Se há um lugar privilegiado para compreender o regresso ao atavismo dos
cães, fazer trabalho de campo (investigação), subsidiar umas quantas teses de
mestrado sobre o comportamento canino e melhor compreendermos o que temos feito
com estes animais, ainda que pelo caminho inverso, ele será em Moscovo e nos
seus arredores, onde proliferam várias dezenas de milhar de cães de rua, descendentes
de pets desprezados e nessa situação há várias gerações (nalguns casos desde o
Sec. XIX), desprovidos de dono, tornados párias, autónomos, constituídos em
matilhas e hábeis em sobreviver, muitas vezes entre o abate, o tiro ao alvo e a
compaixão, apesar de bem adaptados ao viver urbano e à lide das gentes,
concorrendo invariavelmente aos mesmos meios de transporte e sujeitando-se aos
mesmos perigos e desafios. A Laika, a primeira e única cadela astronauta até à
presente data, de quem falámos há algumas edições atrás, foi resgatada dessa
mesma condição e, atendendo ao fim que teve, mais valia terem-na deixado por
lá!
Segundo Andrei Poyarkov, um biólogo
especializado em lobos, que nos últimos 30 anos se tem dedicado ao estudo dos
cães de rua moscovitas, a esperança de vida destes cães ronda os 10 anos e
poucos são os cachorros que chegam à idade adulta, vindo os sobreviventes a
substituir aqueles que perecem, o que mantém um grupo estável de 35.000
indivíduos, agregados em várias matilhas de características diferentes, que
podem ser divididas em quatro grupos: os selvagens (cães nocturnos que evitam
os humanos e os vêem como uma ameaça), os semi-selvagens (que procuram comida),
os de guarda (que aceitam determinadas pessoas como líderes) e os pedintes
(notoriamente mais inteligentes, que pedem comida sem se ligarem afectivamente às
pessoas). Generalizou-se entre eles um tipo morfológico próprio, caracterizado
pelo tamanho médio, pêlo comprido, cabeça em forma de cunha, olhos amendoados,
caudas longas e orelhas erectas. No decorrer da sua observação, Poyarkov notou
que eles foram perdendo a pelagem malhada, o costume de abanar a cauda e a
afectuosidade, características que separam os cães dos lobos, pormenores que
nos induzem a várias reflexões, tomando em conta rusticidade e a parceria que
esperamos dos nossos cães, nomeadamente dos Pastores Alemães.
O tipo físico ali dominante, afinal tão próximo do Pastor Alemão, aponta
claramente para a justeza dos pressupostos selectivos defendidos pelos
construtores desta raça, em abono da sua sobrevivência, rusticidade, autonomia,
adaptação, uso e melhor desempenho – Stephanitz e os seus seguidores tinham
razão! Com o tempo e o desprezo pelo trabalho, mediante massivas infusões de
maus sucedâneos de Arminius e Wienerau, a cauda destes cães passou a ser um
adorno, por força da estilização procurada, permanecendo tombada e sem vida
como as dos lobos, o que vem dificultando a leitura da sua mímica, equilíbrio,
travamento e desempenho atlético. Infelizmente os lobos são furtivos, temem os
homens, não se podem mostrar e só contam consigo, muito embora em matilha sejam
perigosos e letais. Mas vamos adiante que isto são contas de outro rosário!
Lá por Moscovo, os ditos cães pedintes,
que são os mais espertos, não se incomodam com o barulho, a azáfama e o
movimento ao seu redor, perfeitamente adaptados, conseguem dormir uma sesta nos
sítios mais inesperados. Constituídos em matilhas/alcateias, os diferentes grupos interagem
entre si, sendo liderados pelos mais inteligentes e não pelos mais fortes ou
dominantes, porque a tanto obriga a sobrevivência, necessidade que automaticamente
os transforma em cães alfa, novidade para aqueles que dão primazia ao impulso à
luta nos seus cães e que inevitavelmente acabam por correr atrás do prejuízo.
Que grandes lições têm os cães vadios Moscovo para nos dar! Peritos na arte de
sobreviver e capazes de entender a psicologia de certos humanos, os cães
pedintes desenvolveram várias técnicas para alcançar comida dos transeuntes.
