sábado, 8 de novembro de 2014

EU POSSO ENSINAR-LHES A TÉCNICA MAS NÃO LHES POSSO DAR A ALMA!

O homem que me iniciou na cinotecnia era um indivíduo perfeccionista, agarrado aos procedimentos, aparentemente distante dos afectos, mais próximo dos cães do que das pessoas, por norma silencioso e isolado no seu mundo, que detestava ser interpelado e que entrava no nosso já desagradado, como se não tivéssemos qualquer valor. Exceptuando os momentos em que se encontrava visivelmente embriagado, que eram planeados e tinham horas e dia marcados, nunca olhava directamente para os seus instruendos, somente inclinava a cabeça para o lado de quem lhe dirigia a palavra, refugiado na sua altura, trono que não queria ver conspurcado. Passados tantos anos, ao relembrar este bávaro e analisando a fundo o seu trabalho, não tenho dúvidas: fui iniciado por um técnico e não por um artista, o que não esconde o muito que aprendi e o quanto lhe devo. Ao ensinar-me a técnica, ele deu-me uma ferramenta, e por ironia do destino, aprendi a manejá-la como ele nunca ousou, ao perscrutar os rituais da comunicação interespécies e ao transportar os seus protocolos para outras formas de entendimento.
O adestramento canino é uma prática exigente e ao mesmo tempo libertadora, uma relação íntima entre indivíduos de espécies diferentes, incondicional para uns e condicionada para outros, que se espraia e fortalece com o tempo, que exige rara disponibilidade e que se baseia na coabitação, na observação mútua, nos afectos, nos ritos, na cumplicidade, na divisão do trabalho e na recompensa, não desprezando os requisitos técnico-científicos que lhe servem de base. Homens e cães são indivíduos e exigem ser tratados como tal. Do conhecimento recíproco, que gera o entendimento necessário, nasce a união binomial, que se deseja feliz, única, inviolável, profícua e em constante progresso. O carácter exigente e ao mesmo tempo libertador do adestramento pode sintetizar-se nisto: o homem desce ao mundo do cão para que ele dê entrada no seu. Esse mergulho no mundo canino irá exigir o desnudo dos homens, que empaticamente descem à mesma condição, para melhor compreenderem e serem compreendidos, condição tantas vezes olvidada em função do gozo próprio. Convém não esquecer que um cão, antes de ser terapeuta, carece de terapia. Esta aproximação, que rasa a transfiguração, transporta os homens para a infância, ocasião em que a sua comunicação foi mais sintética e simples, liberta de sofismas e menos encriptada, sem contudo perderem a maturidade, a clarividência e as razões que os levaram até ali, vantagens que lhes permitirão a liderança.
Erram os que julgam ser o método, o primeiro responsável pelo sucesso ou insucesso do adestramento, porque até hoje não houve nenhum totalmente eficaz, nem tão pouco um que fosse completamento falho, como se os cães fossem todos iguais, só agora se treinassem e o aproveitamento escolar fosse hoje absoluto. Os métodos são feitos para os homens e são súmulas de procedimentos a aplicar aos cães, de acordo com o momento histórico em que foram feitos e segundo as finalidades esperadas desses animais, o que não impedirá, ao compará-los, de reconhecermos que uns são mais coercivos ou persuasivos do que outros, menos abusivos ou mais adequados. Mais do que nos métodos, respeitando-se os mais elementares princípios pedagógicos, a verdadeira revolução no ensino canino acontece pela adequação dos donos, também eles carenciados de serem adestrados (convenientemente preparados), porque cresceram à sombra do especicismo, perderam há muito o contacto com os animais, não sabem como comunicar-lhes e continuam, ainda que por despreparo e ignorância, a aceitar o seu domínio, a desrespeitá-los, a sobrevalorizá-los ou a subaproveitá-los.
A maior dificuldade na adequação dos donos reside na apropriação dos métodos e na sua novidade, já que alguns pouco ou nada se coadunam com o seu sentir, experiência e modo de vida, obrigando-os a posturas que lhes causam algum embaraço, incómodo e por vezes até transtorno. Por causa disto, alguns métodos parecem talhados para determinadas pessoas, por se encontrarem mais próximos dos seus afectos e lhes serem de fácil adopção, ainda que eventualmente, abandonem as suas expectativas iniciais e subtraiam objectivos em prol da sua auto-estima. Lamentavelmente, nem todos conseguimos contrabalançar o que queremos com as expectativas dos cães e quando isso acontece, a resistência canina torna-se um facto. Poder-se-ão, aqui e ali, combinar diferentes métodos e técnicas? Claro que sim! Perante o particular de homens e cães na procura de soluções, para que uns ganhem ânimo e os outros melhor respondam, desde que a liderança não seja posta em causa e a manha não se instale nos animais, o que não é raro acontecer pela confusão da dualidade de processos.
A adequação dos donos enquanto condutores, apesar de obrigatória e prioritária, é a tarefa mais árdua e difícil para os adestradores, trabalho tantas vezes inglório face à indisponibilidade, parco envolvimento, escassa ambição e pouca mestria dos seus educandos, não raramente traídos por falsas percepções, limitados por herança e vítimas do seu trajecto. Escusado será dizer que quem ensina está cá para isso e há que valer a todos. Apesar dos retrocessos típicos de qualquer aprendizado, vamos conseguindo erigir binómios pela transmissão da técnica, muito embora o adestramento seja também uma arte, uma simbiose de movimentos e figuras fornecida pela comunicação interespécies, que ao fazer uso de diferentes linguagens, transporta homens e cães para momentos únicos e de rara beleza, mediante rituais comuns que ao atingirem a sublimidade, parecem não ter explicação imediata.
Fartos do trabalho oficinal, sistemático e enfadonho, sempre pedimos aos nossos alunos mais dedicados que ousem ir mais além, que melhor estudem os seus cães e coabitem com eles, que se abstraiam do circundante e em silêncio e sem atropelos, gozem e usufruam da sua companhia, olhando-os atentamente e afagando-os, desnudo mímico que os induzirá à transcendência operativa. Um cão não pode ser só trabalho e sabemos quanto é falha a disciplina diante da afeição. Sem que muita gente se aperceba, entretida que anda na sua satisfação ou obcecada pelas suas expectativas, o adestramento é amor e só ele conseguirá transformar os revezes e incómodos em práticas de mútuo prazer. Namorar os cães é conservá-los para sempre ao nosso lado, porque gostam e necessitam de ser aprovados. Não se trata aqui de adorá-los, mas de nos darmos a conhecer e melhor os compreendermos. Contam-se pelos dedos de uma mão, os que aceitaram o nosso convite e todos eles deixaram saudade. Perante o pouco empenho generalizado, há momentos em que nos apetece abandonar a actividade, sequestrar os cães e remar para outro lado.
A transição da técnica para a arte no adestramento é uma disposição que aproveita a humildade humana e o manancial canino, um despertar e receber de sentimentos, tantas vezes escondidos ou adormecidos, apesar de necessários para a nossa felicidade, para o bem-estar dos cães e para a exaltação de ambos. Eu posso saber muito sobre comportamento animal, mas ele será inválido se não o conseguir interpretar, eu posso ensinar a técnica e adiantar soluções, mas não conseguirei ensinar alguém a amar. Se a alma é imortal e cada um tem a sua, apesar do meu esforço, eu não posso dar a minha, por ser pessoal e intransmissível. Contudo, continuo a tentar influenciar outros, para que experimentem, como eu tenho experimentado, o retorno feliz às coisas simples da vida. Bem hajam os cães! 

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