O cão é um fingidor por excelência e alguns são mestres nessa arte, o
que a ninguém espanta, porque é um predador, vive em constante observação e é
objecto dos nossos afectos. Os cães mais acarinhados bem depressa aprendem a
ser manhosos, particularmente quando os seus donos são de filosofia
antropomórfica, não os contrariam e correm a fazer-lhes todas as vontades.
Temos reparado, sem causa de espanto, que os cães com maior capacidade de
aprendizagem ou os portadores de um forte impulso ao conhecimento, são os que
mais depressa aprendem a ludibriar os seus donos, gorando os seus intentos e
conseguindo até mandar neles, como se ao especicismo sucedesse naturalmente o
servilismo dos donos.
Diante dos
nossos olhos, nesta matéria, temos visto de tudo um pouco, cães a fingirem-se
doentes, coxeando ou indiciando otites, a fazerem-se de desentendidos, surdos
ou a dormitar, a responderem aos donos para não os ouvirem, acometidos de
falsas necessidades fisiológicas para não trabalharem, a deitarem-se de barriga
para o ar para não serem incomodados, a atacarem sem ordem e quando menos se
espera e daí por aí adiante (o rosário é infindável!). Coube-nos um dos cães
mais manhosos que conhecemos, um pastor alemão que tinha que ser enganado antes
que nos enganasse, que por força das circunstâncias, se tornou herói da
televisão, um camarada único que contrabalançou as alegrias que nos deu com os
anos de vida que nos tirou, porque adivinhando o trabalho, jamais o faria, o
que tornava impossível qualquer ensaio, muito embora acertasse à primeira e
suplantasse a maioria dos pastores que já treinámos.
Bem
estaríamos todos, se as manhas caninas se reduzissem à falta de empenho ou ao
desprezo pelo trabalho, porque elas vão para além disso e nalguns casos podem
até ser letais. E se a despesa sair só aos donos, já virá mal que chegue ao
mundo. Na nossa passagem pela reeducação canina, trabalho gratificante que
tantas lições nos deu e que por isso mesmo, deveria fazer parte do currículo de
qualquer adestrador, encontrámos cães que tudo fizeram para nos eliminar,
usando dos mais variados truques para o conseguir. Uns viravam-se para a parede
quando os chamávamos e quando os tentávamos pegar caíam-nos em cima, outros
pediam-nos festas e tentavam agredir-nos depois. E quem pensar que trabalhos
destes são típicos de cães grandes, engana-se redondamente, porque o pior
ferimento que sofremos foi obra de um velho Teckel de pêlo cerdoso. Fartámo-nos
de encontrar cães que pareciam nem partir um prato mas que, de um momento para
o outro, eram capazes de estoirar toda a cristaleira.
Como todos sabemos, a manha canina não tem uma origem genética, é
produto ambiental e resultado duma convivência desregrada, que os cães
aproveitam para poderem dominar. Existe uma correspondência entre donos
inactivos e cães manhosos, entre donos demasiado tolerantes e cães irascíveis.
O melhor combate para a manha e para destronar os fingidores é dar-lhes
trabalho, recompensá-los quando procedem certo e repreendê-los quando
desobedecem. A idade e a obesidade contribuem para o aumento e perpetuação das
várias manhas caninas, assim como a ausência de uma liderança efectiva e
inquestionável. Apesar de todos os cães poderem ser fingidores, porque o
fenómeno não depende só deles, existem raças mais propensas para isso, aquelas
cujos criadores alertam os futuros proprietários para a necessidade de
experiência e disciplina. A mestiçagem entre lupinos e molossos, os chamados
“molossos alupinados”, gera grande número de cães manhosos, notoriamente
fingidores e de grande maldade, porque junta à força bruta dos primeiros a instabilidade
dos segundos. Quem se encanta com a manha de um cão, depressa se desencantará,
porque quando menos esperar, estará a falar para o boneco, o que levanta a
seguinte questão: será o adestramento só para os cães?
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