sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

REFLEXÃO SOBRE OS CÃES DE RUA MOSCOVITAS (Москва уличные собаки)

Se há um lugar privilegiado para compreender o regresso ao atavismo dos cães, fazer trabalho de campo (investigação), subsidiar umas quantas teses de mestrado sobre o comportamento canino e melhor compreendermos o que temos feito com estes animais, ainda que pelo caminho inverso, ele será em Moscovo e nos seus arredores, onde proliferam várias dezenas de milhar de cães de rua, descendentes de pets desprezados e nessa situação há várias gerações (nalguns casos desde o Sec. XIX), desprovidos de dono, tornados párias, autónomos, constituídos em matilhas e hábeis em sobreviver, muitas vezes entre o abate, o tiro ao alvo e a compaixão, apesar de bem adaptados ao viver urbano e à lide das gentes, concorrendo invariavelmente aos mesmos meios de transporte e sujeitando-se aos mesmos perigos e desafios. A Laika, a primeira e única cadela astronauta até à presente data, de quem falámos há algumas edições atrás, foi resgatada dessa mesma condição e, atendendo ao fim que teve, mais valia terem-na deixado por lá!
Segundo Andrei Poyarkov, um biólogo especializado em lobos, que nos últimos 30 anos se tem dedicado ao estudo dos cães de rua moscovitas, a esperança de vida destes cães ronda os 10 anos e poucos são os cachorros que chegam à idade adulta, vindo os sobreviventes a substituir aqueles que perecem, o que mantém um grupo estável de 35.000 indivíduos, agregados em várias matilhas de características diferentes, que podem ser divididas em quatro grupos: os selvagens (cães nocturnos que evitam os humanos e os vêem como uma ameaça), os semi-selvagens (que procuram comida), os de guarda (que aceitam determinadas pessoas como líderes) e os pedintes (notoriamente mais inteligentes, que pedem comida sem se ligarem afectivamente às pessoas). Generalizou-se entre eles um tipo morfológico próprio, caracterizado pelo tamanho médio, pêlo comprido, cabeça em forma de cunha, olhos amendoados, caudas longas e orelhas erectas. No decorrer da sua observação, Poyarkov notou que eles foram perdendo a pelagem malhada, o costume de abanar a cauda e a afectuosidade, características que separam os cães dos lobos, pormenores que nos induzem a várias reflexões, tomando em conta rusticidade e a parceria que esperamos dos nossos cães, nomeadamente dos Pastores Alemães.
O tipo físico ali dominante, afinal tão próximo do Pastor Alemão, aponta claramente para a justeza dos pressupostos selectivos defendidos pelos construtores desta raça, em abono da sua sobrevivência, rusticidade, autonomia, adaptação, uso e melhor desempenho – Stephanitz e os seus seguidores tinham razão! Com o tempo e o desprezo pelo trabalho, mediante massivas infusões de maus sucedâneos de Arminius e Wienerau, a cauda destes cães passou a ser um adorno, por força da estilização procurada, permanecendo tombada e sem vida como as dos lobos, o que vem dificultando a leitura da sua mímica, equilíbrio, travamento e desempenho atlético. Infelizmente os lobos são furtivos, temem os homens, não se podem mostrar e só contam consigo, muito embora em matilha sejam perigosos e letais. Mas vamos adiante que isto são contas de outro rosário!
Lá por Moscovo, os ditos cães pedintes, que são os mais espertos, não se incomodam com o barulho, a azáfama e o movimento ao seu redor, perfeitamente adaptados, conseguem dormir uma sesta nos sítios mais inesperados. Constituídos em matilhas/alcateias, os diferentes grupos interagem entre si, sendo liderados pelos mais inteligentes e não pelos mais fortes ou dominantes, porque a tanto obriga a sobrevivência, necessidade que automaticamente os transforma em cães alfa, novidade para aqueles que dão primazia ao impulso à luta nos seus cães e que inevitavelmente acabam por correr atrás do prejuízo. Que grandes lições têm os cães vadios Moscovo para nos dar! Peritos na arte de sobreviver e capazes de entender a psicologia de certos humanos, os cães pedintes desenvolveram várias técnicas para alcançar comida dos transeuntes. Uma delas passa pelo uso dos membros mais pequenos e bonitinhos, por isso mesmo mais apelativos, para pedir comida às pessoas. E como também têm um “Plano B”, não encontrando outro remédio, ao sentirem que alguém transporta algo comestível, ladram-lhe de surpresa pelas costas, para que surpreso e assustado deixe cair o repasto. Eles descobriram que nas áreas mais movimentados é mais fácil encontrar comida e graças a isso, são mais sociáveis, não se apresentam subnutridos e até são selectivos nos seus manjares, muito embora haja notícia de ataques por comida nas zonas industriais mais isoladas.
