A canicultura é um relicário de crenças
filosóficas, religiosas, políticas, culturais e científicas, baseada na procura
de diversas harmonias, que espelham em cada raça o carácter iniciático e
expectante dos seus criadores, segundo os seus conceitos de vida, criação e
evolução, enquanto agentes transformadores mais ou menos sincréticos, como
reflexo da sua inquietação no tempo que os cativou. Por detrás de cada raça,
para além dos propósitos enunciados e do produto que temos na frente,
escondem-se pressupostos, inquietações e desejos que, transportados para os
cães, divergem, atentam ou superam a sua selecção natural. Mais do que discutir
genealogias caninas, versões adulteradas dos modelos originais, importa
conhecer as aspirações dos homens que criaram as distintas raças, tantas vezes
debaixo de propósitos até aqui omissos e que assim massificaram os seus desejos
mais ocultos. Para melhor compreendermos os cães que temos hoje, libertá-los
dos entraves do passado, tirarmos deles maior proveito e operamos a sua
selecção, importa conhecer e estudar os seus autores, o seu particular
individual, social, cultural e científico, porque alteraram os cães conforme às
suas expectativas.
Em todas as raças se pode ver o dedo de Darwin e Galton, mas não são
únicos, pois nalgumas também estão “pedreiros livres”, gente simples e douta,
perseguidores do Santo Graal, adeptos de fórmulas clássicas, muitos místicos e um
sem número de filantropos e revolucionários, ainda que por vezes inconfessos ou
encobertos, que produziram cães utilitários, lúdicos e bélicos, de acordo com
os seus conceitos estéticos ou como resposta a necessidades. A compreensão dos
criadores originais melhorará a nossa comunicação com os cães, enquanto criaturas
de quem os idealizou, massa dos seus anseios. Assim, tratar de cães não irá
dispensar o conhecimento mais aprofundado dos seus arquitectos. Convém não
afirmar o já gasto e sem comprovação, estudar e ir mais além, colocar em dúvida
o que comummente se aceita e reflectir sobre aquilo que nos chega, até porque a
ignorância a ninguém serve, e isto antes de alcançarmos os inevitáveis jardins
de pedra, com jarras de água choca e flores murchas, onde o silêncio impera e
aguarda pelo esquecimento. Só o apego ao conhecimento justificará estar na
canicultura, labutar na cinotecnia e ser cinófilo.
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