sexta-feira, 3 de junho de 2011

IMPULSO AO PODER, CRIAÇÃO E HIBRIDAÇÃO

Há um pequeno César dentro de cada um de nós, todos nascemos com impulso ao poder, ninguém gosta de ser contrariado, todos desejamos ser obedecidos e ver realizada a nossa vontade. A força desse impulso e a resistência dos outros irá determinar como o usaremos e que rumo lhe daremos. Nesse combate vale tudo, porque ninguém consegue sufocar a sua natureza em constante apelo, parece que a felicidade individual passa por aí e ninguém é feliz se não tiver algo de seu. Valha-nos Deus! Se calhar inventámo-Lo para combater esta nossa cegueira e demos-Lhe as seguintes palavras (entre outras tantas para além dos 10 Mandamentos): “aquele que quiser ser o maior entre vós, seja o menor”; “se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz e siga-me”; “seja feita a Tua vontade” e “um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros como a vós mesmos”. Um Deus que não tinha onde reclinar a cabeça, que sucumbe perante o poder dos homens e que lá no final sai vitorioso, ressuscitando para nos dar morada junto d’Ele. O impulso ao poder humano é um caso muito sério, uma inclinação que não tem poupado vítimas e que jamais deixará de as fazer, mesmo entre aqueles que se dizem seguidores da divindade e seus representantes na Terra. Diante deste cenário apraz-nos dizer: como o mundo seria mais justo se só os animais tivessem impulso ao poder (pelo menos para os homens!). Exceptuando a possível alteração produzida pela premissa metafísica, parece-nos difícil separar o impulso ao poder da auto-realização humana, já que todos procuram, tanto líderes quanto subordinados inatos, uma dose quanto baste de “quero, posso e mando”, surgindo a marginalidade e os comportamentos a ela associados como resultado do mesmo apelo, ainda que por meios condenáveis pela sociedade. É igualmente difícil separar o impulso ao poder do acto de criar ou de o inovar, isto se essa nova criação se encontrar sujeita ou servir os propósitos desse mesmo impulso. Diz-se e Gilberto Freyre também o disse, que Deus criou as raças e os portugueses criaram o mestiço, o que é uma inverdade histórica, já que essa prática é anterior à nossa nacionalidade, foi praticada nos impérios da antiguidade, consumada nos casamentos reais e usada para o aumento do seu domínio e poder. O que se deve aos portugueses é o seu aproveitamento global, a generalização da mestiçagem nos territórios ultramarinos e no Novo Mundo, como política para garantir o povoamento, a extracção das riquezas e a sua soberania ali, considerando o escasso número de habitantes no seu território metropolitano. Os reis que outorgaram a mestiçagem ou que a ela não se opuseram, também eles oriundos de diferentes etnias europeias, de português sobrava-lhes o título, sendo cada um deles mais germano, inglês ou francês do que o outro. A criação dos originários pombeiros, gente que dava caça aos escravos, encontrou na mestiçagem a nata das suas fileiras, o que se compreende face à resistência dos nativos em dar caça ao seu próprio sangue ou de submeterem a sua tribo a tal assolação. Conclui-se assim que a criação do mestiço resultou duma medida económica para garantir o poder. Se uns construíram impérios a expensas doutras etnias, outros houveram que criaram raças de cães, o princípio é o mesmo e acabou por servir idêntico propósito, já que a novidade dessas raças veio contribuir eficazmente para a defesa dos bens individuais, para o sucesso no esforço bélico, para o exercício policial, para reforço da actividade cinegética, para a autonomia dos deficientes e para afirmação do status, entregando a cada um dos seus novos proprietários muitas das mais-valias que há muito aguardavam.
Também não se pode dissociar o direito à diferença do impulso ao poder e afastar de ambos os pressupostos presentes na criação das diferentes raças caninas actuais, uma vez que é a procura do “must” as norteia. Procura-se o “cão mais” (o maior; o mais pequeno; o mais forte; o mais bonito; o mais feroz; o mais manso; o melhor caçador; o mais raro; o mais rápido; o mais capacitado e por aí adiante), muitas vezes desrespeitando a sobrevivência, longevidade e qualidade de vida dos pobres animais, pormenores que tardiamente mereceram a nossa atenção. Na procura de “ter um cão melhor do que o teu” e sobrando daí as honrarias inerentes à façanha, para além da mestiçagem inconfessa (por vezes comprometida nos resultados por convicções a leste da ciência), ainda há quem avance pelo atavismo e crie híbridos de qualidade inesperada ou de características pouco vistas e indesejáveis. Para o monarca doméstico, que se julga tão augusto quanto os que a história reza, o seu cão tomou o lugar das águias, dos abutres, dos grifos e dos leões daqueles que o inspiraram, porque domina o bicho e pode alcançar alguma vantagem ou poder sobre os outros. É evidente que sem impulso ao poder não haveria evolução, mas atendendo à natureza do cão, tudo isto nos parece uma brincadeira infantil de mau gosto.

O adestramento continua invadido por um corolário de apelos incontidos ao poder, diariamente somos surpreendidos com indivíduos predispostos à dominância, gente de todas as idades e com igual propósito, que pretende encontrar nesta arte os fundamentos para o seu castelo, um meio violento para se afirmar e ultrapassar os outros, ainda que o não diga e que dê a entender exactamente o contrário, porque a cobardia aguça o engenho e a simulação é-lhes natural. Perante a situação, como deverá proceder um adestrador digno desse nome? Ignorará as intenções deles? Dará azo ao disparate e mostrar-se-á conivente ou desnudará os indivíduos e tentará produzir neles alteração? O caminho mais fácil é lavar daí as mãos, o mais difícil é produzir alteração. Se entendermos a salvaguarda dos cães como o objectivo central do adestramento, não restam dúvidas: seremos obrigados a produzir alteração na pessoa dos condutores! Com isto, podemos perder um ou mais alunos, ganhar o rótulo de imprestáveis ou de idiotas, mas mais vale ganhar a alcunha do que fazer jus ao nome. Que ninguém se engane, nenhuma lei trava um desejo, uma inclinação ou uma ambição, apenas obriga os indivíduos ao disfarce que impede o seu castigo, até porque, invariavelmente, o montante do prémio é superior aos danos causados pela contravenção. Denunciar os abusos cometidos sobre os cães é nossa obrigação, assim como também é a formação dos seus condutores. Se não evitarmos atempadamente os abusos binomiais, alguns inocentes irão pagar o preço da nossa “distracção” ou indiferença, tal qual ovelhas prontas prò abate. O adestramento deve ser uma ocasião para a paz e para que isso aconteça, é necessário perscrutar as intenções de cada um dos nossos alunos e sintonizá-los com os nossos objectivos e filosofia de vida. Todo e qualquer impulso, inclusive o relativo ao poder e com mais acuidade, deve ser direccionado para o bem comum, sem contudo eliminar a criatividade individual que enriquece o colectivo escolar. Eu quero encontrar na rua um cão que me acompanhe quando estiver só, não um que me mate porque não alcanço socorro! Trabalhar assim é lutar, também, contra o aumento da criminalidade.

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