sexta-feira, 28 de novembro de 2014

QUEM DÁ E TIRA, AO INFERNO VAI PARAR

O adestramento anda cheio de actos impensados com consequências desastrosas, porque cada um se intitula treinador e não antevê as repercussões dessa recente e apressada promoção, tantas e tantas vezes responsável pelo infortúnio, desequilíbrio, incompreensão e subaproveitamento dos cães, geralmente vítimas e réus da ausência de saber e qualidade dos seus mestres. Por todo o lado se vêem cães a disputar brinquedos, para aprenderem a brincar uns com os outros e alcançarem a sociabilização (segundo nos dizem), não sendo de estranhar, que alguns donos tirem o brinquedo ao seu cão para o entregaram a outro, gesto simpático e de pouca importância para os donos mas de grande significado para os cães, atitude que sempre nos causa alguns calafrios e raro incómodo, diante dos múltiplos propósitos dos brinquedos.
E nesta toada de “vamos lá cambada, todos à molhada”, não se olha a sexo, tamanho e idade, o que não raramente acaba com um cachorro mordido e a ganir, ou pior do que isso, numa batalha campal com os cães à dentada e os donos aos berros, canto espontâneo, tornado vulgar e tantas vezes repetido, que deveria ser remetido para o nosso cancioneiro popular.
Há muito tempo, possivelmente desde que o lobo e o chacal se transformam em cães, que os brinquedos fazem parte do uniforme do cão, quer ele seja de passeio, cinegético, policial ou militar, tal como a trela e a coleira. Do grosso dos brinquedos não podemos excluir os sticks e os churros, assim como outros utensílios próprios para disciplinas cinotécnicas específicas, cuja qualidade e riqueza dependerão, também e em grande parte, da variedade e do número dos utensílios e brinquedos utilizados. Diante da importância dos brinquedos, para além das suas mais-valias pedagógicos e técnicas, há que considerar a sua contribuição para o crescimento salutar e bem-estar dos cães (físico, psicológico, cognitivo e social), pelo que urge avaliar os prós e os contras da sua apropriação, divisão e cedência a terceiros.
A apropriação dos brinquedos alheios, assim como a divisão e a cedência dos pertencentes do nosso cão, são acções desejáveis, profícuas e benéficas quando: se prestam a objectivos pedagógicos garantidos, contribuem para a unidade das matilhas (grupo), fortalecem a sociabilização sem atropelos, estimulam o despertar dos mais jovens e constituem os cães adultos como mestres, pela paciência, exemplo e estímulo, como normalmente procede qualquer matriarca ou cão adulto experiente e devidamente sociabilizado.
Jogar um brinquedo para um grupo de cães torna-se perigoso, abusivo, contraproducente e é até criminoso nos seguintes casos: quando no grupo houver cães não sociabilizados, já que facilmente se constituirão em agressores ou em vítimas; quando um ou mais indivíduos forem manifestamente medrosos, frágeis, submissos e incapazes de se defenderem, porque ao fugirem constituir-se-ão em presas; quando a um grupo homogéneo e já escalonado se juntar um cão estranho, de comportamento diverso, substancialmente mais fraco e por isso mesmo em desvantagem, o que poderá despoletar a atenção e agressividade da matilha; quando no grupo houver maior número de machos jovens, com a maturidade sexual já ultrapassada, porque tendem ao desafio e à dominância, não olhando a meios; quando houver uma cadela em cio e vários machos adultos, porque eles lutarão entre si para alcançar os seus favores; quando a diferença de tamanho, idade e envergadura dos cães for evidente, porque os menos apetrechados de físico acabarão inibidos e a rebolar pelo chão, podendo, inclusive, lesionar-se pelos encontrões sofridos; quando o brinquedo jogado pertencer a cão acostumado a lutar pela sua posse, porque não o cederá gratuitamente (sem dar luta); quando o lançamento do brinquedo exceder a área de tutela dos donos e entregar os cães a si próprios; quando se verificar a ausência de controlo dos cães por parte de alguns donos e sempre que a integridade de um só cão possa estar em causa (física, psíquica e laboral).
Os brinquedos, para além do seu uso estratégico, são troféus para os cães e prestam-se ao robustecimento do seu carácter, porque são recompensas que antecedem, predispõem e suavizam o trabalho, transformando mais facilmente as respostas artificiais em naturais, por força da memória afectiva canina e do empenho dos donos. Cães nascidos demasiado submissos ou inibidos, mediante a contribuição dos brinquedos, aprendem a perseguir, a capturar e a sacudir a presa, acções que doutra forma dificilmente alcançariam pelo impropriedade do seu perfil psicológico. Os cães recuperados a partir dos brinquedos ou capacitados a partir deles, não deverão vê-los entregues a outros cães ou ser convidados para os dividirem, porque os primeiros podem desinteressar-se de vez e os últimos lutar pela sua posse, uns pelo receio e os outros pelo instinto de presa. Se os brinquedos podem promover a ascensão social dum cão, a sua divisão poderá também operar a sua despromoção, contratempo e desgraça que ninguém deseja.
Há que haver um cuidado especial com os cães treinados para guarda, a quem os potenciadores de mordedura (churros, nós de corda, etc.) servem para o aumento da tenacidade da mordida e para a supremacia do instinto de presa, para o desenvolvimento do sentimento territorial e para a potenciação do impulso à luta, porque não verão com bons olhos a captura alheia do seu brinquedo, podendo vir a tratar os outros cães como cobaias, intrusos ou ladrões, o que poderá levar à troca de alvos, comprometer a sua sociabilização e causar ferimentos graves nos seus “oponentes”, daí dizer-mos: “quem dá e tira, ao inferno vai parar”, aludindo a um provérbio popular sobejamente conhecido, que se aplica aqui com propriedade.
 E por estamos fartos de ver disparates, que infelizmente continuarão a acontecer por culpa dos donos, não aconselhamos os nossos alunos a carregar os brinquedos dos seus cães para os espaços públicos, desaconselhamos a captura dos brinquedos alheios e não permitimos em classe a divisão desses importantes acessórios, para que uma simples brincadeira não se reverta num caso sério. Mas os cães não poderão brincar entre si? Não será desejável que o façam? É claro que podem brincar e é desejável que isso aconteça, porque tal prática, mais do que nenhuma, espelha os benefícios da genuína e autêntica sociabilização entre iguais! Contudo, porque os cães são competitivos, nem todos são castrados, nascem diferentes e são sujeitos a diversos tipos de ensino, não podemos remeter para o bom senso de cada um a salvaguarda dos nossos cães e a dos outros, o que realça a importância das regras que adiantámos nos parágrafos anteriores. E porque entendemos que a sociabilização é um processo sério, gradual e continuado, quando temos como objectivo convidar os nossos cães para um brinquedo comum, arranjamos um “neutro”, geralmente um galho ou outro acessório que não seja pertença de nenhum deles. O alerta está dado e os conselhos também, oxalá cheguem a tempo e surtam efeito.

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