Uma delas passa pelo uso dos membros mais pequenos e bonitinhos, por isso mesmo
mais apelativos, para pedir comida às pessoas. E como também têm um “Plano B”,
não encontrando outro remédio, ao sentirem que alguém transporta algo
comestível, ladram-lhe de surpresa pelas costas, para que surpreso e assustado
deixe cair o repasto. Eles descobriram que nas áreas mais movimentados é mais
fácil encontrar comida e graças a isso, são mais sociáveis, não se apresentam subnutridos
e até são selectivos nos seus manjares, muito embora haja notícia de ataques
por comida nas zonas industriais mais isoladas.
Como
casos destes são raros, entre a afeição e o incómodo, os cães acabam por ser
tolerados, havendo muita gente que os alimenta e que lhes constrói abrigos nas
Estações do Ano mais frias. Observadores, aprenderam a respeitar os semáforos e
a evitar o confronto com as pessoas, não defecando nas áreas mais movimentadas
da cidade. Para muitos, eles fazem parte da própria personalidade de Moscovo e
as campanhas de castração encetadas tiveram pouco impacto na sua redução.
Mas o que mais impressiona nestes cães é uso que
fazem do Metro de Moscovo, ao tornarem-se seus passageiros e residentes nas
suas estações, o que levou Eugene Linden, um reputado especialista em
inteligência animal, a considerá-los portadores de “raciocínio flexível e
pensamento consciente”, uma vez que aprenderam a reconhecer as estações ao
ouvir o seu nome pelas gravações, pelo seu odor particular e pela combinação
desses e doutros factores, nomeadamente o tempo entre o embarque e o
desembarque. Durante a era soviética não eram permitidos cães no Metro, mas
também eram raros os restaurantes e snack-bares na Capital russa, o que não
lhes justificava a ida ao centro da cidade, preferindo viver nas zonas
industriais, onde arranjavam comida nos caixotes do lixo, vivendo dos restos
ali jogados pelos trabalhadores. Mas com a queda URSS tudo mudou, começaram a
surgir blocos de apartamentos e centros comerciais nos arredores e o número de
restaurantes e lanchonetes aumentou drasticamente no centro da cidade.
Como qualquer passageiro, mesma nas horas de ponta,
é comum vê-los a apanhar o Metro nos subúrbios, onde pernoitam, rumo ao centro
da cidade, no intuito de se alimentarem, retornando ao local de partida depois
de saciados, partindo pela manhã e regressando ao final da tarde, viajando
deitados nos bancos, no chão ou entre as pernas das pessoas, não reagindo a
qualquer pisadela acidental por força do hábito. Ainda que prefiram as
primeiras carruagens ou as últimas, por serem menos concorridas, é comum vê-los
a entrar e sair pelas diversas portas durante as paragens, brincadeira em que
arriscam ficar com as caudas presas. Cerca de 500 cães vivem nas estações do
Metro, mas apenas 4% o usam como meio de transporte.
O Caso Malchik. Em 2001, uma modelo de 22
anos, que regressava a casa acompanhada pelo seu Staffordshire Bull Terrier,
matou a facadas um cão de rua negro, alcunhado de “Malchik” (“menino” em
russo), que tinha escolhido como abrigo a estação de Mendeleyevskaya, local que
protegia de bêbados e outros cães. Como o triste episódio ocorreu numa hora de
muito movimento e foi presenciado por um se número de pessoas, o que provocou a
revolta generalizada da opinião pública e profunda consternação nalgumas
celebridades moscovitas, a assassina do Malchik foi presa, julgada e condenada
a um ano de tratamento psiquiátrico (com os russos ninguém brinca!). Como
resultado de uma campanha de fundos, foi erigida, a 17 de Fevereiro de 2007,
uma estátua em bronze como homenagem ao cão assassinado, à entrada daquela
estação do metropolitano moscovita, obra do escultor Alexander Tsigal, que
contou com a colaboração do arquitecto Andrey Nalich e do designer Peter
Nalich. A estátua foi intitulada de “Compaixão” e é suportada por uma
serpentina monolítica.
Uma coisa
é certa: ainda temos muito que aprender acerca dos cães, sobre a inteligência e
préstimo destes dedicados companheiros, que apesar de milhares de anos ao nosso
lado, não param de nos surpreender.