domingo, 14 de junho de 2015

O CÃO DOS SEPARADOS

Toda a gente sabe e se não sabe deveria saber, que a aquisição de um cão deverá acontecer por consenso familiar e não pela decisão unilateral de um dos seus membros, porque a presença do animal irá alterar a vida e a rotina de todos e o cão será mais ou menos feliz de acordo com o grupo que o vier a aceitar, porque se trata de uma adopção que irá exigir disponibilidade, cuidados, atenção e carinho para que ele se sinta bem, vindo a considerar as pessoas do agregado familiar como membros do seu bando, o que será deveras importante para o seu desenvolvimento, sociabilização saúde, bem-estar e longevidade. Como cresce o número de casais que se separa ou divorcia e muitos deles, quiçá por opção, temor ou impossibilidade de terem filhos, são proprietários de um ou mais cães, importa avaliar os reflexos dessas separações para os animais através das soluções comummente encontradas, nem sempre as melhores, considerando o seu particular social, porque deixam marcas e que podem levar inclusive ao seu abate.
Assim como há pais separados que fazem dos filhos cavalos de batalha, também há quem se aproveite dos cães para o mesmo fim, um finca-pé que normalmente desconsidera as necessidades dos animais e que nada abonará em prol do seu bem-estar e futuro, particularmente quando entregues a quem pouco se importa com eles. São 7 as soluções mais usuais para o problema: a entrega ao elemento activo (líder), a custódia junto do elemento passivo (elemento neutro), o despacho para a casa dos pais de um deles, o descarte para um amigo ou casal amigo, a venda do animal (se for de raça, tiver procura e preencha às expectativas de terceiros), a entrega num canil de adopção e a incorporação numa força policial ou militar (dependendo da sua idade, características e mais-valias). O cão poderá ainda ser resgatado por um adestrador que nele possa estar interessado. Não consideramos como válida a opção de o mandar abater num canil terminal municipal, muito embora haja quem o faça.
O caso menos lesivo destas circunstâncias extraordinárias, havendo essa possibilidade, é quando o cão fica com o líder que escolheu e na casa que sempre conheceu, porque o seu modo de vida não sofrerá grandes alterações, já que a liderança e o território são os mesmos, ainda que eventualmente sinta a falta da pessoa que saiu de casa. Resta saber se a que virá gostará de cães e irá gostar dele, o que desafortunadamente nem sempre acontece, acabando o animal no olho da rua, despachado à pressa ou entregue a uma associação de acolhimento (se fosse um filho iria parar a um colégio interno). Caso o animal fique com a pessoa do casal que não foi o seu líder e na mesma casa, ainda que o território seja o mesmo, o cão virá a comportar-se de modo diferente, mostrando-se ansioso, ensurdecendo-se por vezes e mostrando-se menos alegre e solícito, por lhe faltar o líder e o exemplo que seguia, porque de imprevisto se viu obrigado à troca de liderança e a aceitar a autoridade de alguém que até ali era para ele um igual. Alguns cães chegam a fugir de casa, dependendo isso dos vínculos afectivos que mantinham com os seus líderes. Com o decorrer do tempo e muita paciência por parte da pessoa que o conservou, o animal adaptar-se-á, podendo incompatibilizar-se com um futuro morador daquela casa, o que exigirá dele algum tacto e sensibilidade, para que venha a ser aceite pelo cão.
O despacho do animal para casa dos pais de um dos separados ou para a casa duns amigos de algum deles é uma das opções mais comuns, especialmente se tiverem mais cães e espaço, condições que à partida deixarão o casal em litígio mais descansado quanto á sorte do cão, já que terá “amigos” para brincar e espaço para correr, o que amenizaria a sua separação forçada. Infelizmente, como alguém já disse, o céu e o inferno estão cheios de boas intenções e os desejos nem sempre se cumprem. E neste caso poderão não suceder, porquê? Subsistem múltiplas razões, quase todas ligadas ao facto dessas pessoas não terem criado o cão e desenvolvido até então o afecto e a cumplicidade que o seu crescimento ofereceu, sobrando ainda a estranheza do animal