Quando
pensamos já ter visto e ouvido tudo acerca de cães, há sempre um que nos
surpreende, indivíduos excepcionais que conhecemos ou cujas histórias nos são
contadas. Este é o caso da “Pequenitites”, uma cadela sem pedigree, que foi
propriedade de um homem simples, natural duma aldeola perto de Castro Marim e
que conhecemos num hospital, onde por necessidade e contra vontade, aguardava
por um doloroso tratamento, sem estar certo do seu êxito. O nome “ Pequenitites”,
por vezes “pecanitites”, pode provocar alguma estranheza a quem nasceu num
berço urbano e distante do linguajar do interior, onde a influência semita se
faz sentir e que na intimidade se expressa em vogais mudas, adoçando palavras
para reforçar sentimentos, carga emocional que cada um guarda para si, para não
se expor ao ridículo, como se a inquisição ainda pairasse por cá.
“Pequenitites” significa “pequenino” ou “o meu pequenino” e é um termo usado
pelos pais e avós, quase um sussurro, quando tratam os seus filhos e netos.
Como a relação dos homens com os cães é nalguns casos quase filial,
compreende-se o porquê do nome da cadela e o amor que o seu dono lhe tinha.
Como a
narrativa deste algarvio, agora desassombrado pelo infortúnio, foi expressa no
seu típico linguajar, o que obrigaria a constantes explicações, vamos
transmiti-la em português corrente, sempre que tal seja possível e sem fugir a
autenticidade do seu relato. A “Pequenitites” era filha de cães-pastores, dum
cão estarola, atrevido e muito meigo e duma cadela belicosa e arredia,
selectiva nos manjares, pouco disponível e ciosa do seu espaço (filha dum “rebenta-albardas”
e duma cadela “mete nojo”, conforme nos foi transmitido). Nasceu numa ninhada
de oito cachorros e era a mais franzina, facto que presidiu à sua adopção.
Maioritariamente branca e pintalgada de castanho por todo o lado, com um ladrar
rouquenho, o que confundia as outras cadelas e espevitava os machos, tinha um
focinho apelativo, que contrastava com a restante morfologia, porque era
esgalgada, fraca de osso, mal aviada de peito, de anca estreita e com jarrete
de vaca, menos valias que associadas à fraqueza e ao desaprumo dos seus
membros, faziam dela uma “bicha mal-encavada” (malfeita). Com a idade e depois
de capada, a coisa compôs-se, mercê do aumento de peso. Apesar de fisicamente
ser um traste, o seu dono adorava-a, já que quem ama o feio, bonito lhe parece!
Se do ponto
de vista físico era o que era, de carácter ainda era pior, por ser praticamente
impossível contrariar as suas tendências, ainda que “à cachaporra” pudesse
entrar nos eixos, opção que o dono nunca considerou, por gostar dela e ter medo
de a aleijar, “mas lá que as merecia, merecia!”, segundo o que nos fez saber.
Sendo uma amálgama dos pais, porque “atirava a um e saía a outro”, oscilava
entre o bruto e o meigo, afastava-se dos outros cães e só se aproximava deles
quando em vantagem, dificilmente se amatilhava mas adorava capitaneá-los,
ferrar-lhes umas dentadas sempre que podia, particularmente às cadelas: “a
bicha julgava-se superior”. Apesar de ser filha de cães-pastores, a
“Pequenitites” tinha asco à aspereza do campo, que parecia incomodá-la,
preferindo os jardins onde adorava deambular. Mas o pior que ela tinha, segundo
o parecer do dono, era o facto de ser uma “oferecida”, de andar constantemente
em cio e a virar o rabo para qualquer cão. E aí nem olhava para a paisagem, nem
que fosse numa esterqueira, o que obrigava o homem “a mil olhos”! Nos primeiros
tempos, parra se consolar, ele dizia para si mesmo: “o que é que se há-de
fazer, é a natureza dela, também há pessoas assim!”. Felizmente nunca ficou
prenhe, pois caso ficasse, seria o cabo dos trabalhos, poderia ficar “esticada”
(morta) devido à sua anatomia, coisa que o homem nem queria imaginar.
Farto de “andar ao pai, ao pai” (a inquirir da cadela), para seu descanso
e salvaguarda dela, depois de muito matutar, acabou por mandar castrá-la. O
facto do veterinário lhe ter dito que até era bom para a saúde do animal,
libertou-o de algum possível remorso, já que não desejava fazer-lhe qualquer
mal. Esse problema ficou resolvido mas outro ficou sem solução. O raio da
cadela era gulosa e impaciente, dada a petisquinhos e avessa à ração. Não tendo
outro remédio, o homem viu-se obrigado a cozinhar para ela. Mas quando se
atrasava no repasto, a “Pequenitites” não hesitava, saía porta fora e ia pedir
comida aos vizinhos, como se estivesse esfomeada, o que embaraçava o dono e colocava-o
em maus lençóis perante os outros, como se não quisesse saber dela e não lhe
desse de comer. E como um mal nunca vem só, quando era repreendida, fazia-se de
vítima e corria para os braços de qualquer um, aninhando-se neles, o que ainda
era pior, como se a sorte não lhe sorrisse e estivesse entregue a um bruto, o
que envergonhava de sobremaneira o seu proprietário. Com o tempo, a frequência
das escapadelas aumentou e cada vez menos pernoitava em casa, só lá voltando à
falta de melhor, como se nada se tivesse passado e ali chegasse para ser
servida.
A doença do homem obrigou-o a ausentar-se ciclicamente de casa para
receber tratamento, porque andar para baixo e para cima, do Algarve para Lisboa
e vice-versa, estava para além das suas posses. Preocupado com a sua
“Pequenitites”, deixava-lhe comida feita no congelador para sete dias, arroz
com carne de vaca moída e cenoura, que a sua mulher aquecia, quando a cadela
aparecia. De Lisboa sempre lhe levava um brinquedo novo e nunca saía sem lhe
ajeitar a cama e compor-lhe a manta, uma polar que lhe comprou por ser
friorenta. Com a frequência dos tratamentos, a cadela debandou, escolheu outro
dono e por lá ficou, apesar de passar dez anos aos cuidados daquele enfermo que
tanto a amou. “Sabe que mais, no estado em que estou, ainda sinto mais saudades
daquela magana!” – disse-nos. Interpelando-o, uma mulher de meia-idade, de ar
espevitado, gorda e de óculos graduados, que ali estava à espera de um familiar
em tratamento, disse-lhe de rajada: “ Desculpe meter-me onde não sou chamada,
mas se calhar, se fosse um filho seu, não estava nesse pranto. Deixe-se disso,
cães são cães, há bons e maus, mas não passam disso! O que importa é que o Sr.
fique curado!” – suspirando depois. O algarvio levantou os olhos e de modo
contido respondeu-lhe: “ Você não sabe da missa a metade e cada um sabe de
si!”. A conversa terminou ali e o relato também, porque o chamaram para a
quimioterapia. Cada um que tire as suas elações, não há moral da história,
somente relatámos um episódio da vida real, ainda que em parte por interposta
pessoa. Queira Deus que o homem saia curado!
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