domingo, 14 de junho de 2015

O PRÉSTIMO DOS RAFEIROS

Os rafeiros em Portugal, suavizados pela designação de “cães sem raça definida”, cujo número de abatidos não ousamos contabilizar, por ser maior que o esperado e uma vergonha para todos nós, para uns têm sido uma bênção e para outros uma praga, respectivamente para quem os adopta e para quem não os tolera. Filhos da selecção natural e da desventura, sempre têm andado de braço dado com a fome, com os maus tratos e o abandono. Apesar de mais resistentes, saudáveis, equilibrados e com maior esperança de vida que os seus pares com pedigree, grande número deles irá morrer precocemente nos canis municipais, onde invariavelmente a injecção letal os espera, por não haver quem os reclame, solução draconiana que vai contra tudo aquilo que hoje ensinamos e acreditamos. Mais do que em factos ou numa pretensa menos valia, a indiferença, o desrespeito e o desaproveitamento destes cães, têm resultado de falsas premissas, ideologias desprezadas e ancestrais preconceitos, enraizados na nossa cultura no passado recente e/ou desde tempos imemoriais.
Haverá neles algum préstimo ou serão uns estupores sem qualquer proveito? Antes de respondermos à questão, razão objectiva deste texto, adiantamos que treinámos ao longo dos anos e em simultâneo rafeiros e cães de várias raças, convidando todos para o mesmo desempenho e tarefas, segundo a sua morfologia, estatura, peso e envergadura. Sem que isso constituísse para nós qualquer novidade, porque já o sabíamos, os cães de raça indefinida mostraram-se mais versáteis, evidenciaram maior rusticidade, revelaram-se mais fáceis de ensinar e atingiram níveis de cumplicidade acima dos encontrados nos seus colegas standartizados, resultado também comprovado noutras escolas caninas. Voltando à questão, entendemos que os rafeiros apresentam três mais-valias a considerar, enquanto cães de terapia, como melhoradores das raças existentes e como semental para a formação de novas raças.
Em oposição à maioria das raças caninas, que necessita de algumas específicas para esse trabalho, raro é o rafeiro que não se presta como cão terapia, facto que fica a dever-se ao equilíbrio dos seus impulsos herdados e à ausência da excessiva manipulação humana, factores que facilitam a sua interacção com os humanos sem maiores cuidados e sobressaltos. Portadores de uma maior rusticidade e distantes das maleitas resultantes da endogamia e da excessiva consanguinidade presentes nos cães de raça, eles poderão vir a ser melhoradores das distintas raças caninas, dotando-as de mais saúde e equilíbrio, devolvendo a algumas delas o potencial sensorial de que se viram privadas pela procura doutros usos e propósitos (não é por acaso que a hibridação está na moda). No caso português, a maioria dos rafeiros ainda descende de cães primitivos e do tipo spitz, mais ou menos mesclados com bracóides, que tanto poderão ser usados para a recuperação de cães ancestrais como para a formação de novas raças, tangencialmente mais próximas dos desejos actuais. Acresce ainda o facto das rafeiras se prestarem facilmente como amas-de-leite ou madrastas, tanto de cães como doutros animais.
O préstimo que reconhecemos aos rafeiros reforça a nossa oposição às actuais campanhas de castração, que contrariamente ao que se badala, não têm surtido o efeito desejado, facto comprovado pelo aumento do número de associações que se dedica ao resgate dos animais. Melhor seria controlar a natalidade canina do que esperar que os cães nasçam para depois os castrarem. E se eventualmente o número de cães abandonados diminuiu, não o podemos dissociar da actual crise económica, porque o tempo não vai para devaneios e as sobras não são muitas, muito embora possa surtir o efeito contrário, porque escasseando o pão, o cão é posto à estrada. Se entendermos os nossos rafeiros como uma herança de tempos remotos, reconhecermos as suas mais-valias e vencermos o preconceito, rapidamente mudaremos de opinião a seu respeito e usufruiremos do muito que têm para nos dar. 

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