perante tal gente e a novidade dos seus hábitos e rotinas. É importante recordar que os cães vivem da experiencia que têm, são seres sociais e não se encontram preparados para andar de mão em mão. Por outro lado, a menos que já o tivessem conhecido e dividido com ele o mesmo espaço sem problemas, os cães residentes não verão com bons olhos o recém-chegado, porque verão o seu território e cuidados repartidos, podendo resistir a essa repartição por meios mais ou menos violentos, o que de alguma forma sempre colocará o despachado em desvantagem, porque o seu líder está ausente e o grupo não o aceita. Quem o defenderá, quem lhe devolverá a primazia? Sentir-se-á a bem com a rejeição e a despromoção?
Passadas algumas escaramuças e umas tantas dentadas, o despachado será finalmente escalonado no grupo. Mas supondo que o cão pertence ao grupo dos dominantes e carrega nos demais, haverá paciência para ele? Quem será mais uma vez isolado? Quem concorrerá à castração? Quem preferencialmente será posto na rua? Não há relatos do abate de alguns cães? Que ninguém se iluda: o maior sucesso nas adopções acontece obviamente entre os submissos, não entre os valentes! Antes de se confiar um cão a um amigo, que convém ter uma estabilidade familiar capaz e todo o seu agregado familiar se encontrar de acordo quanto à aquisição do animal, para que o cão não volte ao mesmo fado, urge aquilatar da sua disponibilidade anímica, temporal e financeira para poder valer ao animal, de modo a manter-lhe a manutenção, a assistência médico-veterinária, os hábitos e rotinas de que é portador, o que suavizará a ausência do antigo dono e facilitará a aceitação do novo espaço. A primeira das razões de sucesso por detrás da adopção de cães e que os torna gratos, é a melhoria global das suas condições de vida, que os leva a esquecer donde vieram (quando tal é possível) e a abraçar sem delongas o novo status.
Se houver a opção de se vender o animal, duma coisa podemos estar certos: vão querê-lo comprar por uma ridicularia, por conhecerem a situação aflitiva dos donos. A venda do cão nestas circunstâncias não lhe garante o bom trato nem o dono, porque não respondendo às expectativas de quem o adquiriu, bem depressa mudará de dono e ainda dará algum lucro, até porque o segredo do negócio começa na compra. A entrega num canil ou associação de adopção é uma lotaria e caso o animal venha a ser adoptado, ninguém lhe garante a sorte, porque não são raros os cães que ele retornam ou que acabam abandonados pela vergonha de os devolverem, tendo a morte mais do que certa. A incorporação numa força policial ou militar é à partida uma boa opção, porque o animal será tratado condignamente, pelo menos enquanto estiver no activo (a adaptação do cão não será automática e será feita a expensas próprias). A aquisição do animal por parte dum adestrador poderá não ser desinteressada e geralmente não é, porque já lhe tem serviço ou cliente destinado, vindo a ser melhor ou pior tratado. Há casos de adopções felizes? Sem dúvida, ainda que não sejam muitas, considerando o menor poder de compra, indisponibilidade, pouco conhecimento, tipo de parceria e condições de quem se predispõe a adoptar.
Sejamos sinceros, quando alguém se livra de um cão nestas circunstâncias ou noutras similares, talvez por descargo de consciência, não prefere pensar e dizer para os outros que o animal foi para melhor, quando na esmagadora maioria dos casos suspeita exactamente do contrário? Para quem tem a família à experiência, mais vale assumi-la primeiro e só depois pensar nos cães! Como pode alguém assumir um compromisso com um cão, se não faz com a sua própria família? E se a família está em crise, o que não é de hoje e não suscita dúvidas a ninguém, os cães não serão os primeiros a ser desprezados e defenestrados? Felizes são os cães de um só dono até que o deixem de ser, podendo continuar a sê-lo, se agradarem a quem chega. Mais felizes serão aqueles que encontrarem uma família que divida com eles a sua vida. Apesar de tudo o que dissemos, não conseguimos falar pelos cães, caso falassem, muito mais teriam a dizer. 

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