O adestramento anda cheio de actos impensados com consequências
desastrosas, porque cada um se intitula treinador e não antevê as repercussões
dessa recente e apressada promoção, tantas e tantas vezes responsável pelo infortúnio,
desequilíbrio, incompreensão e subaproveitamento dos cães, geralmente vítimas e
réus da ausência de saber e qualidade dos seus mestres. Por todo o lado se vêem
cães a disputar brinquedos, para aprenderem a brincar uns com os outros e alcançarem
a sociabilização (segundo nos dizem), não sendo de estranhar, que alguns donos
tirem o brinquedo ao seu cão para o entregaram a outro, gesto simpático e de
pouca importância para os donos mas de grande significado para os cães, atitude
que sempre nos causa alguns calafrios e raro incómodo, diante dos múltiplos
propósitos dos brinquedos.
E nesta toada de “vamos lá cambada, todos à molhada”, não se olha a
sexo, tamanho e idade, o que não raramente acaba com um cachorro mordido e a
ganir, ou pior do que isso, numa batalha campal com os cães à dentada e os
donos aos berros, canto espontâneo, tornado vulgar e tantas vezes repetido, que
deveria ser remetido para o nosso cancioneiro popular.
Há muito tempo, possivelmente desde que o lobo e o chacal se transformam
em cães, que os brinquedos fazem parte do uniforme do cão, quer ele seja de
passeio, cinegético, policial ou militar, tal como a trela e a coleira. Do
grosso dos brinquedos não podemos excluir os sticks e os churros, assim como
outros utensílios próprios para disciplinas cinotécnicas específicas, cuja
qualidade e riqueza dependerão, também e em grande parte, da variedade e do
número dos utensílios e brinquedos utilizados. Diante da importância dos
brinquedos, para além das suas mais-valias pedagógicos e técnicas, há que
considerar a sua contribuição para o crescimento salutar e bem-estar dos cães
(físico, psicológico, cognitivo e social), pelo que urge avaliar os prós e os contras
da sua apropriação, divisão e cedência a terceiros.
A apropriação dos brinquedos alheios, assim como a divisão e a cedência
dos pertencentes do nosso cão, são acções desejáveis, profícuas e benéficas
quando: se prestam a objectivos pedagógicos garantidos, contribuem para a
unidade das matilhas (grupo), fortalecem a sociabilização sem atropelos,
estimulam o despertar dos mais jovens e constituem os cães adultos como
mestres, pela paciência, exemplo e estímulo, como normalmente procede qualquer
matriarca ou cão adulto experiente e devidamente sociabilizado.
Jogar um brinquedo para um grupo de cães torna-se perigoso, abusivo,
contraproducente e é até criminoso nos seguintes casos: quando no grupo houver
cães não sociabilizados, já que facilmente se constituirão em agressores ou em
vítimas; quando um ou mais indivíduos forem manifestamente medrosos, frágeis,
submissos e incapazes de se defenderem, porque ao fugirem constituir-se-ão em
presas; quando a um grupo homogéneo e já escalonado se juntar um cão estranho, de
comportamento diverso, substancialmente mais fraco e por isso mesmo em
desvantagem, o que poderá despoletar a atenção e agressividade da matilha; quando
no grupo houver maior número de machos jovens, com a maturidade sexual já
ultrapassada, porque tendem ao desafio e à dominância, não olhando a meios; quando
houver uma cadela em cio e vários machos adultos, porque eles lutarão entre si
para alcançar os seus favores; quando a diferença de tamanho, idade e
envergadura dos cães for evidente, porque os menos apetrechados de físico
acabarão inibidos e a rebolar pelo chão, podendo, inclusive, lesionar-se pelos
encontrões sofridos; quando o brinquedo jogado pertencer a cão acostumado a
lutar pela sua posse, porque não o cederá gratuitamente (sem dar luta); quando
o lançamento do brinquedo exceder a área de tutela dos donos e entregar os cães
a si próprios; quando se verificar a ausência de controlo dos cães por parte de
alguns donos e sempre que a integridade de um só cão possa estar em causa
(física, psíquica e laboral).
Os
brinquedos, para além do seu uso estratégico, são troféus para os cães e
prestam-se ao robustecimento do seu carácter, porque são recompensas que
antecedem, predispõem e suavizam o trabalho, transformando mais facilmente as
respostas artificiais em naturais, por força da memória afectiva canina e do
empenho dos donos. Cães nascidos demasiado submissos ou inibidos, mediante a
contribuição dos brinquedos, aprendem a perseguir, a capturar e a sacudir a
presa, acções que doutra forma dificilmente alcançariam pelo impropriedade do
seu perfil psicológico. Os cães recuperados a partir dos brinquedos ou
capacitados a partir deles, não deverão vê-los entregues a outros cães ou ser
convidados para os dividirem, porque os primeiros podem desinteressar-se de vez
e os últimos lutar pela sua posse, uns pelo receio e os outros pelo instinto de
presa. Se os brinquedos podem promover a ascensão social dum cão, a sua divisão
poderá também operar a sua despromoção, contratempo e desgraça que ninguém
deseja.
Há que haver um cuidado especial com os cães treinados para guarda, a
quem os potenciadores de mordedura (churros, nós de corda, etc.) servem para o aumento
da tenacidade da mordida e para a supremacia do instinto de presa, para o
desenvolvimento do sentimento territorial e para a potenciação do impulso à
luta, porque não verão com bons olhos a captura alheia do seu brinquedo, podendo
vir a tratar os outros cães como cobaias, intrusos ou ladrões, o que poderá
levar à troca de alvos, comprometer a sua sociabilização e causar ferimentos
graves nos seus “oponentes”, daí dizer-mos: “quem dá e tira, ao inferno vai
parar”, aludindo a um provérbio popular sobejamente conhecido, que se aplica
aqui com propriedade.
E por estamos fartos de ver disparates, que infelizmente continuarão a
acontecer por culpa dos donos, não aconselhamos os nossos alunos a carregar os
brinquedos dos seus cães para os espaços públicos, desaconselhamos a captura
dos brinquedos alheios e não permitimos em classe a divisão desses importantes
acessórios, para que uma simples brincadeira não se reverta num caso sério. Mas
os cães não poderão brincar entre si? Não será desejável que o façam? É claro
que podem brincar e é desejável que isso aconteça, porque tal prática, mais do
que nenhuma, espelha os benefícios da genuína e autêntica sociabilização entre
iguais! Contudo, porque os cães são competitivos, nem todos são castrados,
nascem diferentes e são sujeitos a diversos tipos de ensino, não podemos
remeter para o bom senso de cada um a salvaguarda dos nossos cães e a dos
outros, o que realça a importância das regras que adiantámos nos parágrafos
anteriores. E porque entendemos que a sociabilização é um processo sério,
gradual e continuado, quando temos como objectivo convidar os nossos cães para
um brinquedo comum, arranjamos um “neutro”, geralmente um galho ou outro
acessório que não seja pertença de nenhum deles. O alerta está dado e os
conselhos também, oxalá cheguem a tempo e surtam efeito.