O homem que
me iniciou na cinotecnia era um indivíduo perfeccionista, agarrado aos
procedimentos, aparentemente distante dos afectos, mais próximo dos cães do que
das pessoas, por norma silencioso e isolado no seu mundo, que detestava ser
interpelado e que entrava no nosso já desagradado, como se não tivéssemos
qualquer valor. Exceptuando os momentos em que se encontrava visivelmente
embriagado, que eram planeados e tinham horas e dia marcados, nunca olhava
directamente para os seus instruendos, somente inclinava a cabeça para o lado
de quem lhe dirigia a palavra, refugiado na sua altura, trono que não queria
ver conspurcado. Passados tantos anos, ao relembrar este bávaro e analisando a
fundo o seu trabalho, não tenho dúvidas: fui iniciado por um técnico e não por
um artista, o que não esconde o muito que aprendi e o quanto lhe devo. Ao
ensinar-me a técnica, ele deu-me uma ferramenta, e por ironia do destino,
aprendi a manejá-la como ele nunca ousou, ao perscrutar os rituais da
comunicação interespécies e ao transportar os seus protocolos para outras
formas de entendimento.
O adestramento canino é uma prática exigente e ao mesmo tempo
libertadora, uma relação íntima entre indivíduos de espécies diferentes, incondicional
para uns e condicionada para outros, que se espraia e fortalece com o tempo, que
exige rara disponibilidade e que se baseia na coabitação, na observação mútua, nos
afectos, nos ritos, na cumplicidade, na divisão do trabalho e na recompensa, não
desprezando os requisitos técnico-científicos que lhe servem de base. Homens e
cães são indivíduos e exigem ser tratados como tal. Do conhecimento recíproco,
que gera o entendimento necessário, nasce a união binomial, que se deseja
feliz, única, inviolável, profícua e em constante progresso. O carácter
exigente e ao mesmo tempo libertador do adestramento pode sintetizar-se nisto:
o homem desce ao mundo do cão para que ele dê entrada no seu. Esse mergulho no
mundo canino irá exigir o desnudo dos homens, que empaticamente descem à mesma
condição, para melhor compreenderem e serem compreendidos, condição tantas
vezes olvidada em função do gozo próprio. Convém não esquecer que um cão, antes
de ser terapeuta, carece de terapia. Esta aproximação, que rasa a
transfiguração, transporta os homens para a infância, ocasião em que a sua
comunicação foi mais sintética e simples, liberta de sofismas e menos
encriptada, sem contudo perderem a maturidade, a clarividência e as razões que
os levaram até ali, vantagens que lhes permitirão a liderança.
Erram os que
julgam ser o método, o primeiro responsável pelo sucesso ou insucesso do
adestramento, porque até hoje não houve nenhum totalmente eficaz, nem tão pouco
um que fosse completamento falho, como se os cães fossem todos iguais, só agora
se treinassem e o aproveitamento escolar fosse hoje absoluto. Os métodos são
feitos para os homens e são súmulas de procedimentos a aplicar aos cães, de
acordo com o momento histórico em que foram feitos e segundo as finalidades
esperadas desses animais, o que não impedirá, ao compará-los, de reconhecermos
que uns são mais coercivos ou persuasivos do que outros, menos abusivos ou mais
adequados. Mais do que nos métodos, respeitando-se os mais elementares
princípios pedagógicos, a verdadeira revolução no ensino canino acontece pela
adequação dos donos, também eles carenciados de serem adestrados
(convenientemente preparados), porque cresceram à sombra do especicismo,
perderam há muito o contacto com os animais, não sabem como comunicar-lhes e
continuam, ainda que por despreparo e ignorância, a aceitar o seu domínio, a
desrespeitá-los, a sobrevalorizá-los ou a subaproveitá-los.
