem dormir descansados, porque os cães maus são
raros e antes que o sejam, acabam mortos ou capados, uns não os veremos mais e
os outros andarão entre nós como mortos-vivos, como ovelhas em época estival a
sofrer os horrores do Verão. E se isto continuar assim (para nós que nunca
tivemos o dom da profecia), pode ser que nas escarpas da Serra de Estrela as
ovelhas acabem por guardar os cães!