Há alguns anos atrás, data que agora não conseguimos precisar, na Capital Paulista, no Brasil, assistimos a uma desavença entre dois cães numa exposição de beleza, onde um Fila Brasileiro adulto decidiu atacar uma Husky de 7 meses de idade. Dum momento para o outro, o sangue correu pelo chão fora e devido à desproporção dos animais, toda a gente temeu pela vida da cachorra. Depois de sanado o conflito, veio a descobrir-se que o sangue vertido pertencia ao Fila Brasileiro, proveniente de vários cortes que tinha na barriga e que a Husky não havia sofrido qualquer lesão. Ainda que poucos falem disso, devido à manipulação das distintas raças caninas, existe entre algumas delas uma incompatibilidade somática, baseada nas distintas morfologias, díspares funções e modos de actuação, fundamentando aversões cuja eliminação nem sempre é fácil. É evidente que o grau de aversão irá depender do sexo dos animais, da idade e do perfil psicológico de ambos, do seu particular territorial, do tipo de instalação doméstica e da qualidade da liderança, que nestes casos carece de ser activa e atenta. Quando o sexo é diferente e a diferença de idades é notória, a ocorrência de conflitos é menor, quase nula e automática, a menos que o ciúme do cão mais velho impere e os donos nada façam. Caso é sabido, qualquer sociabilização não dispensa a prévia familiarização, muito embora seja difícil um cão adulto morder um cachorro antes dos 10 meses de idade. Optar pela escolha de duas fêmeas pode não ser a melhor das opções, porque o impulso à defesa presente nelas, a seu tempo, poderá induzi-las a picardias mais ou menos graves.
Fomos criadores de Serra da Estrela e para além dos nossos, treinámos três dezenas de alheios. Não criámos Huskies, mas treinámos inúmeros, porque em tempos idos a raça esteve na moda, preferência hoje abandonada que outros explicarão, apesar de não nos ser difícil adivinhar o porquê. Antes do boom do Weimaraner, do Malinois e do Border Collie, considerando o Husky e o Serra da Estrela, assistimos, aconselhámos, instalámos e treinámos as seguintes duplas: Husky /Boxer, Husky/Fila de S.Miguel, Husky/Golden Retriever, Husky/Labrador, Husky/Pastor Alemão, Husky/Serra da Estrela, Husky/Schnauzer, Serra da Estrela/Boxer, Serra da Estrela/Cocker, Serra da Estrela/Galgo Espanhol, Serra da Estrela/Labrador, Serra da Estrela/Malamute do Alasca e Serra da Estrela/Pastor Alemão. Ainda treinámos e nalguns casos reeducámos, híbridos de quase todas elas e de outras “cruzas”, quando a hibridação era pouco procurada e aqui acontecia acidentalmente. Pelo trabalho que deram na reeducação, os híbridos de Pastor Alemão com Serra da Estrela ficaram célebres, tanto nos centros de enfermagem como na nossa memória. Não obstante, todos saíram prontos e nenhum deles veio a causar problemas. Valha-nos isso! É importante relembrar que as nossas aulas eram colectivas e que as distintas classes de adestramento trabalhavam em conjunto, segundo um escalonamento prévio que visava a melhoria do rendimento global, o que nos permitiu observar, in loco, diversas incompatibilidades inter-raciais e operar a sua reconciliação, pela identificação da matilha escolar que induzia à sociabilização procurada.
Assim, é de todo indesejável, quando já se tem uma cadela adulta, ir buscar uma cachorra para sua companhia, isto se a adulta for activa e fértil, porque após o 1º cio da mais nova, não hesitará em fazer saber quem ali manda. Poderá verificar-se o contrário se a mais nova for dominante e a residente por demais submissa. Agora, se o adulto for macho e se adquirir um cachorrinho do mesmo sexo, a ocorrência de desacatos é praticamente nula, porque o mais velho protegerá o infante e ensiná-lo-á de acordo com o seu particular, garantindo o seu predomínio. Também aqui, excepcionalmente, poderá haver uma inversão hierárquica, particularmente se o mais novo for o Husky. A adopção dum cachorro macho por uma cadela adulta, independentemente da raça da fêmea, é quase automática e isenta de problemas, mesmo que a cadela seja das rijas, porque mais cedo ou mais tarde, o macho reclamará o seu lugar hierárquico. Neste caso, por precaução e até à maturidade sexual do cachorro, convém que lhe seja atribuído um espaço próprio, para que não invada o da cadela e venha a ser escorraçado.
De qualquer forma, com o decorrer do tempo, a coabitação de um Husky com um Serra, ainda que harmoniosa do ponto de vista social, será algo desgarrada, porque um não pára quieto e o outro não está para correrias. O que une as duas raças é o apego à autonomia e ambas requerem uma liderança incondicional. Do ponto de vista logístico a coisa também não é fácil, a menos que saiamos à noite com o Serra, quando importa descansar, e de manhã com o Husky, quando despertamos vigorosos. Conduzir os dois em simultâneo e alinhados, irá requer muita paciência e empenho, porque um quer rebocar-nos e outro não quer ir “a toque de caixa”, preferindo deslocar-se um pouco atrasado. Do convívio entre ambos, é mais fácil o lupino dar ao molosso maior disponibilidade do que receber dele mais juízo, até porque o Serra não guarda o Husky e este abomina qualquer tipo de custódia. Em termos de constituição binomial, por serem mais instintivos que a maioria dos cães, ambos apresentarão problemas, ainda que diferentes, já que o Husky resiste ao travamento e o Serra à transição dos andamentos naturais, um carece de assaz inibição e o outro da sublimidade dos estímulos. A raça que mais ajuda na recuperação do Husky é o Pastor Alemão e a que mais vale ao Serra é o Fila de S.Miguel, apesar do último ser pouco sociável. O assunto não se esgota aqui, como não se esgotam as coabitações mais estranhas. Ainda não vimos as duplas Bulldog Inglês/Greyhound e Irish Wolfhound/Chihuahua, mas estamos certos que algures, alguém já as constituiu!
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