A maior
dificuldade na adequação dos donos reside na apropriação dos métodos e na sua
novidade, já que alguns pouco ou nada se coadunam com o seu sentir, experiência
e modo de vida, obrigando-os a posturas que lhes causam algum embaraço,
incómodo e por vezes até transtorno. Por causa disto, alguns métodos parecem
talhados para determinadas pessoas, por se encontrarem mais próximos dos seus
afectos e lhes serem de fácil adopção, ainda que eventualmente, abandonem as
suas expectativas iniciais e subtraiam objectivos em prol da sua auto-estima.
Lamentavelmente, nem todos conseguimos contrabalançar o que queremos com as
expectativas dos cães e quando isso acontece, a resistência canina torna-se um
facto. Poder-se-ão, aqui e ali, combinar diferentes métodos e técnicas? Claro
que sim! Perante o particular de homens e cães na procura de soluções, para que
uns ganhem ânimo e os outros melhor respondam, desde que a liderança não seja
posta em causa e a manha não se instale nos animais, o que não é raro acontecer
pela confusão da dualidade de processos.
A adequação dos donos enquanto condutores, apesar de obrigatória e prioritária,
é a tarefa mais árdua e difícil para os adestradores, trabalho tantas vezes
inglório face à indisponibilidade, parco envolvimento, escassa ambição e pouca
mestria dos seus educandos, não raramente traídos por falsas percepções,
limitados por herança e vítimas do seu trajecto. Escusado será dizer que quem
ensina está cá para isso e há que valer a todos. Apesar dos retrocessos típicos
de qualquer aprendizado, vamos conseguindo erigir binómios pela transmissão da
técnica, muito embora o adestramento seja também uma arte, uma simbiose de
movimentos e figuras fornecida pela comunicação interespécies, que ao fazer uso
de diferentes linguagens, transporta homens e cães para momentos únicos e de
rara beleza, mediante rituais comuns que ao atingirem a sublimidade, parecem
não ter explicação imediata.
Fartos do
trabalho oficinal, sistemático e enfadonho, sempre pedimos aos nossos alunos mais
dedicados que ousem ir mais além, que melhor estudem os seus cães e coabitem
com eles, que se abstraiam do circundante e em silêncio e sem atropelos, gozem
e usufruam da sua companhia, olhando-os atentamente e afagando-os, desnudo
mímico que os induzirá à transcendência operativa. Um cão não pode ser só
trabalho e sabemos quanto é falha a disciplina diante da afeição. Sem que muita
gente se aperceba, entretida que anda na sua satisfação ou obcecada pelas suas
expectativas, o adestramento é amor e só ele conseguirá transformar os revezes e
incómodos em práticas de mútuo prazer. Namorar os cães é conservá-los para
sempre ao nosso lado, porque gostam e necessitam de ser aprovados. Não se trata
aqui de adorá-los, mas de nos darmos a conhecer e melhor os compreendermos.
Contam-se pelos dedos de uma mão, os que aceitaram o nosso convite e todos eles
deixaram saudade. Perante o pouco empenho generalizado, há momentos em que nos
apetece abandonar a actividade, sequestrar os cães e remar para outro lado.
A transição da técnica para a arte no adestramento é uma disposição que
aproveita a humildade humana e o manancial canino, um despertar e receber de
sentimentos, tantas vezes escondidos ou adormecidos, apesar de necessários para
a nossa felicidade, para o bem-estar dos cães e para a exaltação de ambos. Eu
posso saber muito sobre comportamento animal, mas ele será inválido se não o
conseguir interpretar, eu posso ensinar a técnica e adiantar soluções, mas não
conseguirei ensinar alguém a amar. Se a alma é imortal e cada um tem a sua,
apesar do meu esforço, eu não posso dar a minha, por ser pessoal e
intransmissível. Contudo, continuo a tentar influenciar outros, para que
experimentem, como eu tenho experimentado, o retorno feliz às coisas simples da
vida. Bem hajam os cães!
Sem comentários:
Enviar um comentário