Como casos destes são raros, entre a afeição e o incómodo, os cães acabam por ser tolerados, havendo muita gente que os alimenta e que lhes constrói abrigos nas Estações do Ano mais frias. Observadores, aprenderam a respeitar os semáforos e a evitar o confronto com as pessoas, não defecando nas áreas mais movimentadas da cidade. Para muitos, eles fazem parte da própria personalidade de Moscovo e as campanhas de castração encetadas tiveram pouco impacto na sua redução.
Mas o que mais impressiona nestes cães é uso que fazem do Metro de Moscovo, ao tornarem-se seus passageiros e residentes nas suas estações, o que levou Eugene Linden, um reputado especialista em inteligência animal, a considerá-los portadores de “raciocínio flexível e pensamento consciente”, uma vez que aprenderam a reconhecer as estações ao ouvir o seu nome pelas gravações, pelo seu odor particular e pela combinação desses e doutros factores, nomeadamente o tempo entre o embarque e o desembarque. Durante a era soviética não eram permitidos cães no Metro, mas também eram raros os restaurantes e snack-bares na Capital russa, o que não lhes justificava a ida ao centro da cidade, preferindo viver nas zonas industriais, onde arranjavam comida nos caixotes do lixo, vivendo dos restos ali jogados pelos trabalhadores. Mas com a queda URSS tudo mudou, começaram a surgir blocos de apartamentos e centros comerciais nos arredores e o número de restaurantes e lanchonetes aumentou drasticamente no centro da cidade.
Como qualquer passageiro, mesma nas horas de ponta, é comum vê-los a apanhar o Metro nos subúrbios, onde pernoitam, rumo ao centro da cidade, no intuito de se alimentarem, retornando ao local de partida depois de saciados, partindo pela manhã e regressando ao final da tarde, viajando deitados nos bancos, no chão ou entre as pernas das pessoas, não reagindo a qualquer pisadela acidental por força do hábito. Ainda que prefiram as primeiras carruagens ou as últimas, por serem menos concorridas, é comum vê-los a entrar e sair pelas diversas portas durante as paragens, brincadeira em que arriscam ficar com as caudas presas. Cerca de 500 cães vivem nas estações do Metro, mas apenas 4% o usam como meio de transporte.
O Caso Malchik. Em 2001, uma modelo de 22 anos, que regressava a casa acompanhada pelo seu Staffordshire Bull Terrier, matou a facadas um cão de rua negro, alcunhado de “Malchik” (“menino” em russo), que tinha escolhido como abrigo a estação de Mendeleyevskaya, local que protegia de bêbados e outros cães. Como o triste episódio ocorreu numa hora de muito movimento e foi presenciado por um se número de pessoas, o que provocou a revolta generalizada da opinião pública e profunda consternação nalgumas celebridades moscovitas, a assassina do Malchik foi presa, julgada e condenada a um ano de tratamento psiquiátrico (com os russos ninguém brinca!). Como resultado de uma campanha de fundos, foi erigida, a 17 de Fevereiro de 2007, uma estátua em bronze como homenagem ao cão assassinado, à entrada daquela estação do metropolitano moscovita, obra do escultor Alexander Tsigal, que contou com a colaboração do arquitecto Andrey Nalich e do designer Peter Nalich. A estátua foi intitulada de “Compaixão” e é suportada por uma serpentina monolítica.
Uma coisa é certa: ainda temos muito que aprender acerca dos cães, sobre a inteligência e préstimo destes dedicados companheiros, que apesar de milhares de anos ao nosso lado, não param de nos surpreender.

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