Os rafeiros em Portugal, suavizados pela designação de “cães sem raça
definida”, cujo número de abatidos não ousamos contabilizar, por ser maior que
o esperado e uma vergonha para todos nós, para uns têm sido uma bênção e para
outros uma praga, respectivamente para quem os adopta e para quem não os
tolera. Filhos da selecção natural e da desventura, sempre têm andado de braço
dado com a fome, com os maus tratos e o abandono. Apesar de mais resistentes,
saudáveis, equilibrados e com maior esperança de vida que os seus pares com
pedigree, grande número deles irá morrer precocemente nos canis municipais,
onde invariavelmente a injecção letal os espera, por não haver quem os reclame,
solução draconiana que vai contra tudo aquilo que hoje ensinamos e acreditamos.
Mais do que em factos ou numa pretensa menos valia, a indiferença, o
desrespeito e o desaproveitamento destes cães, têm resultado de falsas
premissas, ideologias desprezadas e ancestrais preconceitos, enraizados na
nossa cultura no passado recente e/ou desde tempos imemoriais.
Haverá neles algum préstimo ou serão uns estupores sem qualquer
proveito? Antes de respondermos à questão, razão objectiva deste texto,
adiantamos que treinámos ao longo dos anos e em simultâneo rafeiros e cães de
várias raças, convidando todos para o mesmo desempenho e tarefas, segundo a sua
morfologia, estatura, peso e envergadura. Sem que isso constituísse para nós
qualquer novidade, porque já o sabíamos, os cães de raça indefinida
mostraram-se mais versáteis, evidenciaram maior rusticidade, revelaram-se mais
fáceis de ensinar e atingiram níveis de cumplicidade acima dos encontrados nos
seus colegas standartizados, resultado também comprovado noutras escolas
caninas. Voltando à questão, entendemos que os rafeiros apresentam três
mais-valias a considerar, enquanto cães de terapia, como melhoradores das raças
existentes e como semental para a formação de novas raças.
Em oposição à maioria das raças caninas, que necessita de algumas
específicas para esse trabalho, raro é o rafeiro que não se presta como cão
terapia, facto que fica a dever-se ao equilíbrio dos seus impulsos herdados e à
ausência da excessiva manipulação humana, factores que facilitam a sua
interacção com os humanos sem maiores cuidados e sobressaltos. Portadores de
uma maior rusticidade e distantes das maleitas resultantes da endogamia e da
excessiva consanguinidade presentes nos cães de raça, eles poderão vir a ser
melhoradores das distintas raças caninas, dotando-as de mais saúde e equilíbrio,
devolvendo a algumas delas o potencial sensorial de que se viram privadas pela
procura doutros usos e propósitos (não é por acaso que a hibridação está na
moda). No caso português, a maioria dos rafeiros ainda descende de cães
primitivos e do tipo spitz, mais ou menos mesclados com bracóides, que tanto
poderão ser usados para a recuperação de cães ancestrais como para a formação
de novas raças, tangencialmente mais próximas dos desejos actuais. Acresce
ainda o facto das rafeiras se prestarem facilmente como amas-de-leite ou
madrastas, tanto de cães como doutros animais.
O préstimo que reconhecemos aos rafeiros reforça a nossa oposição às
actuais campanhas de castração, que contrariamente ao que se badala, não têm
surtido o efeito desejado, facto comprovado pelo aumento do número de
associações que se dedica ao resgate dos animais. Melhor seria controlar a
natalidade canina do que esperar que os cães nasçam para depois os castrarem. E
se eventualmente o número de cães abandonados diminuiu, não o podemos dissociar
da actual crise económica, porque o tempo não vai para devaneios e as sobras
não são muitas, muito embora possa surtir o efeito contrário, porque
escasseando o pão, o cão é posto à estrada. Se entendermos os nossos rafeiros
como uma herança de tempos remotos, reconhecermos as suas mais-valias e
vencermos o preconceito, rapidamente mudaremos de opinião a seu respeito e
usufruiremos do muito que têm para nos dar.
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